Em busca de Liu Ying – Gay Talese e o futebol feminino

Em busca de Liu Ying – Gay Talese e o futebol feminino

Artigo publicado em 24.07.2023 no Estadão.
Na edição impressa, o artigo saiu em 26.07
(clique na imagem para ampliá-la; título e subtítulo são dos editores, não meus).

Em 1999, cinco anos após Roberto Baggio errar aquele pênalti, os EUA sediaram outra Copa do Mundo, dessa vez de futebol feminino. O palco da finalíssima foi o mesmo no qual a seleção brasileira sacramentara seu quarto título mundial: o tórrido Rose Bowl em Pasadena, Califórnia. E, a exemplo de Brasil e Itália, as finalistas de 1999 também empataram em 0x0 no tempo regulamentar e na prorrogação, e o título foi definido nos pênaltis. EUA e China se enfrentaram naquele 10 de julho, e um dos registros mais célebres do evento está no livro Vida de Escritor, de Gay Talese (Cia. das Letras, tradução de Donaldson M. Garschagen).
O autor alterna a narração da final com a descrição de uma partida da “Subway Series”, como são apelidados os confrontos entre os times novaiorquinos Yankees e Mets. É um prazer extra para o leitor brasileiro contrapor a tranquilidade com que Talese discorre sobre beisebol ao didatismo meio desajeitado na abordagem do “soccer”. Mas ele é tão sagaz que intui aquilo que o grande Bill Shankly disse certa vez: “Futebol não é uma questão de vida ou morte, é muito mais importante do que isso”.
Talese atenta para as questões políticas envolvidas (a tensão entre os países após o bombardeio acidental, por caças norte-americanos, da embaixada chinesa em Belgrado), os detalhes mais significativos (a única negra em campo era a goleira Briana Scurry, autoproclamada “mosca no leite”; Scurry se adiantou na cobrança que decidiria o jogo, infração ignorada pela arbitragem) e o símbolo da derrota chinesa: a meio-campista Liu Ying, que errou o pênalti. A final seria um gancho formidável para “mostrar muita coisa a respeito dessas duas sociedades”. E Talese embarcou para a China.
Lá, muita coisa mudara desde as manifestações de 1989. As autoridades enfrentavam com maior rapidez os membros da seita Falun Gong, para que o movimento não crescesse como os protestos de estudantes e trabalhadores que culminaram no Massacre da Praça da Paz Celestial. A abordagem de Talese do morticínio, incluindo as simplificações ocidentais, os relatos contraditórios e uma referência ao que ele próprio testemunhara em Selma, Alabama, em 7 de março de 1965 (quando manifestantes negros pró-Direitos Civis foram brutalmente agredidos pela polícia), é um dos pontos altos do livro.
Mas como encontrar Liu Ying? A Nike já possuía fábricas na China, e Talese conhecia o presidente da empresa, Phil Knight (sim, aquele sujeito interpretado por Ben Affleck no filme Air). Graças aos contatos do amigo, conseguiu a primeira entrevista com a jogadora. Depois, também falou com a mãe e a avó de Liu Ying, e acompanhou a seleção chinesa por meses.
O futebol é a janela pela qual observamos a história. As histórias dessas mulheres são atravessadas pelas enormes mudanças ocorridas no século XX, desde a queda do último imperador até o processo de transformação econômica alavancado por Deng Xiaoping, passando pelos horrores da Revolução Cultural. Tais mudanças são muito bem simbolizadas pelo que acontece com o lar da família de Liu Ying, uma das “residências baixas e seculares, com portais treliçados em arco, que se abriam para um beco antigo chamado hutong”. No processo de canibalização modernizadora, e em vista das Olimpíadas de 2008, que Beijing sediaria, “a casa com pátio em que Liu Ying nascera e fora criada” acaba demolida, “sua localização (…) perdida em montanhas de entulho”. A comunidade familiar que assistiu pela TV à final da Copa de 1999 se dispersa. O custo humano da “modernização” é incalculável.
Por fim, a busca de Talese não esconde certa ânsia por redenção. Ele gostaria que Liu Ying alcançasse um triunfo que obliterasse o pênalti perdido. Mas, como o próprio Baggio (ou o nosso Zico) poderia atestar, as coisas não funcionam assim, seja no futebol, seja na vida.

Três cartas de William Gaddis

Do livro THE LETTERS OF WILLIAM GADDIS
(ed. Steven Moore. Dalkey Archive Press, 2013).
A Dalkey lançou há pouco uma nova edição, revista.
Mais sobre Gaddis
AQUI.

Para Charles Socarides.

[Um amigo de Harvard (…). Esta é a primeira carta em que é explicada a ideia fundamental e a trama de The Recognitions.]

Pedro Miguel, Zona do Canal
[fevereiro ou março de 1948]

prezado Charles.
Primeiro — por favor, não se alarme com o peso desta correspondência que pareço despejar em você. Mas, quando você escreve uma carta como a que acabei de receber, sinceramente, eu perco a cabeça de tanta empolgação. Terrivelmente nervoso agora.
Tudo porque estive fora por 3 dias, em uma ilha próxima, trabalhando freneticamente nesse romance. Que parece tão ruim. Mas, assim: veja, o que você diz nessas cartas — mais especificamente na última — me aborrece porque as imagens que você traça, os fatos que apresenta, são exatamente como esse romance que está crescendo. É um bom romance, excelente, todo o encadeamento da história, os acontecimentos, o frenesi. O homem que (metaforicamente) se vende para o diabo, o jovem assim à caça de uma figura paterna, perseguindo o mais velho até a sua (do jovem) morte. E a “garota” — que acaba perdendo por completo a própria identidade, que tentou criar um mito original, ela se perde porque sua última testemunha (um camarada que usa heroína) é preso — o jovem (“herói”) sendo o delator. Eis o ponto avassalador: que tudo isso aconteceu. Não para valer, talvez, mas com os fatos da vida recente e a minha fuga, aconteceu. O tempo inteiro, a cada minuto, a coisa cresce em mim, eu “penso em” (ou me lembro de) novos fatos do romance — a Verdade sobre o Passado (título alternativo). (O título é Ducdame, chamaram ‘algumas pessoas que estavam nuas’¹.) Mas essa ficção que cresce se encaixa tão insanamente bem nos fatos da vida que, às vezes, não consigo suportá-la, preciso descarregar (como estou fazendo aqui). E então eu a arruíno por escrever mal. Como ao tentar ser inteligente — talvez por medo de ser sincero? Mas me vejo arruinando tudo. E então — porque quando escrevia na faculdade eu exagerava tanto, agora [o que escrevo] deve ser reservado, sutil, insinuado. Ou os trechos ruins de escrita simplesmente se acumulam. Veja: “Há poucas situações em que não tentamos controlar o tempo; seja ao incitá-lo desvairadamente, ou quando, apavorados, assistimos à passagem de sua carruagem alada, que respinga em nós a lama que chamamos de memória”. Não é tão horrível. Veja, isso simplesmente aconteceu, estava fora do meu controle até que a sentença chegou ao ponto final. Ser superficial pode matar o que deve estar vivo.
(…) Estamos sozinhos, nus — e a nudez deve escolher entre a vulgaridade e a razão. Cada um de nós, responsáveis. (…)
Gostaria de vê-lo agora, se você pudesse dar uma olhada nessa coisa, condensá-la peremptoriamente (partes dela) — a escrita, exposição. Deus, eu conheço todo esse medo, mas não simpatizo com ele. Tolos. Não posso me dar ao luxo de ser um.
É como se a sua carta antecipasse exatamente o que estou escrevendo como ficção.
Não posso ir para casa antes de junho. Por causa de dinheiro. Sempre isso. Posso viver em Long Island depois de junho, mas não antes do verão, entende? Preciso trabalhar nesse maldito canal até abril, espero economizar cerca de 600 dólares, o bastante para sobreviver até junho e ir para casa. Eu odeio isso, ser pago 12 dólares por dia — ou noite — para desperdiçar. Agora são 10:15 da noite — e tenho que estar no canal às 11, “trabalhar” até as 7 da manhã. Mas preciso fazer isso por causa do dinheiro. Talvez seja uma coisa boa não ter dinheiro, me apaixonei loucamente pela filha do governador local da ilha — não é mexicana, panamenha, mas espanhola. Nariz esplêndido. Pelo amor de Werther, não lhe cai mal. É um inferno não ter tempo nem dinheiro para viver.
Então, há esse homem aqui que vai para a Suécia em um veleiro. E, se o romance de repente parecer ruim demais, devo ir com ele, precisa de alguém para trabalhar, um barco bem pequeno, à vela.
Deus, a fuga, fuga. Você entende, não? Eu, quase. Mas, se eu não conseguir criar um bom romance, então devo continuar fugindo, até que saiba tudo por mim mesmo — não só como fato filosófico, como uma verdade na qual “acredite” e esteja tentando vender — mas que eu possa me sentar e saber sem ter de tentar vendê-la (escrevendo) para todo mundo.

Obrigado. Vou escrever para você.
W.

¹ Ducdame, called ‘some people who were naked’: “Ducdame” é uma palavra nonsense da canção de Jacques em Como gostais, de Shakespeare, a qual ele jocosamente define como “uma invocação grega para juntar bobos em um círculo” (5.2.53). “Algumas pessoas que estavam nuas” é provavelmente da peça Vestir os Nus, de Pirandello (…). (N.E.)

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Para J. Robert Oppenheimer.

[Físico norte-americano (1904-67), conhecido por seu trabalho no desenvolvimento da bomba atômica. Em 26 de dezembro de 1954, ele deu uma palestra intitulada “Perspectivas nas Artes e Ciências” durante as celebrações do bicentenário da Universidade de Columbia. A palestra foi reproduzida em seu livro The Open Mind (1955). A carta a seguir é um rascunho corrigido.]

Cidade de Nova York
4 de janeiro de 1955

Caro Doutor Oppenheimer.
Já tomei uma liberdade maior do que esta (…) ao ligar para a Harcourt, Brace & Co., que está publicando um longo romance que escrevi, e pedir a eles que enviassem um exemplar para o senhor. O senhor deve receber todo tipo de correspondência, mensagens excêntricas e cartas de fãs de todos os tipos, mas poucas, penso eu, contendo meio milhão de palavras. E, uma vez que posso também imaginar que o senhor raramente lê romances, nem que seja pela falta de tempo, é uma imposição a mais lhe enviar um [romance] tão volumoso.
Mas, por ter lido sua recente palestra no aniversário da Columbia, eu jamais deveria ter considerado fazer algo assim. Mas fiquei tão abalado com a concisão, e o uso da linguagem, com que o senhor indicou os problemas que me tomaram sete anos para reunir e quase mil páginas para apresentar, que a primeira coisa a me ocorrer foi o envio do exemplar. E submeto esse livro ao senhor com o mais profundo respeito. Porque eu acredito que The Recognitions foi escrito sobre “o caráter colossal da dissolução e da corrupção da autoridade na fé, no ritual e na ordem temporal (…)”, sobre as nossas histórias e tradições como, “ao mesmo tempo, laços e barreiras entre nós”, e [sobre] a nossa arte, que “nos une e separa”. E, se eu puder continuar usando as suas palavras, é um romance no qual demoradamente tentei o meu melhor para mostrar “a integridade da arte mais íntima, detalhada, verdadeira, a integridade do trabalho artesanal e da preservação do que é familiar, cômico e belo”, em “enorme contraste com a vastidão da vida, a imensidão do globo, a alteridade das pessoas, a diversidade dos caminhos e a escuridão que a tudo abarca”.
O livro é um romance sobre fraude. Sei que, caso venha a lê-lo, o senhor encontrará passagens maçantes, incidentes ofensivos e algumas imaturidades belas e dolorosas, tudo isso em minhas tentativas de apresentar “os males da superficialidade e os terrores da exaustão” tal como os vi: tentei expor a sombria luta de um homem cercado por aqueles que “se dissolveram em uma confusão universal”, aqueles que “nada sabem e nada amam”.
(…)

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Para Johan Thielemans.¹

[Em seu livro Vrijheid in de steigers (Haarlem: In de Knipscheer, 1985), o crítico holandês Graa Boomsma narra uma visita a William Gaddis (pág. 24, com Joseph Heller dando uma passadinha), e, algumas páginas depois, descreve como, estando ele e Gaddis na varanda, Thomas Pynchon apareceu para bater um papo (pág. 28).]

Wainscott, Nova York 11975
11 de outubro de 1985

Caro Thielemans,
Obrigado pela sua carta de 30 de setembro com a notícia — inédita para mim — de que Graa Boomsma não só nos visitou em Long Island como encontrou Thomas Pynchon aqui! Ele me escreveu sobre essa viagem para os Estados Unidos, esperando que nos encontrássemos, mas houve alguma confusão & isso nunca aconteceu, certamente não aqui, e por certo não com [a presença de] Pynchon (a quem eu nunca conheci, não obstante as muitas alegações dos críticos acerca da similaridade entre nossas obras: vejo que ambos somos classificados como paranoicos & conspiratórios, mas quem, à exceção de James Michner², não é?). E, então, eu ficaria muito agradecido se você pudesse me enviar, quando tiver tempo, uma cópia desse trecho traduzido. Muito curioso.
(…)

¹ O belga Johan Thielemans é um crítico literário especializado em literatura norte-americana. Publicou vários artigos sobre a obra de Gaddis.
² Imagino que Gaddis esteja se referindo ao norte-americano James A. Michener (1907-1997), autor best-seller de longos (e anódinos) romances históricos e sagas familiares, coisas como Fogos da Primavera, Sayonara e Texas.

No Estadão: “Geração Cerrado”.

Por Amanda Calazans.

Com o peito inchado de tristeza após a partida de um filho, Zé Minino, protagonista de Farejador de Águas, observa a Lua subir e cobrir de luz tudo o que os olhos enxergam na imensidão do chão e se pergunta: “Pra que sair daqui, gente?”.
O romance da escritora goiana Maria José Silveira, publicado pela editora Instante em junho, divide o cenário do Cerrado do Centro-Oeste com os livros de André de Leones (Vento de Queimada, Record, 2023), Fabiane Guimarães (Como se Fosse um Monstro, Alfaguara, 2023) e Paulliny Tort (Erva Brava, Fósforo, 2021). São autores com tempo variado de produção anterior, mas todos com novos livros que exploram uma paisagem ainda rara na literatura brasileira.
A sincronia literária acompanha a maior representação do Centro-Oeste no cinema, como em Mato Seco em Chamas e Fogaréu, lançados no ano passado, e no mercado de artes plásticas, com a inauguração recente da Cerrado Galeria, em Goiânia. Na cultura pop, a região com a população que mais cresce no País é representada na novela da Globo Terra e Paixão e pelo fenômeno do “agronejo”, em que se destaca Ana Castela, cantora mais ouvida no Brasil hoje.

Paisagem rara

O Cerrado do Centro-Oeste, no entanto, ainda é uma paisagem rara na literatura brasileira, mesmo entre o repertório de leitores da região. Foi assim na infância de Paulliny Tort, de Brasília. Além de Cora Coralina, ela não teve contato com outras narrativas baseadas em sua terra.
“Eu não fugi à regra”, diz Maria José Silveira, que hoje vive em São Paulo. Embora tivesse autores goianos à disposição na biblioteca do pai, eles não despertavam seu interesse. “Os leitores preferem ler quem já foi aprovado pelo eixo Rio-São Paulo e os estrangeiros.”
Fabiane Guimarães, nascida em Formosa (GO), também só descobriu referências locais depois de adulta, já vivendo no Distrito Federal. “Várias vezes me falaram que eu fui a primeira autora que eles leram que escreve sobre Brasília. Aí, eu começo a puxar outros”, conta ela.
Já André de Leones leu mais autores do Centro-Oeste, como Yêda Schmaltz, Bernardo Élis e José J. Veiga, antes de se tornar escritor. Radicado em São Paulo, ele costuma doar exemplares de seus livros para a Biblioteca Pública Coronel Pirineus, de Silvânia (GO), onde cresceu.

Marcha para o Oeste

“Claro que isso tem a ver com a formação colonial do País, que começou ali pelas bordas, e o centro só foi ocupado há pouco tempo”, diz Fabiane sobre a atenção diferente dada a obras do Centro-Oeste. A construção da capital federal, bem como a passagem da Coluna Prestes por Goiás, a Marcha para o Oeste, o movimento de Santa Dica e a Revolta de Trombas e Formoso, está presente no livro de Maria José.
Embora reconheça que o vazio de referências literárias do Centro-Oeste existiu na sua formação como leitora, Paulliny afirma que não o sentiu. “Em nenhum momento eu falei ‘puxa, como eu gostaria de ler um livro que se passasse na minha cidade’. Acho que eu pensava ‘puxa, como eu gostaria de escrever um livro que se passasse aqui’.” Sua obra Erva Brava, finalista do Prêmio Jabuti 2022 na categoria de contos, reúne histórias localizadas em Buriti Pequeno, cidade fictícia do interior de Goiás.

Cerratense

Mais do que personagens típicos do Centro-Oeste, Paulliny buscou retratar nos contos que compõem Erva Brava um mundo em desaparecimento que ela teve a oportunidade de conhecer. “Brasília foi construída para aproximar esta região do litoral, e isso foi muito recente, então nós temos pessoas vivas que viveram esse isolamento.” Longe de ser regra, alguns de seus personagens nunca viram o mar, “um símbolo de outras coisas que não estão acessíveis”. No conto Má Sorte, por exemplo, que narra um acidente com um trabalhador em um silo de soja, ela escreve: “Justo você, que nunca viu o mar, vai morrer em mar seco”.
Embora Vento de Queimada tenha uma personagem adulta que vai à praia pela primeira vez em Santos, De Leones discorda que a pouca familiaridade com o mar seja uma característica comum do cerratense. “Mas, por outro lado, gosto de pensar que as amplidões do Cerrado, o clima seco, a vegetação, tudo isso influencia de alguma forma no temperamento dos meus personagens.”
No romance, um “pequi noir” segundo o autor, pai e filha trabalham como matadores em Goiás. Os muitos diálogos e monólogos interiores do livro são cheios de expressões locais como “tem base um trem desse?”, “disgrama”, “uai”, um “jeito de falar oscilando entre a caipirice e um registro mais urbano a depender da companhia e/ou do grau de irritação ou alcoólico”, como é definido o ex-policial civil assassino.

‘Criatura do deserto’

Já a gastronomia típica do Centro-Oeste está presente principalmente em Farejador de Águas, em que Maria José descreve o passo a passo de uma pamonhada e o cozimento do pequi. Em Erva Brava, além dos alimentos da terra há o domínio do refrigerante e o café muito doce. “A relação com o açúcar tem muito de uma memória afetiva minha. Mas acho que não é só aqui”, diz Paulliny.
“A gente tem paisagens que são muito interessantes para se explorar numa ficção”, afirma Fabiane. “Acho incrível estar em Brasília, num prédio que parece uma coisa alienígena, aí, você dirige 20 minutos e chega a um paraíso com cachoeiras.” Em Como se Fosse um Monstro, uma mulher que foi barriga de aluguel nos anos 1980 recebe uma jornalista com motivações pessoais para entrevistá-la. Damiana, a entrevistada no romance, sai de Formosa para Brasília, “uma cidade chique e bonita, porque é onde o presidente mora”.
A chuva em Brasília é um acontecimento, diz Fabiane em uma manhã de junho coincidentemente chuvosa. “Eu acho que todo mundo que vive aqui é no fundo uma criatura do deserto.” Uma forma comum de o cerratense fazer as pazes com a água, segundo ela, é ir tomar banho de cachoeira no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no nordeste de Goiás.

Devastação ambiental

Assim como em Erva Brava, que fecha com uma enchente em Buriti Pequeno, a devastação ambiental também é o tema central de Farejador de Águas. No livro de Maria José, cem anos da história de Goiás e do Cerrado são contados a partir dos rumos de Zé Minino. Antropóloga, Maria José usa na literatura o método de histórias de vida, que são marcadas pelo entorno e pela cultura em que estão inseridas, segundo a autora. “É um romance que se passa no Cerrado, não se passaria em outro lugar.”
No romance, o único filho a estudar na Universidade de Brasília (UnB), que o irmão dele ajudou a construir, fala a Zé Minino a respeito de uma entrevista do pesquisador do Cerrado Altair Sales Barbosa, este um personagem da vida real, com quem o estudante aprendeu sobre a “floresta de cabeça para baixo”, a água retida que ajuda a formar as maiores bacias que abastecem o País, o risco do desmatamento de árvores como o buriti, que leva 500 anos para atingir 30 metros.
Além da preocupação com a devastação ambiental que ocorre no Cerrado, os autores ouvidos para esta reportagem atribuem a publicação de livros sobre o Centro-Oeste por editoras nacionais também a um interesse recente do mercado editorial por novas vozes. “Basta observar o saudabilíssimo aumento da diversidade de vozes. Há vozes da periferia, vozes gays, vozes pretas, vozes de toda parte, e isso é ótimo”, diz De Leones.
“Mas ainda falta”, avalia Paulliny. Para ela, os eventos literários continuam deixando a desejar na representação do Centro-Oeste. Com nove romances já publicados, Maria José sugere que as editoras busquem autores “novos não só na idade, mas de temas novos que digam alguma coisa além do que já foi demasiadamente dito”. Fabiane concorda: “Diversificar é urgente até para a nossa literatura caminhar e ganhar novos tons”.
O interesse do público pela literatura do Cerrado não tem limitações geográficas. “Eu não estou falando só de uma região, estou falando de um país”, afirma Fabiane, que percebe ter mais leitores de fora de Brasília. No caso de Erva Brava, segundo Paulliny, a identificação com o cenário onde seu livro é ambientado pode ocorrer com qualquer pessoa que tenha tido alguma experiência no campo. No entanto, a autora prefere que o interesse seja na perspectiva do autor do Centro-Oeste, e não em uma temática própria da região.
A autora reconhece que ser uma escritora mulher, jovem e do Centro-Oeste é uma chance de ser lida neste momento de valorização de vozes diversas. “Mas o que a gente quer é que todo mundo seja analisado como literatura brasileira.” Num país de tão poucos leitores, Paulliny, por sua vez, não se incomoda com rótulos que o seu livro possa receber. “Se for esse tom pitoresco, exótico, que vai atrair o leitor, que seja. O importante é que as pessoas estejam lendo.”

“Vento de queimada” – release

ROMANCE LEVA O LEITOR A UM FAROESTE À BRASILEIRA

Em Vento de queimada, André de Leones instiga o leitor a vivenciar aspectos pouco vistos e explorados do Brasil dos anos 1980. Isabel é a protagonista desse novo romance, que se desenrola em meio à violência na região centro-oeste. Com texto de orelha assinado pela escritora Luisa Geisler, a obra será adaptada para o cinema pela Conspiração Filmes.

Vencedor em 2006 do Prêmio Sesc de Literatura, que completa 20 anos em 2023, e finalista do Prêmio São Paulo, André de Leones traça em Vento de queimada um retrato de um país composto por beleza, mas também por horror. Isabel, a protagonista, é uma matadora. Junto com o pai, um ex-policial, ela executa serviços para figuras poderosas e influentes no estado de Goiás.
A história se passa em 1983, no centro-oeste brasileiro. Estamos nos estertores da ditadura, e bandidos de todos os tipos circulam pelos porões da cena política nacional. Vento de queimada é sobre o custo-Brasil: cadáveres e mais cadáveres se amontoam, e às vezes o único jeito de alcançar a saída é atirando. Uma narrativa amoral sobre criaturas imorais.

Trecho:

“Desceram ao mesmo tempo. Ela contornou o carro e se sentou ao volante, pronta, enquanto ele avançava, revólver em punho. O frentista terminara de abastecer e encaixava a mangueira na bomba, bocejando. Ainda fora do carro, o fulano tinha parado de dançar e dizia alguma besteira para a mulher, que ria bem alto. Um baque, o frentista caindo no chão. Depois, os disparos. A mulher se encolheu toda, escondendo a cabeça. Não gritou, não tentou fugir. Por um segundo, Isabel teve a impressão de que Garcia também a mataria, mas, depois de se abaixar e dar uma boa olhada na fulana, soltou uma risadinha e deu meia-volta, balançando a cabeça.”

 

VENTO DE QUEIMADA
André de Leones
518 págs. | R$ 89,90

Ed. Record | Grupo Editorial Record

Informações à imprensa:
Simone Magno
[email protected]
(21) 99998-7854

Sobre “Vento de queimada”

Vento de queimada é um romance sobre uma matadora chamada Isabel. A história se passa em 1983, em Goiânia, Brasília, interior de Goiás, São Paulo e outras vizinhanças¹. Estamos nos estertores da ditadura, e bandidos de todos os tipos, fardados ou não, orbitam em torno do corrupto, inchado e ingovernável estado brasileiro. Pessoas são assassinadas a troco de nada ou muito pouco, em intrigas e conflitos tão mesquinhos quanto não raro inexplicáveis, e muitos já anteveem o que lucrarão com a retorno previsto, mas ainda indefinido, das eleições diretas.

Isabel é historiadora por formação e matadora por deformação. As razões que levaram uma graduada pela Universidade de Brasília ao crime são delineadas a certa altura (mas só até certo ponto) do romance, e elas passam pela figura do pai, William Garcia, ex-policial e assassino profissional que ostenta uma tatuagem (invertida) de “Behemoth e Leviatã”, de William Blake, bem no meio das costas. Garcia está em conflito com o Velho, um bandido muito bem relacionado, amigo de ex-senadores e inimigo de mulheres magras. Há, também, a figura do Gringo, o misterioso Andrew J. Gordon — será que Isabel pode confiar nele?

Na maior parte do tempo, frequentamos a cabeça de Isabel e compartilhamos de suas dúvidas, temores e afetos. Uma mulher sozinha cercada por Homens de Bem™️. O que começa mal, termina mal, mas isso não é um spoiler. Vento de queimada é um romance sobre o custo-Brasil: cadáveres e mais cadáveres se amontoam, e às vezes o único jeito de alcançar a saída (qualquer saída) é atirando. Em sendo assim, é uma narrativa amoral sobre criaturas imorais. Um autêntico pequi noir.

A gênese do romance está no conto que dá título ao livro Paz na Terra entre os monstros² (leia AQUI), escrito por volta de 2004. Estão ali dois matadores, pai e filha, mas é claro que, mais de quinze anos depois, quando passei do conto ao romance, muita coisa mudou³. Quanto à estruturação, acho que escrevi uma carta de amor para Xenofonte (como se ele já não tivesse muitos problemas para resolver). Para o bem e para o mal, estamos mergulhados em um determinado oceano cultural e nele navegamos, abordando temas similares há milênios — família, poder, violência, memória, sexo, morte etc. Ter consciência disso, dessa tradição, e trabalhar com e a partir dela, é algo importantíssimo. Para um escritor, é a diferença entre saber nadar e se afogar.

Também procurei concretizar certas coisas que (vá lá) “teorizei” AQUI. Um mundo disfuncional pede histórias disfuncionais, e histórias disfuncionais são mais bem desenvolvidas assim disfuncionalmente. Eu poderia dizer que peco pelos excessos, mas não acredito em pecado e peso mais de noventa quilos.

Lancei meu primeiro livro há 17 anos. Vento de queimada é o sétimo romance que publico, e há nele algo da raiva que anima Hoje está um dia morto, bem como da explicitação de uma falsa dicotomia (entre “mundo” e “submundo”) que comecei a desenvolver em Abaixo do paraíso. Neste, Cristiano provou da violência e voltou correndo para a casa do pai. Talvez Isabel não tenha para onde correr. E, mesmo que tivesse, a verdade é que ela não correria. De jeito nenhum.

(Leia um trecho de Vento de queimada AQUI.)

……

¹ Há um capítulo com vista para o Atlântico; cuidado para não se afogar.
² No mesmo livro, a novela “Aneurisma” apresenta uma personagem que escreveu um romance protagonizado por um matador; eu era ingênuo, achava que a ficção me protegeria de certas coisas.
³ Isabel, por exemplo, desaprendeu a rezar.

Putnam

Traduzi o artigo Cérebros em uma cuba (Brains in a vat), de Hilary Putnam. Clique AQUI para ler e/ou baixar.

É o primeiro capítulo de Reason, Truth and History (Cambridge University Press, 1981, pp. 1-21). O uso de Putnam de uma forma de argumento transcendental (em que, grosso modo, premissas subjetivas levam a uma conclusão objetiva) me parece mais consequente do que a formulação inicial de Peter Strawson em Indivíduos, embora também tenha recebido críticas. Vale ressaltar que algumas dessas críticas, como a de Crispin Wright em “On Putnam’s Proof That We Are Not Brains-in-a-Vat” (artigo publicado em Proceedings of the Aristotelian Society, 92), parecem algo despropositadas: Wright baseia seu ataque em apenas uma das ideações de Putnam (alguém cujo cérebro é arrancado do corpo por um cientista perverso etc.), ignorando que o filósofo, ao desenvolver o argumento, cogita outras possibilidades (apagamento da memória) e radicaliza a brincadeira (“Talvez não haja um cientista perverso, talvez (…) apenas calhou de o universo consistir em um maquinário automatizado que supervisiona uma cuba cheia de cérebros e sistemas nervosos”).

Canto LXXVI

“E o sol”: Hélio, a presença divina no mundo. Pound parece se imaginar em casa, em Rapallo, assistindo ao nascer do sol.

“dove sta memora”, “onde vive a memória”: da tradução de Pound de Donna mi prega.

“Signora Agresti”: a britânica Olivia Rossetti Agresti (1875-1960) foi uma ativista e intelectual, filha do crítico de arte William Michael Rossetti e da artista e modelo Lucy Madox Brown. Agresti viveu por muitos anos em Roma e se correspondeu com Pound. Ideologicamente, ela foi do anarquismo ao fascismo, o que seria cômico se não fosse estúpido. Com sua irmã Helen Rossetti Angeli (1879-1969), publicou um jornal anarquista, The Torch. Depois, usando o pseudônimo “Isabel Meredith”, elas publicaram o livro A Girl Among the Anarchists.

Alcmene ou Alcmena é uma personagem mitológica, mulher de Anfitrião e mãe de Héracles. As dríades são ninfas associadas aos carvalhos (δρῦς, drýs). Cada dríade nascia junto com uma árvore e com ela morria. As hamadríades também são ninfas, mas associadas a outras espécies de árvores. As helíades são as ninfas filhas de Hélio.

“Dirce et Isotta (…) Primavera”, “Dirce e Isotta e ela que se chamava Primavera”: Dirce, esposa de Lico, rei da antiga cidade que depois viria a se chamar Tebas. A sobrinha deles, Antíope, foi estuprada por Zeus e deu à luz os gêmeos Anfião e Zeto. Dirce maltratava Antíope e queria matá-la. Antíope e os filhos se vingaram. Com a ajuda de alguns pastores, mataram Lico. Depois, os gêmeos amarraram os cabelos de Dirce nos chifres de um touro, que a arrastou até matá-la. Isotta degli Atti foi amante e depois a terceira esposa de Sigismundo Malatesta (v. Canto IX). “Primavera” era a amada de Guido Cavalcanti, para quem ele compôs diversas canções. As três mulheres estão “no ar intemporal” porque foram cantadas por poetas.

“or nel crivo ed al triedro?”, “ou na encosta e no triedro”: lugar onde se cruzam três estradas. Pound passava por uma encruzilhada dessas na estrada entre Rapallo e Sant’Ambrogio.

“sotto…”, “sob os nossos penhascos”; “pela Aurélia até Roma”: Aurélia é a via costeira que liga Roma a Pisa, e esta a Gênova; “la vecchia”, “a velha”: a velha estrada em S. Pantaleone; “qual (…) scalza”: “aqui na esquina e garota descalça” (na edição brasileira, está “scala” em vez de “scalza”).

“e ela que disse: ainda tenho o molde”: Caterina Sforza Riàrio (1463-1509), filha bastarda de Galeazzo Maria Sforza, foi casada com Girolomo Riàrio (sobrinho do papa Sisto IV) e depois com Giovanni de Médici. Após a morte de Sisto IV, em 1484, Caterina (grávida de sete meses) tomou de assalto o Castelo de Santo Ângelo e tentou forçar os cardeais a indicarem algum parente seu como o próximo papa. Não obteve sucesso e foi embora com o marido para Forlì. Lá, em 1488, por obra de uma conspiração organizada pela família Orsi, Girolomo foi assassinado e Caterina, aprisionada com os seis filhos. No entanto, os conspiradores não conseguiram tomar a fortaleza de Ravaldino, fundamental para a defesa da cidade. Caterina, então, ofereceu-se para ir até lá e convencer o castelão, Tommaso Feo, a depor as armas. Como os filhos dela seriam mantidos como reféns, os Orsi acreditaram que Caterina manteria a palavra. No entanto, uma vez lá, ela se juntou à sublevação. Quando os Orsi ameaçaram matar os filhos, conta-se que Caterina subiu na muralha, ergueu o vestido e, exibindo a genitália, berrou: “Fatelo, se volete: impiccateli pure davanti a me… qui ho quanto basta per farne altri!” (“Faça isso, se quiser; pode enforcá-los na minha frente… aqui tenho o que preciso pra fazer outros!”). Na versão de Pound: “Ainda tenho o molde”. Os Orsi não tiveram coragem de matar a filharada. Com a ajuda de Ludovico il Moro, seu tio, Caterina retomou o controle de toda a cidade. Não por acaso, Maquiavel elogia Caterina nos Discorsi (III, 6).

“cette… venggg”, “aquele vento podre”.

Monte Segur foi a última fortaleza dos albigenses, na Provença, a ser destruída na cruzada do século XIII.

“memorat Cheevers”, “Cheever lembra”: Ralph Cheever Dunning (c.1865-1930), poeta norte-americano que viveu suas últimas décadas de vida em Paris. A “muralha da Babilônia” é uma referência ao poema “The Four Winds”, de Dunning, onde lemos: “My garden hath a wall as high / As any wall of Babylon, / And only things with wings shall spy / The fruit therein or feed thereon” (em tradução livre: “Meu jardim tem uma muralha tão alta / Quanto qualquer muralha da Babilônia, / E só coisas com asas podem espiar / O fruto ali dentro ou dele se alimentar”).

Dieudonné foi um famoso chef londrino, cujo restaurante era frequentado por Pound e outros escritores. Nos versos seguintes, os nomes de outros restaurantes (em Paris, Nova York, Viena etc.) são citados.

“Willy” é o escritor Henri-Gauthier Villars, hoje mais conhecido por ter sido casado com Colette.

“mas o raio solar artificial de Eileen…”: no original, “trick sunlight”. A artista Eileen Agar colocava uma lâmpada atrás das cortinas amarelas em sua casa, daí o “truque”.

“Chung” + o ideograma = Pound traduz como “pivô inabalável”. Ele escreve em The Townsman (12 de abril de 1939) que o dinheiro é o “pivô”, “o denominador comum das trocas” e, portanto, “o pivô de toda ação social” (citado por Terrell). Mais abaixo, o ideograma seguinte é “Ch’eng”, “sinceridade”. “Kung fu Tseu”: “K’ung”, Confúcio; “fu Tseu”, “mestre”. “Chung ni” é outro nome de Confúcio.

“cada qual em nome de seu deus”: Miqueias 4,5. Variações dessas palavras de Miqueias aparecem nos Cantos LXXIV, LXXVIII, LXXIX e LXXXIV.

Pound visitou uma sinagoga em uma de suas estadias em Gibraltar (v. Canto XXII).

“capítulo XIX”: Levítico 19, 35-37 — “Não cometereis injustiça no julgamento, quer se trate de medidas de comprimento, quer de peso ou de capacidade. Tereis balanças justas, pesos justos, medida justa e quartilho justo”.

“Don Fulano”, “Caio”, “Tizio”: algo como “fulano”, “beltrano” e “cicrano”, como se diz coloquialmente no Brasil.

“Por que não reconstruí-lo?”: dos Analectos (239). Alguém sugere a construção de um novo celeiro. Outra pessoa retruca: “Por que não reconstruir o antigo?”. Kung endossa a opinião de que é melhor reconstruir.

“ante mortem no scortum”: fala o estuprador e assassino Louis Till (“Snag”) — “Antes da morte, nenhuma puta”.

“‘no céu (…)’ mulheres”: de Aucassin et Nicolette, história cantada composta no século XII ou XIII. No capítulo 6, Aucassin diz a um clérigo que prefere ir para o inferno, pois lá estarão sua amada Nicolette, cavaleiros, nobres e outras mulheres.

Hans Memlig (c.1430-1495) foi pintor flamengo de motivos religiosos. Mac Elskamp (1862-1931) foi um poeta simbolista belga que também se valia de temas religiosos. Ao citá-los, Pound contrasta a postura irreligiosa de Aucassin com a tradição artística religiosa.

Galla Placidia (388-450) foi imperatriz-consorte do Império Romano do Ocidente, esposa de Constâncio III. Antes, fora casada com o rei dos visigodos, Ataulfo. Seu mausoléu fica na igreja de São Nazário e São Celso, em Ravena, que, ao contrário do que pensa Pound, não foi destruída durante a Segunda Guerra (embora esse rumor circulasse à época).

“Tout (…) fortune”, “Todos dizem que a fortuna não dura”.

“Joyce et fils”: em 1920, James Joyce e seu filho, Giorgio, visitaram Pound pela primeira vez. O encontro se deu na cidade de Desenzano, às margens do lago de Garda, em um dia tempestuoso.

“Miss Norton”: Sara Norton, filha do escritor e crítico de arte Charles Eliot Norton, editou as cartas do pai. Em 1908, Pound a encontrou em Veneza.

“La Figlia de Jorio” é uma pela de Gabriele D’Annunzio (1863-1938).

“l’ara sul rostro”, “o altar na tribuna (ou pódio)”.

“jovem Mozart”: em 16-17 de outubro de 1777, Mozart escreveu uma carta para seu pai. Nela, descrevia o filho de um magistrado que o sacaneava, tirando sarro de um prêmio que recebera. O rapaz ofereceu a Mozart um pouco de rapé, e Mozart ofereceu a mesma coisa em resposta, e nisso ficaram por um tempo. Por fim, Mozart escreveu ao pai dizendo que todos aqueles “patrícios” podiam lamber o rapé de sua bunda. “Prise” é uma pitada de rapé.

“Cythera potens, Kύθηρα δεινα”, “poderosa Citera, terrível Citera”: Citera é um epíteto de Afrodite.

“Κορη, Δελια δεινα et libidinis expers”, “Filha, terrível Delia [Ártemis] para quem a paixão é desconhecida”.

“πολλα παθειν”, “sofrer muito”: da Odisseia I, 4-5 — “(…) as muitas dores amargadas / no mar (…)”.

“af ferae familiares”, “e animais selvagens domesticados”.

“atasal”: provável transliteração do termo árabe que significa “união com o divino”.

“nec personae”, “nenhuma pessoa”. No verso seguinte, “hipóstase” é usada no sentido filosófico (entidade autossuficiente), não teológico.

“Helia” é um erro de impressão. Pound segue falando de Delia.

“Κύπρις”, “Chipre”: o local de culto de Afrodite era Citera, no Chipre.

“ambos os olhos (…) vaca…”: Mary de Rachewiltz, filha de Pound, trabalhou em um hospital militar alemão na Itália, durante a Segunda Guerra. Lá, conheceu um jovem que perdera a visão. Ele reclamou que o pai não cuidava direito de sua vaca.

“un terzo cielo”, “um terceiro paraíso”: Dante, no Paraíso VIII, 37 — “Vós, de quem move o céu terceiro a mente“.

“e Bracken (…) ou seja mentir”: Pound usou artigos publicados na Time em 4 e 11 de junho de 1945 para escrever esses versos. Em 23 de maio de 1945, Churchill (a “boneca-falante”) renunciou ao cargo de primeiro-ministro ao meio-dia; às 16hs, estava no Palácio de Buckingham aceitando o convite do rei George para formar um novo governo. Brendan Bracken foi o ministro da informação que, durante a guerra, supervisionou a censura da BBC. A Time afirma que ele só censurava informações militares, mas Pound pensa diferente.

“ego scriptor”, “eu, o escritor”; “spirit questi? personae?”, “estes são espíritos? pessoas?”.

“Maya” é a filha de Atlas e Pleione, e mãe de Hermes. Ἀφροδίτη, Afrodite. Mais abaixo, “οι βάρβαροι”, “os bárbaros”. “Divae Ixottae”, “Divina Isotta”.

“et sequelae”, “e as consequências”; “Le Paradis…”, “o Paraíso não é artificial”; “δάκρυων”, “chorando” ou “de lágrimas” (se genitivo plural); “L. P.”, “Laval Petain”; “gli onesti”, “os honestos”; “J’ai (…) assez”, “Tenho pena dos outros, provavelmente não o bastante”; “l’enfer…”, “tampouco o inferno”.

“las pastorella…”, “a pastorinha dos suínos”; “benecomata dea”, “a deusa de belas-tranças” (Circe); “le bozze”, “as provas” (do livro A Lume Spento, o primeiro que Pound publicou, em 1908).

A “Era” é a era fascista. “Tullio Romano” é Tulio Lombardo (c.1455-1532), escultor e arquiteto italiano que fez a tumba no Palácio Vendramini (citado antes, entre outras edificações venezianas). As “sereias” são quatro figuras de mármore na igreja de Santa Maria Dei Miracoli, citada alguns versos depois.

“che mi porta fortuna”, “que me traz boa sorte”; “Tio George” é o mesmo George H. Tinkham citado no Canto LXXIV; “voi (…) via”, “você que passa por esse caminho”; “K.H.” é a pianista Katherine R. Heyman, que Pound “empresariou” em 1908.

“Atena”: citação do “Hino a Afrodite”, de Safo; “τις αδικει”, “quem (te) fez mal?”

“Conde Volpe”: Giuseppe Volpi, ministro das finanças fascista. A “princesa” mencionada a seguir é Winnaretta Eugenia.

“Sandro de Dafne”: inversão; no caso, ele se refere à tela “Dafne”, de Boticcelli.

“Trovaso, Gregorio, Vio”: a Igreja de S. Trovaso e a Abadia de S. Gregório ficam às margens do canal do Rio de S. Trovaso.

O “Dottore” é Alexander Robertson, pastor presbiteriano que vivia em Veneza. A “intriga babilônica” refere-se ao fato de que, entre 1309 e 1378, por conta de intrigas com os italianos, os papas (franceses) viveram em Avignon, não em Roma.

“Squero”, “estaleiro”. “Ogni Santi” é um canal em Veneza. Em 1908, Pound vivia na conjunção dos canais Ogni Santi e S. Trovaso.

“coisas têm fins e princípios”: interpretação poundiana de um texto de Confúcio.

“ninho oculto”: pintura abstrata de Tamiosuke Koumé feita para Pound, que a chamava de “o sonho de Tami”. Eles se conheceram em Londres. Koumé morreu em 1923, no terremoto de Tóquio. Na Segunda Guerra Mundial, a pintura foi apreendida pelos aliados e nunca mais foi vista. O “grande Ovídio” era um exemplar raro do Fasti, que também desapareceu.

“64 aldeias…”: no original, “64 countries”. Terrell sugere que o tal sargento está enumerando os países envolvidos na guerra, mas me parece mais uma descrição da região italiana onde se encontra o DTC. Se for o caso, Grünewald foi feliz em sua escolha.

“lisciate (…) ΔΑΚΡΥΩΝ”, “amaciado com lágrimas / lágrimas polidas LÁGRIMAS”.

“ΠΟΙΚΙΑΟΘΡΟΝ, ‘ΑΘΑΝΑΤΑ”: do primeiro verso do “Hino a Afrodite”, de Safo — “… imortal de faiscante trono” (na tradução de Jaa Torrano).

“… anéis de fumo”: no original, “smoke hole”. Referência à segunda parte do Fausto de Goethe, ato II (6819-7004), quando Wagner está criando um ser humano no laboratório, em especial à passagem (na tradução de Jenny Klabin Segall, ed. 34):

WAGNER (baixinho)
(…)
Uma obra esplêndida vem vindo à luz.

MEFISTÓFELES (mais baixo)
Qual é?

WAGNER (mais baixo)
Um ser humano.

MEFISTÓFELES
Um ser humano! E que casal de amantes
Fostes trancar no tubo da fornalha?

“saeva”, “cruel”; “po’eri di’aoli”, “pobres diabos” (logo, o tradutor devia ter flexionado a frase, “enviados à matança”).

“Knecht [e] gegen Knecht”, “escravo contra escravo” ou “servo contra servo”: de volta à mesma passagem do Fausto. Mefistófeles diz (6956-6963):

Oh não! Deixa de lado a eterna gritaria
Brigas sem fim da escravidão e tirania.
A mim me enfadam, pois apenas cessam,
Logo a partir do zero recomeçam.
E ninguém nota: é Asmodeu que as provoca,
E que se esconde atrás dessa baldroca.
Dizem que a liberdade é a aspiração;
E olhando, servos contra servos são.

“ΜΕΤΑΘΕΜΕΝΩΝ”, “mudança” (Aristóteles, Política); “ΝΗΣΟΝ ‘ΑΜΥΜΟΝΑ”, “ilha egrégia” (Homero, Odisseia XII, 261, quando Odisseu chega à ilha de Hélio-Sol).

Canto LXXV

“Flegetonte” é um rio de fogo no Hades. Ele também corre pelo Inferno de Dante (v. Canto XII, 46–48; 103-138; a gravura acima é de Gustave Doré), lá descrito como um rio de fogo e sangue fervente no qual estão imersos aqueles que, em vida, cometeram crimes violentos (os tiranos mergulhados até os olhos; os homicidas, até o pescoço; e os salteadores, até o peito). Vale sublinhar que, nesse caso, o Flegetonte também tem poderes curativos, uma vez que precisa preservar aqueles que ali estão, a fim de torturá-los pela eternidade afora. No Canto VI da Eneida de Virgílio, quando da catábase, Eneias também contempla o rio e o que ele circunda (548-558, na tradução de Carlos Alberto Nunes, ed. 34):

Vira-se Eneias, e viu no sopé de uma rocha, à sinistra,
descomunal fortaleza por tríplice muro cintada,
que o Flegetonte sombrio circunda com chamas do Inferno;
pedras de estrondo invulgar entrechocam-se na correnteza.
Em frente vê-se uma porta gigante de fortes colunas,
de aço tão duro, que forças humanas, nem mesmo as espadas
dos próprios deuses, podiam quebrá-las. Ao lado, uma torre,
onde Tisífone se acha, com o manto coberto de sangue,
sem pregar olhos, de noite e de dia a escutar, vigilante.
Ouvem-se crebros gemidos, açoites vibrados com raiva,
férreas batidas, barulho infernal de grilhões arrastados.

Tisífone é uma das três Fúrias (ou Erínias) e personifica o castigo. Suas irmãs são Megera e Alecto. Dentro da fortaleza, Radamanto (irmão de Minos e um dos três juízes dos Infernos) interroga e tortura os culpados, prolongando ao máximo o sofrimento, no que é auxiliado pelas Fúrias. Quem guarda a entrada da fortaleza é a Hidra de Lerna, um monstro com corpo de dragão e várias cabeças de serpente.

“Gerhart” é o compositor e pianista alemão Gerhart Münch (1907-1988), amigo de Pound, que o recebeu diversas vezes em Rapallo nos anos 1930. Lá, organizava concertos com Olga Rudge.

Dieterich Buxtehude (1637-1707) foi um compositor e organista teuto-dinamarquês do período barroco.

Ludwig Klages (1872-1956) foi um intelectual alemão, autor de Der Geist als Widersacher der Seele (“O intelecto como adversário da alma”), obra que influenciou Münch. Eles chegaram a se corresponder.

“Ständebuch de Sachs”: referência a um livro com ilustrações de Jost Amman para as canções de Hans Sachs.

“não de um só pássaro, mas de muitos”: Münch fez arranjos para violino e piano de Le Chant des Oiseaux (“O canto dos pássaros”), do compositor renascentista francês Clément Janequin (1485-1558). Ouça AQUI. A reminiscência também se dá por conta dos pássaros que Pound ouvia quando estava engaiolado.

Em Rapallo, Münch pesquisou e editou os manuscritos com músicas do século XVI do musicólogo e luthier italiano Oscar Chilesotti (1848-1916). Ao fazer isso, ele se deparou com um arranjo para alaúde do Chant des Oiseaux feito pelo italiano Francesco da Milano (1497-c.1543). Münch usou o arranjo de Milano como base para criar o seu, e o resultado agradou bastante Pound. O poeta ficou impressionado como “os pássaros ainda estavam lá” nas versões de Milano e Münch, conforme afirma em ABC da Literatura (trad.: Augusto de Campos e José Paulo Paes, ed. Cultrix, p. 59):

“Clement Janequin escreveu um coro com sons para os cantores das diferentes partes do coro. Esses sons não teriam qualquer valor literário ou poético sem a música, mas quando Francesco da Milano os adaptou para alaúde, os pássaros ainda estavam na música. E quando Münch os transcreveu para instrumentos modernos, os pássaros ainda estavam lá. Eles ainda estão lá na parte do violino.”

Pound liga a forma dinâmica da composição de Janequin à “rosa na poeira de aço (the rose in the steel dust)” e à “penugem do cisne (swansdowm)”, versos que estão no final do Canto LXXIV. Terrell cita as palavras de Pound sobre isso (em Guide to Kulcher, pags. 151-152):

“A forma, o concetto imortal, o conceito, a forma dinâmica que é como o padrão da rosa cravado nas limalhas de ferro mortas pelo próprio ímã, não pelo contato material. (…) Cortadas pela camada de vidro, a poeira e as limalhas sobem e se ordenam. (…) Assim, a forma, o conceito surge da morte. (…) O conceito de Janequin assume uma terceira vida no nosso tempo. (…) E acho que sua ancestralidade remonta a Arnaut Daniel e sabe Deus a qual ‘antiguidade oculta’.”

E o próprio Terrell nos diz: “O leitor deve parar e pensar: o Canto LXXV é um exemplo da forma ou da forma dinâmica d’Os Cantos como um todo, bem como um movimento de transição para fora do inferno (…), rumo ao paradiso terrestre” (em A Companion to the Cantos of Ezra Pound – vol. II, University of California Press, p. 389).

Eis o ideograma que aparece manuscrito ao final da partitura:

Ele significa “torne isso novo”.

As palavras manuscritas no começo da partitura foram traduzidas por Grünewald e estão em uma nota ao final do Canto.

Os Cantos Pisanos LXXIV-LXXXIV (1948)

CANTO LXXIV
Da gaiola, Pound vê & alucina o mundo.
Mussolini está morto. O poeta está só.
Resumo/reavaliação/retomada
do projeto dos Cantos,
para o bem (poesia) e para o mal (política).

CANTO LXXV
Para fora do Flegetonte (e do inferno).
Münch rearranja Francesco da Milano,
que rearranjou Janequin: “O canto dos pássaros”.
A forma dinâmica dessas transições
(e)levando o poeta rumo ao paraíso.

CANTO LXXVI
Hélio-Sol abre e encerra o Canto: memorat Pound;
“dove sta memora”.
Preso, ele se imagina em casa, em Rapallo.
Dirce, Isotta, “Primavera”: no “ar intemporal”.
O “molde” de Caterina Sforza.
“Por que não reconstruí-lo?”

CANTO LXXVII
Escapando a Libitina
(mas não a Mussolini).

CANTO LXXVIII
Antissemitismo explícito.
Pound também ressalta certas bizarrices
relativas a Mussolini e a Salò.
O melhor do poema é a narrativa
da jornada entre Roma e Gais.

CANTO LXXIX
Deixando a ladainha fascista
um pouco de lado, Pound investe
em um hino mais e mais sensual,
voltado a Dionísio e Afrodite.

CANTO LXXX
Neste que é um dos Cantos mais longos,
Pound repassa seus dias em Paris e Londres
(e as viagens a outros lugares)
para criar uma espécie de elegia do mundo
destruído pelas duas Guerras.

CANTO LXXXI
Após uma passagem pela Espanha,
Pound cria alguns dos mais belos
versos do livro
(“A formiga é um centauro em seu mundo de dragões”)
e, ao mesmo tempo, pensa ser chegado
o momento de por abaixo a vaidade.

CANTO LXXXII
Agamêmnon, de Ésquilo:
o vigia à espera do fogo; Clitemnestra.
Uma anedota de Swinburne.
Soncino e cia. contra os “homens de mármore”.
Poetas censurados.
Morte e renovação, de novo.

CANTO LXXXIII
Simbolismo neoplatônico.
Passeio por Veneza.
Yeats e o pavão.

CANTO LXXXIV
Alguns motivos revisitados.
Passamos pelo DTC mais uma vez.
Um derradeiro aceno ao “Capo”.
Alemães e americanos: “uguale”.