Nada cumpre o que prometeu

Nada cumpre o que prometeu

A cena está em Uma batalha após a outra, de Paul Thomas Anderson, e é um grande momento em meio a vários outros grandes momentos. A revolucionária negra, grávida, atira com uma metralhadora em um campo de treinamentos no meio do nada. Ao terminar, berra que se sentiu como Tony Montana. Isso pede uma digressão.

Interpretado pelas narinas de Al Pacino no estridente remake de Scarface (1983) dirigido por Brian De Palma, Montana é um criminoso cubano que chega a Miami em meio ao Êxodo de Mariel, ocorrido entre 15 e 31 outubro de 1980. Contexto: a economia cubana ia mal, os humores do populacho pioravam e Fidel Castro não só “autorizou” a debandada em massa (no melhor estilo “Cuba: ame-a ou deixe-a”) como deu um jeito de esvaziar prisões e hospícios, misturando criminosos e doentes mentais com os demais passageiros dos barquinhos. Mais de 120 mil pessoas aportaram na Flórida por aqueles dias.

Montana chega aos Estados Unidos e consegue visto de permanência após assassinar um castrista no acampamento de refugiados. A partir daí, o filme narra a ascensão e a queda desse simpático empreendedor. Acompanhamos sua carreira como megassassino (o entrevero com os colombianos é particularmente ensolarado), megatraficante, megacheirador e megaincestuoso (a irmãzinha é um foco de tensão, por assim dizer). Scarface é um filme sobre excessos, filmado de forma excessiva — apenas Cassino, de Martin Scorsese, é comparável em termos de excelência, brutalidade e acuidade decadentistas.

Paul Thomas Anderson não é um decadentista, claro. Os personagens que cria (inclusive os malvados) moram de pantufas no coração desse cineasta que não raro emula Robert Altman, mas sem o cinismo etílico do mestre missuriano. Altman é um sacana orgíaco; Anderson, um punheteiro feliz (nada contra, muito embora — como demonstra Pedro Guerra em O maior ser humano vivo — a punheta seja a porta de entrada para drogas pesadas).

Voltemos à cena supracitada de Uma batalha após a outra. A tal revolucionária com a metranca, Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor), tem pedigree, sendo filha e neta (e bisneta?) de gente assim belicosamente inconformada, e integra um grupo chamado French 75 — homônimo do hediondo coquetel feito com gin, champanhe, suco de limão e açúcar (sem metanol, por favor). Não, não, o tal grupo não tem esse nome por causa do coquetel, mas, a exemplo do coquetel, homenageia o canhão francês de 75mm modelo 1897 muito utilizado na Primeira Guerra Mundial. Bum!

Honrando seu nome de guerra, Perfidia se atraca gostoso com o inimigo, o militar WASP Steven J. Lockjaw (Sean Penn), a quem ela “estupra inversamente” (não) e depois usa para se safar, delatando a companheirada (sim). Nem mesmo Tony Montana faria uma coisa dessas. Afinal, tudo o que Tony tinha eram sua palavra e suas bolas. Na primeira interação com Lockjaw, logo no começo do filme, Perfidia o desarma para armá-lo: instado por ela, o pau duro do militar inadvertidamente ri da “revolução” (eu ri bastante, pelo menos).

Dezesseis anos após a traição e a debandada do French 75 (quem não fugiu, morreu), o ex de Perfidia, Bob (Leonardo Di Caprio), vive com a filha deles, Willa (Chase Infiniti), em uma cidadezinha nos cafundós californianos. Sim, Bob era membro destacado (explodia coisas) do grupo, mas passou a última década e meia fumando maconha, enchendo a cara, alimentando a paranoia e vendo A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, um dos melhores filmes pornôs já feitos.

A paranoia de Bob é justificada quando Lockjaw, candidato ao Clube dos Aventureiros Natalinos (sic) (foda-se, São Nicolau), precisa (a) descobrir se Willa é sua filha biológica e, (b) caso seja, matá-la, pois o clubinho é obviamente supremacista e não aceita em suas fileiras gente que trepa (e procria!) com negras. A partir daí, o filme se torna uma corrida maluca das mais divertidas, com Bob sempre chegando atrasado e Willa honrando Tony Montana sua genética guerreira (dos dois lados, biologicamente falando).

A irreverência de Uma batalha após a outra é do tipo de provoca ruídos hilariantes. Já li textos emocionados sobre a simbologia do corpo negro grávido metralhando geral (alguém escreveu que, entre o feto e o mundo, está a arma, empunhada por uma pessoa que não aceita mais ser perseguida e se torna perseguidora, uhu, lalalá; pena que depois a mamãe abandone a criança, né?), sobre o suposto coração revolucionário que anima suas imagens, sobre a beleza do inconformismo e a feiura do “sistema” (o mesmo que investiu cerca de US$ 160 milhões na realização do filme). No entanto, o que salta aos olhos é uma sátira ambidestra, por assim dizer, com Bob berrando viva la revolución pouco antes de ridiculamente despencar de um telhado e Lockjaw (caçador tornado caça) vociferando que, a despeito da camiseta justíssima, não é gay. Como em um bom filme dos irmãos Joel & Ethan Coen, quase todos que aparecem na tela são mais ou menos imbecis (Junglepussy mostra a cara para levar tiro, por exemplo).

Entre os poucos personagens adultos, estão a ex-revolucionária e agora “apenas” foragida Deandra (Regina Hall) e o sensei Sergio (Benicio Del Toro), que toleram ou ignoram as asneiras enquanto tentam, efetivamente, fazer alguma coisa — não mandar o “sistema” pelos ares, mas ajudar indivíduos específicos em situações específicas. Mas as asneiras persistem, claro. São engraçadíssimas as interações de Bob com uma espécie de central de atendimento dos revolucionários; o suposto herói de guerra esqueceu as senhas e se emputece, enquanto o atendente choraminga sobre “invasão de espaço” e “gatilhos de ruído”.

Do outro lado, temos um assassino cheiroso e limpinho chegando a uma casa de subúrbio (vindo da igreja?) e descendo ao enorme e vazio complexo subterrâneo, onde é informado da próxima missão por uns sujeitos que rescendem a talco geriátrico e Zyklon B. Não me lembro de uma sacaneada melhor com o propalado Deep State — ademais, até onde eu sei e conforme o próprio Anderson demonstrou em Boogie Nights, o verdadeiro Deep State fica em San Fernando Valley. Sublinhe-se que a única ação digna de nota do tal Clube dos Aventureiros Natalinos é fratricida.

Como se sabe, Uma batalha após a outra é inspirado no romance Vineland, de Thomas Pynchon. Lançado em 1990 e situado em 1984 (are we there yet?), Ronald Reagan etc. e tal, o livro autopsia os 1968ers: parafraseando um trecho, os outrora revolucionários olharam uns nos olhos dos outros, viram a América morrendo e resolveram acelerar o processo, vendendo o que tinham para vender (ideais, corpos, almas, uns aos outros).

Muito embora seja um romance “mais leve” quando comparado com outros do autor, Vineland não alivia para ninguém. Ele deixa a impressão de que, após todas as loucuras, traições, assassinatos e desaparições, a única família sessentista passível de ser reunida é a família Manson, pois nos EUA de Reagan sobraram apenas slogans vazios, vigilância, penteados ruins, paranoia, oportunistas de todas as vertentes, risadas gravadas, cocaína, silicone e (olá) decadência. Eis um empobrecimento amplo, geral e irrestrito, levado a cabo (também) por quem se rebelava vinte anos antes. Diz um dos personagens:

“O problema com a geração de vocês”, opinou Isaías, “nada pessoal, viu, é que vocês acreditaram na tal revolução, investiram suas vidas nisso, mas de Tubo vocês certamente não entendem muito. No minuto em que o Tubo catou vocês, carinhas, já era, toda aquela América alternativa entrou por el canito, feito os índios, vocês venderam tudo pro verdadeiro inimigo, e mesmo em dólares de 1970 — foi barato demais…”

Porque a “revolução” não só foi e é televisionada como foi e é vendida para ser televisionada (“barato demais”), e os cachês e residuals enchem as burras de gente à direita, à esquerda, no centro, acima e abaixo. O resto é conversa fiada. E, longe de mistificar a conversa fiada, Vineland Uma batalha após a outra tratam de apresentá-la como tal. Com seu orçamento e sua distribuição, não obstante a força de sua sátira (ou talvez por isso mesmo), o filme é um excelente exemplar dessa revolução vendida para o “verdadeiro inimigo”, retrabalhada, domesticada, embalada e revendida para nosotros. Nada contra. Cinema é uma arte cara. Money talks, bullshit walks.

Sobre o enredo, gosto que, em Vineland, a filha não encontra resolução, mas apenas estilhaços da traição (perpetrada pela mãe) que espelha a traição maior (da nação que mastiga & cospe os próprios filhotes). Em Uma batalha após a outra, sim, há resolução, a voz materna que (via carta) adentra a cabeça da moça e ensaia uma aproximação. Ou seja, a filha reencontra a mãe e depois — leia isso com a voz de Joaquim Barbosa — sai à rua. Já o romance termina com ela voltando ao local onde seu (suposto) pai biológico tentou raptá-la:

“Pode voltar”, sussurrou, ondas de frio a percorrê-la, tentando encarar uma noite que a qualquer momento poderia trazer o estupor. “Tudo bem, mesmo. Venha, pode vir. Não me importo. Me leve pra onde quiser.” Talvez ele nem estivesse mais disponível, ela suspeitava, e seu apelo na calada da noite ficasse sem resposta, mas isso não a impediu de fazê-lo. A pequena campina brilhava à luz das estrelas e Prairie continuou tecendo fantasias extravagantes sobre o retorno de Brock, em translúcidos devaneios, um flerte óbvio (…).

No livro e no filme, Prairie/Willa é a “American girl” da música de Tom Petty, “raised on promises”. O problema é que, como nos lembra Philip Roth em O teatro de Sabbath, nada cumpre o que prometeu. Exceto para Tony Montana, claro, e por uma razão muito simples: a ele não prometeram nada.

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NOTAS

Citei Cassino e me lembrei de uma passagem de Vineland: “Os olhos de Elmhurst marejaram, seus lábios começaram a tremer. ‘Que-quer dizer que… a vida não é Las Vegas?’”.

Ainda sobre Perfidia Beverly Hills: para viver fora da lei, canta Bob Dylan, há que ser honesto.

Não sei se, no filme, eles estão nos cafundós californianos. Acho que sim. Em Vineland, eles vivem no (infelizmente fictício) Trasero County.

As cenas de perseguição na estrada me lembraram Arizona nunca mais, de Joel & Ethan Coen. Aliás, a certa altura, o querido “Hi” McDunnough (Nicolas Cage) culpa Ronald Reagan por retomar a profissão de assaltante. Mas, claro, o filme dos Coen que conversa com Uma batalha após a outra é O grande Lebowski.

Sobre o orçamento do filme, o número “oficial” divulgado pela Warner é US$ 130 milhões, mas a Variety fala em US$ 175 milhões. Torço muito para que o filme recupere o investimento. Hoje em dia, com a contabilidade criativa dos estúdios (que não incluem os enormes gastos de divulgação no orçamento), estima-se que um longa precisa faturar o triplo de seu custo para ser considerado rentável. Ou seja, Uma batalha após a outra precisa chegar a meio bilhão de dólares nas bilheterias. Por que isso é importante? Por motivos óbvios: para que filmes assim, que não são adaptações de quadrinhos ou videogames e/ou exemplares de franquias requentadas, continuem sendo produzidos.

Acho curioso que Anderson não tenha lidado tão bem com a companion piece de Vineland lançada por Pynchon em 2009. Vício inerente, o filme (2014), assume por inteiro o tom que perpassa o desfecho do romance (a tristeza pelo fim do “sonho”, o horror pelo que sobreveio, a progressiva obliteração do futuro); o livro transmite muito bem a “silente brancura adiante” na “caravana em um deserto de percepção” nos seus parágrafos finais, ao passo que o filme se deixa contaminar por ela de cabo a rabo. O livro é um hard-boiled, e o filme, um estertorar que, ciente da ausência de futuro, jamais acelera como deveria. Acho que, objetiva e cinematograficamente falando, Medo e Delírio em Las Vegas, de Terry Gilliam (adaptando Hunter S. Thompson), é bem mais eficiente no “diagnóstico” do que deu errado nos e para os 1968ers, bem como no exame dos horrores (sempre) presentes.

Sobre o final do texto, que fique claro: no romance, a filha também reencontra a mãe (e pessoalmente), mas esse reencontro é, digamos, insatisfatório — o que explica o anseio final de ser levada pelo outro, que (adivinhem) está indisponível.

Maira

AMAR

                                 para a Maira

 

dizia
até ontem não saber que Armand Amar
nasceu em Jerusalém
ele nasceu aqui, sabia?
estávamos na varanda
ela fumava Marlboros, eu bebia Goldstar
o sharav abatendo Jerusalém
tudo aqui ganha uma dimensão bíblica
cada bloco de concreto uma hipérbole
eu bebi um gole e concordei com a cabeça
não disse nada
gostava de ouvi-la
Armand Amar nasceu em Jerusalém
repetiu
num tempo em que ainda se nascia em Jerusalém
e hoje? perguntei
hoje?
ela sorriu, tragou fechando os olhos
hoje só se morre
em Jerusalém

 

[22.10.2015.]

 

A escritora e tradutora Maira Parula morreu no dia 5 de setembro de 2025. Eu não me lembrava de ter escrito o poema acima. Eu não me lembrava de que a Maira publicara esse poema em um dos blogs que mantinha. Ela fazia isso às vezes. Eu me lembro de quando publicou um trecho do que viria a ser o meu romance de estreia, o diálogo “na praia/longe da praia” que está nas páginas 101-2 de Hoje está um dia morto. Ela ter publicado o trecho me estimulou a terminar de escrever o romance. Maira sempre foi muito gentil, muito atenciosa, muito interessada nas coisas que eu fazia. A morte dela interrompeu uma conversa que mantínhamos há mais de duas décadas, à distância, via e-mail. Uma conversa que me ajudou a crescer e me deu ânimo para seguir vivendo, estudando e trabalhando. Sinto muitas saudades da Maira. Sinto muita tristeza, até pela forma inesperada como ela morreu. E, como sempre acontece quando perdemos alguém, fica a sensação de que não deixei claro para a Maira o quão importante ela era para mim. Espero que seja apenas uma sensação. Espero que ela soubesse o quanto a adorava. Espero que, em meio à dor, ela tenha se lembrado de mim em seus últimos dias e sentido algum alívio, algum calor e todo esse amor que eu sentia e sinto por ela.

Sobre “Natação”, de Luis S. Krausz

Resenha publicada em 03.07.2025 no Estadão (online)
e na edição impressa de 08.07
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A PEÇA FALTANTE
Em Natação, Luis S. Krausz escreve um belo e inusitado romance de formação.

Do ponto de vista de seus colegas de escritório, Alberto Schwartz é um peixe fora d’água, alguém que exerce mal as funções para as quais é pago. Um incompetente, em suma. Trabalhando em um escritório de importação e exportação de commodities na Avenida Paulista, ele “faz contas e faz contas”, comete erros frequentes (pois sempre está com a cabeça alhures) e há quem diga: “não serve”. É bastante provável que os colegas de Schwartz confirmariam todos os seus preconceitos caso soubessem que ele, além de tudo, cursa Letras à noite na Universidade de São Paulo, nutrindo um interesse especial pelo grego clássico. No decorrer de Natação (ed. Alameda), esse personagem oscila entre esses dois mundos inconciliáveis: o mundo corporativo e o mundo livresco, o mundo “prático” e o mundo das “inutilidades” (com suas “línguas mortas”). É a partir dessa tensão existencial que Luis S. Krausz desenrola o romance.

Schwartz é um ser introvertido que “anda encurvado”, com os ombros “sempre meio erguidos, meio voltados para a frente”, como se “quisesse proteger seu coração”, algo que “não é agradável de se ver”. Nesse sentido (e em quase todos os outros), é bem diferente de seu colega Maurício Spinkowitz, poeta, comunista, um estudante de medicina que frequenta as aulas de grego e latim na USP e certamente não anda encurvado. Como o romance se passa no começo da década de 1980, com o Brasil ainda sob a ditadura militar, Spinkowitz denota coragem. “Há pessoas que guerreiam contra outras pessoas e há pessoas que guerreiam contra fantasmas”, diz o narrador. “Alberto Schwartz pertencia à segunda categoria.”

Além das aulas, há outro momento em que Schwartz parece usufruir de algum respiro. São as aulas matutinas de natação na Atlética, sob a orientação de um senhor que beira os 90 anos chamado Kan-Ichi Sato. O japonês percebe de imediato que “esse rapaz parece um quebra-cabeça ao qual falta uma peça”. Sato talvez seja o personagem mais importante do livro, pois insufla em Schwartz tanto a inquietude com relação à vida que leva (é preciso procurar e encontrar uma vocação, afinal) quanto o conforto relativo a qualquer atividade que não possua um fim ulterior, pois “a natação não é o propósito. A natação é o caminho”. É possível dizer o mesmo da literatura.

Com a elegância, a erudição e a clareza que encontramos em seus outros livros, como os estupendos Opulência e O outono dos ipês-rosas, Krausz não desenvolve uma narrativa entremeada por digressões, mas uma série de digressões que, aqui e ali, são entremeadas por instantes narrativos. O andamento do romance reflete a interioridade do protagonista: rica, mas travada; repleta de possibilidades, mas presa a uma rotina profissional estéril. A forma como Natação gira em torno de si mesmo, reiterando e aprofundando aspectos e elocubrações, detalhes e divagações, remete à forma como o protagonista gira em torno de si mesmo. A diferença é que, diferentemente de Schwartz, o romance se movimenta, sai do lugar, tateia, procura. De certo modo, levando-se em conta o que ocorre no desfecho, é como se o livro arrastasse o personagem rumo a um futuro diferente daquele presente empobrecedor.

Em vista de suas peculiaridades, Natação é um romance de formação inusitado. Ele aponta para um crescimento possível de Schwartz, empurrado por um acontecimento que nada tem de imprevisível (pelo contrário, é antecipado a certa altura), mas respeita a inteligência do leitor ao deixar claro que aquela peça faltante do nosso quebra-cabeça não é algo tão simples de encontrar ou, uma vez encontrada, de encaixar.

J., uma despedida

Em 30 de abril de 2023, o Liverpool recebeu o Tottenham Hotspur em Anfield, na reta final de uma temporada frustrante. A princípio, foi um passeio, 3×0 em 14 minutos. Depois, uma jornada tenebrosa, a reação dos Spurs e o empate cedido aos 93 minutos de jogo. Mas, um minuto depois, quando tudo parecia perdido, vivenciei um desses momentos extáticos que poucas coisas na vida proporcionam. O protagonista do triunfo foi o atacante português Diogo Jota.

Egresso do banco (entrou aos 63 minutos, substituindo Luis Díaz) e ainda se recuperando de uma lesão, Jota aceitou o erro de Lucas Moura e meteu um chute cruzado daqueles. 4×3, fim de papo.

O erro, o gol, o rugido da torcida, o canto (“Oh, he wears the number 20 / He will take us to victory / And when he’s running down the left wing / He’ll cut inside and score for LFC / He’s a lad from Portugal / Better than Figo don’t you know / Oh, his name is Diogo!”), está tudo AQUI.

Diogo Jota morreu na quinta-feira passada, dia 03 de julho, junto com o irmão, André, em um acidente de carro na Espanha. Morreu aos 28 anos de idade, pai de três filhos pequenos, recém-casado com a companheira de longa data, Rute. Usava a camisa 20, como diz a canção da torcida. Há pouco mais de dois meses, em 27 de abril (oi de novo, Tottenham), ajudou o Liverpool a conquistar o vigésimo título inglês de sua história. No começo de junho, abocanhou o bicampeonato da Liga das Nações com a seleção portuguesa. Jota estava no auge da carreira e no começo da vida.

Vejo todos os jogos do Liverpool, sem exceção, há quase vinte anos. São, em média, sessenta jogos por ano, às vezes mais (quando a temporada é boa), às vezes menos. Com isso, acompanhando os atletas e demais profissionais envolvidos semana após semana, eu me sinto próximo dos jogadores em campo e dos outros, como eu, que sustentam essa paixão em comum. A sensação de proximidade é uma das coisas que tornam o esporte algo tão especial e caracterizam um torcedor: estar com eles (atletas e demais profissionais) e estar uns com os outros (torcedores) pelo clube.

Cada torcedor tem a sua história, e ela é construída por momentos como aquele, contra o Tottenham, e por indivíduos que, ostentando as cores e o escudo, alimentam a comunidade e dela se alimentam, numa troca contínua. É uma caminhada conjunta, com bons e maus momentos, e ancorada na única fé que conheço — a fé em nós mesmos e em nossas cores, e na comunidade global que constituímos.

Tal comunidade é algo maior do que o clube em si, maior do que a cidade em que o clube se encontra, maior do que este ou aquele país, maior do que qualquer coisa assim delimitável. É, de certa forma, um excesso ou uma soma aberta, em progresso. Quando um de nós morre, essa soma é paralisada por um instante, no choque provocado pelo paradoxo: institui-se uma subtração na soma, uma falta impossível de restituir.

Falo de uma instituição que tem gravado na memória e na camisa o número 97, representando os torcedores mortos no Desastre de Hillsborough. Na soma aberta, há muitas subtrações, e carregamos todas e cada uma delas conosco. Mal ou bem, todos nascemos, vivemos e morremos num piscar de olhos, do nada ao nada, e por isso mesmo momentos como aquele do vídeo acima são inesquecíveis.

Quando acordei às seis e pouco da manhã com a notícia de que Jota morrera, foi como receber a notícia da morte de alguém muito, muito próximo. Porque ele era alguém próximo; eu o sentia assim. Era um sujeito que usava a minha camisa desde 2020. E usava bem demais, com elegância, alegria e cuidado. Por cinco anos, compartilhamos da mesma pele, nós e os outros, todos caminhando juntos.

Obrigado por tanto, Diogo Jota. R.I.P.

You’ll never walk alone.

Resenha de “Sem despedidas”, de Han Kang

Resenha publicada em 20.05.2025 no Estadão.

PROCISSÃO DE FANTASMAS
Em Sem despedidas, Han Kang recria traumas do passado sul-coreano.

Em uma nota ao final de Sem despedidas (Todavia, tradução de Natália T. M. Okabayashi), a nobelizada sul-coreana Han Kang afirma: “Espero que esta seja uma obra sobre amor genuíno”. Em seus piores momentos, de fato, o livro se deixa contaminar por pieguices dessa natureza, como se traísse o material — inclusive histórico — sobre o qual é erigido. São momentos raros, felizmente. Em sua maior parte, e não obstante o gesto de amizade que coloca a narrativa em movimento, ele pode ser lido como um romance sobre ódio genuíno.

Afinal, o evento histórico reconstituído em suas páginas diz respeito ao massacre de trinta mil pessoas ocorrido na ilha de Jeju em fins da década de 1940 (sem falar nas mais de duzentas mil assassinadas no restante da Coreia do Sul logo depois). Somos informados de “um comando do exército americano para impedir a propagação de simpatizantes do comunismo”, o qual foi levado a cabo com máxima crueldade por militantes de extrema direita e outros assassinos. Para se ter uma ideia, a “insanidade de apontar uma arma para a cabeça de um recém-nascido era algo permitido, ou melhor, recompensado; assim, mil e quinhentas crianças menores de dez anos foram mortas” naqueles dias. Não muito depois, estourou a Guerra da Coreia e os aprisionamentos ilegais, as torturas e as matanças prosseguiram e se intensificaram.

Em vista de tudo isso, não surpreende que Sem despedidas inicie com um pesadelo ligado a tais violências. A narradora, Kyung-ha, escreveu um livro sobre o massacre e agora se vê sozinha, sem “parentes de quem cuidar nem um emprego” que a ocupe, incapaz de se reconciliar com sua “existência humana”. No entanto, ela não hesita em atender a um pedido da amiga Inseon, fotógrafa e documentarista que, isolada em Jeju para cuidar da mãe enferma, passou a se dedicar à marcenaria e lá permaneceu mesmo após a morte da genitora. Inseon corta os dedos indicador e médio ao usar uma serra elétrica e é transportada às pressas para um hospital em Seul, onde se submete a um tratamento dolorosíssimo que intenta evitar o fracasso dos reimplantes. O pedido que ela faz a Kyung-ha é que, em meio a uma nevasca, viaje para Jeju a fim de alimentar um pássaro de estimação.

Após uma jornada acidentada e desesperadora, Kyung-ha chega à casa isolada de Inseon e se depara com o bicho morto na gaiola, algo “suave que não está mais quente”. O enterro improvisado do pássaro é o ponto de virada do romance, o momento em que Sem despedidas assume uma levada fantasmagórica na qual as memórias dos massacres ocorridos décadas antes são resgatadas em meio a restos e sombras.

Usando Kyung-ha como uma espécie de catalisador, as vozes dos que partiram e dos ausentes (incluindo Inseon) invadem a narrativa, em uma sucessão de testemunhos entrecortados que, pouco a pouco, reconstituem o passado da família de Inseon, os massacres e a luta da mãe dela para fixar aquelas lembranças e recuperar os ossos dos mortos, incluindo os de um parente próximo.

“Existe isso de querer ver, mesmo que só tenha restado a sombra?”, pergunta a narradora a certa altura. Acaso não existisse, Sem despedidas seria um romance malogrado. O esforço reconstitutivo realimenta um projeto sempre adiado das amigas, prenunciado pelo pesadelo que abre a história e incorporado pelo próprio livro. Em Han Kang, contrariando a máxima joyciana expressa por Stephen Dedalus no segundo capítulo do Ulysses, a história é um pesadelo do qual não se tenta acordar e, mais do que isso, procura-se organizar em meio a uma procissão de fantasmas.

Órbita comprometida

Resenha publicada em 17.05.2025 no Estadão.

QUANDO NADA ACONTECE
Samantha Harvey não sobrevive à reentrada no premiado Orbital

Parafraseando as palavras de João Guimarães Rosa no conto “O espelho”, quando nada acontece, há um planeta indo para o saco. De fato, uma boa forma de ler Orbital (DBA, tradução de Adriano Scandolara) talvez fosse a seguinte: encará-lo como uma espécie de oração fúnebre ou um lamento surdo pelo que fizemos com a Terra e a nossa própria espécie. O problema é que o romance da inglesa Samantha Harvey, premiado com o Booker Prize 2024, raramente permite isso. As páginas são permeadas por certo otimismo pegajoso, ainda que o tempo avance “com seu niilismo de sempre”. Afinal, olhando lá de cima, tudo é tão bonito, não é mesmo? Incluindo o supertufão que devasta as ilhas Marianas e avança célere para as Filipinas.

O livro se passa na estação espacial (“grande albatroz de metal”) que gira ao redor da Terra a 28 mil quilômetros por hora. Nela, quatro astronautas (dos EUA, Japão, Inglaterra e Itália) e dois cosmonautas (da Rússia, obviamente) estarão por nove meses. A ação, no entanto, é comprimida em 24 horas, no decorrer das quais a estação completará 16 órbitas, cada uma destas correspondendo a um capítulo. Assim, Harvey passeia pelo espaço e pelas cabeças dos personagens, que flutuam “em todos os fusos horários e em nenhum deles”, descrevendo memórias, anseios, medos e reflexões. Mas falar em “ação” aqui talvez seja um exagero.

A japonesa Chie perdeu a mãe. O russo Anton talvez esteja doente. O norte-americano Shaun tem um sonho (quase) erótico com a inglesa Nell (é bom saber que existe tesão no espaço, embora logo arrefeça). Nell pensa no marido (um “desconhecido”) e suas ovelhas lá embaixo. E assim por diante. A narrativa assume essa pegada de “pastoral espacial”, contemplativa. Entediante. E, a exemplo da estação espacial, gira e gira, mas não chega a lugar algum. Apenas fica lá. Girando.

Não é que Harvey escreva mal. Pelo contrário, há imagens excelentes (e o livro é muitíssimo bem traduzido): o “espaço puro é uma pantera, feroz e primitiva; eles sonham que ela ronda seus alojamentos”; “as ilhas parecem, aos olhos de Chie, uma trilha de pegadas secando. Seu país é um fantasma assombrando as águas”; enxergar a Terra “como um modelo matemático de inteligência de enxame”; “sua Terra manca e libertada”; “ela mora no interior das engrenagens de um relógio que está moendo o tempo através de seus ossos”.

A certa altura, o leitor é apresentado ao “problema da dissonância”, algo que acontece com astronautas por conta da “exposição repetida a essa Terra contínua”, com “sua ausência de fronteiras”, “um globo que rola indivisível” sem “muralhas ou barreiras, sem “possibilidade de separação, que dirá guerra” (como na música de John Lennon). E aí surge a dissonância, pois há fronteiras e guerras. Surge o desejo de fazer alguma coisa, de consertar, pois, lá em cima, são “humanos com uma perspectiva divina”. E, depois, percebem a força “da política e das escolhas humanas”, que “moldou todas as coisas” na Terra, “cada calota polar reduzida, cada derramamento de óleo em chamas”. É algo ginasiano e sentimentalista. Ninguém com alguma coisa na cabeça precisa ir ao espaço para chegar a tais conclusões.

O texto da orelha sugere que Orbital é “mais” do que ficção científica, que “não se filia à literatura de gênero” (o tipo de bobagem que só quem desconhece literatura de gênero escreveria). Lendo o romance, contudo, percebemos que o problema não é o livro ser “mais” do que ficção científica: é ser menos. Em suas investidas pretensamente filosóficas, Samantha Harvey não sobrevive à reentrada.