Uma leitura de “Nobel”, de Jacques Fux

Uma leitura de “Nobel”, de Jacques Fux

Artigo publicado na Cult em 11.04.2018

No oceano de picaretagem que cerca as ilhas desoladas que são os meios literário e acadêmico brasileiros, poucas noções (pois raras são aquelas que, hodiernamente, chegam a ser conceitos) navegam com tanta facilidade e são tão constrangedoras quanto a de “autoficção”. A coisa está ancorada em uma espécie de tautologia, pois qualquer aluno com distúrbio de déficit de atenção sabe, ou ao menos desconfia, que, conforme o célebre dito do poeta Manoel de Barros, “ninguém foge do erro que é”.

Ora, todo e qualquer romance, por mais fantasioso que seja, em alguma medida, em algum nível, consciente e inconscientemente, desvela, evoca e/ou ficcionaliza aquele que o escreve, seja explícita, seja implicitamente. Por sorte, a imaginação de escritores como Luis S. Krausz (Deserto, Outro Lugar), Julián Fuks (A Resistência), Cristovão Tezza (O Filho Eterno) e Jacques Fux (Antiterapias, Brochadas e, agora, Nobel) transcende o teor abilolado daquela noção e, cada qual à sua maneira, alcança um entendimento do mundo ao redor, de si, do outro e, claro, do próprio processo de escrita ficcional. É sobre Nobel, romance mais recente de Fux, que discorrerei a seguir.

De certo modo, e grosso modo, a atividade da criação literária corresponde a uma espécie de diálogo fantasmagórico ou fantasmático: empurrado pelas sombras que o cercam e não raro o constituem, o escritor mergulha na “fosca turvação” da memória tanto do que vivenciou quanto do que leu. Estruturando seu romance como um hilário discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura, Fux trata justamente de expor o mecanismo interno do supracitado diálogo.

“Sim, desde muito jovem devoto a minha existência à literatura”, ele afirma logo no começo do livro, “à transfiguração desse meu eu, real e biográfico, em um eu ficcional e ventríloquo da memória e da obra dos outros”. Coerentemente, no decorrer do discurso-romance, o protagonista e narrador Fux tratará de passear pela memória e pelas obras alheias, instituindo um espaço de recriação e, às vezes, corrupção ficcional das idiossincrasias, manias, fofocas e anedotas envolvendo outros escritores agraciados (ou não) com o Nobel, como Mario Vargas Llosa, Derek Walcott, J. M. Coetzee, Franz Kafka, Yasunari Kawabata e Ernest Hemingway.

E é o incontornável impulso falseador de Fux (seja o narrador, seja o autor) que confere graça ao romance e o desloca para um âmbito reflexivo mais rico do que aquele em que estaria inserido se o enredo se ativesse ao mero prolongamento ou reiteração da piada que lhe serve de incipit (a premiação de Fux por “ter performado, falsificado e duplicado a narrativa dos escritores canônicos, transformando-a em sua perturbada obra”). Em outras palavras, para além do humor desbragado e das picuinhas, grandes ou pequenas, que pontuam o livro, é o poder imaginativo do autor que sustenta o que ele mesmo chamou (em uma entrevista concedida a mim para o blog da editora Record) de “cadeia intertextual”.

Nesse trânsito fantasmático ou comércio com fantasmas, o conto “Um relatório para uma Academia”, de Franz Kafka, talvez possa ser encarado como uma espécie de modelo, na falta de palavra melhor. Observe-se que o narrador de Nobel se equilibra sobre um fio tênue, e o faz sem rede de proteção: em seu discurso, ele ao mesmo tempo homenageia e degrada escritores e acadêmicos, investindo em uma digressão subversiva que ataca a pompa e a circunstância da premiação máxima sem, contudo, colocar-se fora dela ou sequer marginalmente.

De maneira similar, o macaco que narra o conto de Kafka afirma de forma categórica que jamais exigiu a liberdade, “nem naquela época nem hoje”. Também cito ao arrepio do contexto original: “A tranquilidade que conquistei no círculo dessas pessoas foi o que acima de tudo me impediu de qualquer tentativa de fuga”, pois o símio entende que “a saída não devia ser alcançada pela fuga”.

Do mesmo modo, no ponto mais alto do circo literário, o “nobelizado” Fux tampouco exige – ou nutre qualquer anseio por – liberdade. Muito pelo contrário, eu arrisco a dizer, pois o coração de sua sátira reside justamente não na denegação, mas, sim, na celebração desavergonhada (ainda que negativa, degradada e degradante) da pulsão ficcional que anima qualquer escritor que se preze. Um “viva ao plágio, às fraquezas e às depravações literárias”, portanto.

Na medida em que expõe seus pares e a si próprio, na medida em que adultera e corrompe detalhes e passagens das vidas e das obras de “seus” autores, na medida em que faz “colocações miseráveis, falsas e canalhas”, o protagonista de Nobel defende exata e paradoxalmente o lugar da ficção e reafirma o direito de todo escritor recriar(-se) pela via da fabulação. Não por acaso, a intenção declarada (“degradar a vida dos autores por intermédio de suas obras”) vem acompanhada por um apelo ou coisa que o valha: “Amaldiçoem-me, mas não retirem meu ouro”.

O “ouro” aí pode ser entendido como a premiação em si, é claro, mas também (e, no meu entender, sobretudo) como a liberdade de se ocupar de si e do outro por meio da literatura. Assim, por mais que sintamos “um prazer mórbido ao falar sobre o subterrâneo das pessoas”, o que é sublinhado pela leitura de Nobel é algo, por assim dizer, mais solar, a saber: o prazer nem um pouco mórbido e nada subterrâneo trazido pela invenção, preenchido pelo vigor imaginativo e alimentado pela saudável convulsão provocada pelos melhores ficcionistas e suas abençoadas deturpações.

Nesse espírito, a “mentira” é justamente o que é tido como “real” e “verdadeiro”, e o único repouso possível, o único refúgio da (nunca, jamais, antídoto para a) loucura está “nas asas da ficção”, pois é função do ficcionista “se livrar das amarras e das injustiças de seu tempo” ou aprofundar o entendimento que temos delas. O prêmio, em suma, tanto para quem produz quanto para quem lê, é a própria obra literária. Todo o resto não passa de teatro.

Mundo adulto

De uns dias para cá, por motivos que não vem ao caso mencionar aqui, reli e pensei bastante nos contos “Adult World (I)” e “Adult World (II)”, de David Foster Wallace. Eles integram o volume “Breves entrevistas com homens hediondos” (trad.: José Rubens Siqueira, Cia. das Letras), livro que se esbalda e esbalda o leitor com narrativas e metanarrativas — como é o caso de “Adult World (II)” — repletas (claro!) de homens hediondos e “assimetrias emocionais”.

Embora seja meio irregular em seus experimentos metaficcionais, a coletânea apresenta peças primorosas, como os contos que lhe dão título, “Para sempre em cima”, “A pessoa deprimida”, “Sem querer dizer nada”, “Octeto” e os dois “Adult World”. Para o meu gosto, “Oblivion” é o grande livro de contos de DFW, aquele que melhor equilibra estilo e execução (e dor, claro, jamais nos esqueçamos da dor).

Os dois “Adult World” contam uma só história. E essa história é sobre uma jovem senhora muito encanada, as enrascadas em que as pessoas se metem por conta da sua incapacidade de, bem, conversar umas com as outras, as mentiras que contamos para os outros e sobretudo para nós mesmos e, last but not least, o sacro esporte da masturbação. De certa forma, os contos versam sobre imaturidade e sobre como a chegada à maturidade implica, às vezes, como estratégia de sobrevivência, abraçar algum cinismo — e, nesse ponto, há casais que cogitam procriar, pois não têm mais nada a perder.

A jovem senhora muito encanada é a protagonista. Ela meteu na cabeça que tem “alguma coisa errada” consigo e alimenta a impressão de que, ao transar com o maridão, o sexo é “de alguma forma doloroso para o negocinho dele”. (Sempre esboço um sorriso ao ler a palavra “negocinho”.) Essa impressão se acentua em determinadas posições (ela por cima) ou quando coloca “o negocinho dele na boca”, e também porque (salvo por raríssimas e excruciantes exceções) o sujeito só consegue gozar quando fazem papai & mamãe.

O maridão é descrito como um amante muito atencioso e gentil, e ela sempre chega ao orgasmo quando se relacionam — coisa que, obviamente, incrementa a sensação de que está “fazendo alguma coisa errada” que impede o cônjuge “de gozar a vida sexual conjunta tanto quanto ela”. Ela passa a investigar o rosto dele durante o ato, procurando pistas de quaisquer desconfortos, e estranha que, ao boqueteá-lo, ele raramente vai até o final, preferindo interromper o sacro esporte da felação e penetrá-la de novo.

Claro que a mulher começa a se sentir muito, muito mal, como se não merecesse aquele maridão bacana com quem goza e que acende um cigarro para ela no pós-foda. Ela passa a ter pesadelos e pensamentos intrusivos. Sem saber como resolver o suposto problema, vai a um sex shop (Adult World) e compra um pênis de borracha a fim de aprimorar sua técnica de boqueteação e, assim, quem sabe, não machucar o “negocinho” dele. Depois, também compra vídeos pornográficos para estudar as habilidades das atrizes. Ela nota que os atores observam com interesse e aprovação o entra-e-sai oral de seus respectivos “negocinhos”. Ela se pergunta se certo tensionamento abdominal do maridão não seria pelo fato de ele levantar a cabeça para observar o andamento dos trabalhos lá embaixo. Ela começa “a debater consigo mesma se seu cabelo não estaria grande demais para permitir” que ele veja “o negocinho dele entrando e saindo de sua boca”. Sim, ela cogita cortar o cabelo por isso.

Paralelamente, o narrador introduz uns detalhes intrigantes. Por exemplo: como trabalha no mercado financeiro, é comum que o maridão se levante no meio da noite para “conferir a posição do yen” e coisas do tipo. Às vezes, ele sai de casa e vai ao escritório para analisar os mercados asiáticos com “maior profundidade”. Ele também se tranca no “ateliê” junto à garagem de casa, onde “relaxa” por algumas horas “com seu hobby de reforma de mobília” (eu ri alto aqui); óbvio que a porta do “ateliê” fica sempre trancada.

Além disso, somos informados de que ela arruinou “uma relação anterior com sentimentos e medos irracionais”, relação, sentimentos e medos descritos no momento oportuno. O ex é importantíssimo para a “epifania” que a mulher experimenta a certa altura.

Não, não vou parafrasear os contos de cabo a rabo, até porque coisas inesperadas acontecem (toda a história envolvendo o ex é particularmente tragicômica). Mas, para concluir, ressalto dois aspectos que me agradam demais.

O primeiro deles é a forma do segundo conto (que, repito, conclui a história iniciada no primeiro), um esboço repleto de indicações para a escrita propriamente dita do troço, escrita que não se dá: o conto finalizado não está ali, não é apresentado ao leitor. É como se a resolução da crise detalhada no primeiro conto não passasse de um rascunho, de uma possibilidade ainda não efetivada, de uma história ainda por ser devidamente desenvolvida e fixada, de algo que ainda precisa ser narrado para valer. Trechinho:

“2b. Coincidência [N.B.: pesada demais?]: A.A. confessa que ele ainda se masturba secretamente com lembranças do amor que fazia c/ J., às vezes a ponto de ficar esfolado/dolorido. [ —> a “confissão” do A.A. aqui ao mesmo tempo reforça a epifania de J. no tocante à fantasia masculina & fornece a ela mui-necessária injeção de estima sexual (i.e., não era “culpa dela”). [N.B. ref. Tema: tristeza implícita de A.A. fazendo tocante confissão de amor enquanto J. está 1/2 perturbada por trauma da epifania de (1b)/(1c); i.e = mais uma rede de equívocos, de assimetria emocional.])”

O segundo aspecto (ligado ao primeiro) está no fato de que as narrativas parodiam o arco de uma comédia romântica: casal jovem e aparentemente feliz quase coloca tudo a perder por conta de encanações, segredos, “redes de equívocos” e “assimetrias emocionais”; reviravoltas parecem acentuar tais assimetrias e apontar para uma separação dolorosa ou coisa pior; reviravolta final (fruto de “epifania”) esclarece tudo e as coisas se ajeitam.

Claro que, em DFW, esse “ajeitar-se” envolve cargas dolorosas de ironia e desencantamento. Mas, a essa altura, o cinismo já se instalou na carne dos personagens, e a vida é o que é: uma merda, mas uma merda administrável graças ao que cada um proporciona a si mesmo; paradoxalmente, a solidão incomunicável permite que eles continuem juntos e, por que não?, felizes.

Paisagens fugidias

Resenha publicada em 21.12.2024 no Estadão.

A certa altura do elusivo “As planícies”, o narrador discorre sobre paisagens influentes, mas raramente vistas. Eis aí uma bela forma de apresentar o australiano Gerald Murnane. Nascido em 1939, ele já foi descrito como o maior prosador de língua inglesa sobre quem a maioria das pessoas nunca ouviu falar. Existem alguns autores assim, que parecem trabalhar à margem e, talvez por isso mesmo, produzam obras tão ímpares. O israelense Youval Shimoni e o norte-americano Michael Brodsky são ótimos exemplos de escritores pouco conhecidos, mas estupendos. Voltando a Murnane, o lançamento pela Todavia desse grande romance do autor, em tradução de Caetano W. Galindo, talvez angarie leitores entre os poucos que ainda se interessam por literatura em nosso país escangalhado.

Murnane cogitou se tornar padre, mas abandonou logo essa ideia. Bacharelou-se em artes pela Universidade de Melbourne e lecionou em escolas primárias e no Victoria Racing Club. Depois de ensinar pessoas a montar cavalos, ele passou a lidar com literatos em aulas de escrita criativa, o que não deixa de ser uma curiosa trajetória profissional. Seus dois primeiros romances, “Tamarisk Row” (1974) e “A lifetime on clouds” (1976), são narrativas previsivelmente semiautobiográficas, mas caracterizadas por estilo e abordagens peculiares. O primeiro é um relato sobre a infância no interior do estado australiano de Victoria. O segundo, talvez o livro mais engraçado que escreveu, é dominado pela figura de um adolescente que, vivendo em Melbourne nos anos 1950, reage à repressão católica com uma coloridíssima imaginação sexual.

Publicado em 1982, “As planícies” é o primeiro romance no qual se verifica o que poderíamos chamar de estilo maduro do autor. Não é que os dois trabalhos anteriores sejam “imaturos”, mas, olhando à luz do que ele publicaria depois (incluindo sua obra-prima, “Inland”), temos aqui uma bem-humorada reflexão de ecos metafísicos acerca da própria constituição da realidade. Lemos no parágrafo inicial: “Estava à procura de algo naquela paisagem que apontasse para algum sentido complexo por trás das aparências”.

O narrador sem nome é um suposto cineasta que se lança às planícies da Austrália a fim de produzir um documentário intitulado “O interior”. Ali, encontra a elite local que, ciosa de sua cultura, costuma contratar intelectuais e artistas que, vivendo nos casarões dos proprietários, trabalham para deslindar as peculiaridades ambientes. É um trabalho sempre fugidio, como se a paisagem e os habitantes das planícies esvanecessem por entre os dedos daqueles que procuram fixá-los. Não é de se admirar que os próprios locais discordem entre si e com os contratados, e há páginas e páginas engenhosas e engraçadas sobre querelas filosóficas (vide o conflito entre “Lonjuristas” e “Leporinos”).

Contratado por um desses proprietários, o narrador se muda para o casarão da família do mecenas, onde passa a trabalhar nas anotações que futuramente resultarão (ou resultariam, pois não há indícios de que o filme tenha sido ou venha a ser realizado) no documentário. “Eu já tinha pensado em ‘O interior’ como um conjunto de cenas de um filme muito maior que só podia ser visto de um ponto de observação que eu ignorava por completo”, ele diz. E mais: “Quando meu carro foi entrando pela estrada eu disse a mim mesmo que estava desaparecendo em algum mundo particular e invisível cuja entrada era o ponto mais solitário da planície”; “Não apenas meus anos de leitura mas também minhas longas conversas com homens das planícies (…) me conferem a certeza de que as pessoas daqui concebem a vida como um outro tipo de planície. Não lhes serve de nada a conversa banal a respeito de jornadas que atravessam os anos ou coisas assim”. Como registrar isso?

O último dos trechos citados acima é importante por servir como um comentário acerca do próprio andamento do romance. Não há nele nada parecido com uma progressão narrativa tradicional. A voz do narrador, sobre quem quase nada sabemos, narra pouquíssimas ações e progressões. Temos, na parte inicial, a preparação para o momento (e a descrição do momento em si) no qual o protagonista se colocará diante dos proprietários de terras e discorrerá sobre o projeto cinematográfico que tem em mente, buscando apoio logístico e financeiro. Depois, na segunda metade, há digressões acerca de uma das filhas e da esposa do mecenas, e também sobre este e sua propriedade, sobretudo a biblioteca, onde, aliás, o narrador “dialoga” (em silêncio e imaginativamente, por assim dizer) com a mulher do patrão.

O protagonista nos lembra de que “há poucas chances de que os homens das planícies tomem o que tenho a lhes mostrar por alguma espécie de história”. Na verdade, uma das melhores passagens do livro diz respeito justamente aos livros lidos pela esposa do mecenas, os quais “seriam talvez chamados de romances numa outra Austrália”, embora, nas planícies, eles sejam “um ramo respeitado da filosofia moral”. Há sempre algo de escorregadio nessas caracterizações. A exemplo das paisagens lá fora, é como se tudo fugisse a qualquer categorização: a “essência” das planícies, das pessoas, das leituras, do documentário e do próprio romance é fundamentalmente inapreensível, mas, por outro lado, a tentativa de apreendê-la é incontornável.

Quando lemos “As planícies”, é como se o romance visível, legível, tangível, escondesse outro romance, inalcançável ou mesmo incognoscível. “Estamos viajando em alguma direção no mundo que tem forma de olho”, diz um personagem. “E ainda não vimos as outras terras que esse olho enxerga.” Murnane parece vaguear justamente pelos limites das fronteiras literárias e metafísicas, tangenciando o indizível e oferecendo alguma definição ao indefinível.

Pinturas rupestres

[Escrevi este texto anos atrás.
Seria o posfácio de uma nova edição de “Calibre 22”, nunca publicada.
Foto: AP/Guillermo Arias.
]

A recepção do terço final da obra de Rubem Fonseca (1925-2020), aquele iniciado após a publicação da obra-prima “Pequenas criaturas” e que engloba desde “Ela e outras mulheres” até “Carne crua”, é um caso exemplar de miopia, preguiça e má vontade por parte dos críticos e resenhistas. Em maior ou menor grau, e salvo por algumas exceções, esses volumes foram mal lidos e mal recebidos. Mas, se levarmos em conta a quantidade de bobagens e chavões ditos até mesmo acerca de seus livros tidos como clássicos (como “Feliz ano novo” e “O cobrador”), essa incompreensão não chega a espantar. E, ironicamente, a irreflexão e a falta de cuidado ecoam à perfeição a abordagem adotada por Fonseca em vários de seus contos mais recentes: se, antes, o autor descrevia as rachaduras nos tetos, paredes, ruas, almas e calçadas, em livros como “Calibre 22” ele se dispõe a enquadrar as ruínas. Em outras palavras, há uma radicalização que traduz o nosso gradual empobrecimento, e uma autoironia que ajuda a sustentar esse olhar ruinoso.

Penúltima coletânea lançada em vida pelo autor, “Calibre 22” traz vinte e nove narrativas que passeiam pela corrupção e pela violência, às vezes assumindo um tom de aparente senescência para melhor dar conta da decrepitude circundante. O mundo nos maltrata e envelhece, e eventualmente nos mata. Como dar conta dele? Como encará-lo, descrevê-lo? Como dar conta do outro, esse (não raro) monstro? E como dar conta de si mesmo em tal contexto? Anos atrás, quando escrevi sobre outro livro do autor (“Amálgama”) para o jornal O Estado de São Paulo, pontuei que os narradores de Fonseca deitam seus olhos exaustos sobre uma realidade tão esgarçada quanto incompreensível. Por mais que as palavras não deem conta dessa avassaladora violência cotidiana, eles insistem em resgatar e descrever as coisas pelas quais passam. Não há, contudo, qualquer tom ou sentido testemunhal — as histórias se sucedem como garranchos nas paredes de um banheiro público; de certa forma, elas são as pinturas rupestres da nossa contemporaneidade. Creio que isso também se aplique a “Calibre 22”.

Aqui e ali, cansados da ineficiência e da surdez do mundo, os personagens desses contos tomam para si a responsabilidade de agir ou reagir. Em “O morcego, o mico e o velho que não era corcunda”, por exemplo, o idoso protagonista dá cabo do assassino de um amigo. Depois de atirar no sujeito, um homofóbico e abusador, ele reclama que a “mão ficou doendo uns dez dias. Aquela Taurus matava, mas era horrível para quem atirava”. A economia da descrição alude a um mal-estar que vai muito além do mero incômodo na mão causado pelo coice da arma. O coice metafísico, por assim dizer, nos atinge desde as entrelinhas.

Uma característica comum a vários narradores de Fonseca é o didatismo: “Eu não disse a Mildred que o avô dela tinha certamente visto o filme Alma em Suplício, no original Mildred Pierce, dirigido por Michael Curtiz, com Joan Crawford no papel principal, baseado no livro de James M. Cain…” (em “Mildred”); “Para exercer bem a profissão, o psicanalista deve regularmente consultar um psicanalista, conforme ensinam vários psicanalistas importantes, como Freud, Lacan, Klein, Winnicott, Bion, Dolto e outros” (em “Fantasmas”); “Você conhece a história do chapéu-panamá, por que ele se chama ‘chapéu-panamá’?” (em “O chapéu-panamá”); no mesmo conto do chapéu, o narrador se incomoda que uma de suas amantes não só fala pelos cotovelos como se dá ao trabalho de explicar a expressão “falar pelos cotovelos”. Como se vê, esse didatismo é muitas vezes divertido, mas não só isso. Ele combina muito bem com o tom autoirônico das narrativas, expondo as idiossincrasias dos personagens e, ao mesmo tempo, aludindo ao que há de artifício na coisa como um todo. Fonseca alcança isso sem recorrer à metaficção propriamente dita (embora também vá por esse caminho de vez em quando, como em “Camisola e pijama”), restringindo-se aos meios, contextos e vozes de seus narradores.

Há, também, uma atenção especial dada aos impostores e às imposturas. Cito alguns exemplos. Em “Fantasmas”, temos uma engenheira florestal que “nunca viu uma floresta na vida”. Celebrado inadvertidamente como um inovador, o escritor de “Camisola e pijama” diz que toda “a literatura e tudo o que se escrevia era sempre a mesma merda”. Outro pretenso escritor, o ex-surfista de “O intrépido”, afirma ser “fácil escrever um livro, surfar é muito mais difícil”, e compreende que tantos escritores tenham se matado, pois “hoje ninguém lê livros de ficção”.

Em “O intrépido”, a opção pela escrita é também uma opção pela morte. Salvo engano, foi o autor francês Philippe Sollers quem disse certa vez que todo escritor faz uma opção pelo futuro, “quando todo mundo estará morto”. Em sua maioria, os narradores de Fonseca não parecem interessados nesse tipo de abstração e, em alguns casos, sequer parecem cientes da possibilidade de uma aposta como essa. O futuro não é vislumbrado ou mencionado, e mesmo o passado só aparece como curiosidade (as interpolações didáticas já mencionadas), chiste (“Sou do tempo em que as pessoas gostavam de ópera, de foder e de sanduíche de mortadela”) ou algo que aponta para a morte física (“Tenho um interesse especial pela morte dos seres vivos em geral, gosto de determinar local e tempo dos incidentes de acordo com a fauna encontrada no cadáver e o estágio de desenvolvimento desta”, em “O escorpião e outros animais”).

Entre impostores, suicidas e loucos, talvez o mais sóbrio e honesto seja o matador em “Um homem de princípios”: “Não gosto de matar barata, nem piolho, nem seres humanos. Não mato por ódio, ciúme, inveja, medo, casos em que o matador é também vítima desse sentimento, ou, se preferem, dessa percepção, ou noção, ou senso, ou consciência. Não conheço as pessoas que eu empacoto. Nada sinto por elas, mas tenho meus princípios”. Note-se nesse trecho o eco de “O cobrador”, mas quase na forma de um negativo — não há o ódio que revisitamos em “Réveillon”, por exemplo: “Matei um Papai Noel, e matar aquele Papai Noel deu-me uma grande felicidade”. Note-se, também, um personagem similar ao do romance “O Seminarista” (está lá o Despachante, mas faltam as citações em latim e a Glock, substituída por uma Beretta). Em “Réveillon”, há outra menção ao “despachante”, mas o exercício gratuito e raivoso da violência aponta para outra direção, esta, sim, mais próxima de “O cobrador”. Com isso, Fonseca enseja uma espécie de contraponto àqueles personagens norteados por “princípios”, como o já citado velho e sua Taurus, o narrador de “Homem não pode bater em mulher”, obrigado a lidar com o vizinho covarde após ser ignorado pela polícia, o sujeito que se depara com um assassino em série em “Gastronomia” ou o vendedor de rua que vai à forra contra um concorrente em “Carnaval”.

É importante ressaltar e sublinhar essas modulações para afastar de vez a noção de que Fonseca estaria “se repetindo” nos derradeiros anos de carreira. Longe disso. Consciente dos desdobramentos de seu estilo e de seus temas, e atento à depauperação material e espiritual sempre em curso no mundo ao redor, ele sempre buscou e encontrou novas formas de recriar literariamente esse recrudescimento das ruínas, algo que vai muito além de quaisquer problemas “sistêmicos”, ideológicos e pontuais. Mesmo quando reencontramos um personagem icônico como Mandrake no conto que dá título ao volume, inexiste a sensação de algo requentado. Ali, a sujidade moral que leva aos crimes (“Ela fez a minha filha se tornar homossexual”) é típica não só do nosso presente desesperador, mas de toda uma história ancorada em massacres, violações e espoliações de toda espécie. É claro que Rubem Fonseca, em “Calibre 22” ou qualquer outro de seus livros, não é um moralizador ou coisa parecida. Ele concebe e ilumina para nós essas pinturas rupestres, esses relatos de um país naufragado, e então, a exemplo de Mandrake, passa “o problema de crer-ou-não-crer adiante”.

Dalton Trevisan: escrever e silenciar

Texto publicado no Estadão em 11.12.2024. Leia abaixo ou AQUI ou clique na imagem para ampliar.

Dados o aspecto reservado da personalidade do escritor curitibano Dalton Trevisan (1925-2024) e a forma como ele conduziu sua vida profissional, a melhor maneira de abordar sua enorme contribuição à literatura é ignorar detalhes pessoais e privados e se fixar na produção ficcional. O epíteto que lhe infligiram, relativo ao título de seu livro mais conhecido, O vampiro de Curitiba, diz muito do estranhamento com que costumam ser vistos autores que preferem deixar que as obras falem por si, mantendo-se longe dos holofotes e da interminável procissão de egos que caracteriza o meio literário. Trevisan ocupou-se de escrever e de silenciar, e foi genial em ambas as atividades. Graças à primeira dessas atividades, foi agraciado com os prêmios Camões, Machado de Assis, Portugal Telecom, APCA, Biblioteca Nacional e Jabuti, entre outros.

Embora tenha escrito um romance, A polaquinha, e novelas como Mirinha e Nem te conto, João, Trevisan firmou-se como um dos melhores e mais inventivos contistas brasileiros desde Novelas nada exemplares, lançado em 1959. Antes, publicara histórias em folhetos e na revista Joaquim (1946-48), fundada por ele, Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. A concisão, “o olho aberto no escuro”, a utilização e reinvenção da linguagem coloquial, as imagens (“Bastava dizer João, eu beijava o sexto dedo do pé”; “cada morto é uma flor de cheiro diferente”; “O tropel de corvos no telhado: era a chuva”) e as repetições, elipses e supressões — tudo isso já marca presença em Novelas nada exemplares.

Ao se fixar nas existências corriqueiras, mais a-heroicas do que anti-heroicas, e não raro marcadas por ocorrências trágicas (“A mulher chorava de pé, a cabeça apoiada na parede. Uma vizinha esfregava vinagre nos pulsos do menino desmaiado. Debruçou-se o pai na cama — a criança virou o branco do olho”) ou ridículas (“Paulo reparou nas duas sombras. Uma, bule de chá, gorda e grávida. Outra, selvagem albatroz da noite, abrindo asas na glória de arremeter voo”), Trevisan cria e recria dramas domésticos e não raro comezinhos, elevando-os por meio de um trato único com a linguagem e as estruturas narrativas.

Tomemos como exemplo o que ele faz no conto “A visita”, de Cemitério de elefantes (1964). Uma mulher visita o amante, acompanhada pela filha “doentia, de grandes olhos machucados”. A criança é o álibi, pois a mulher não quer “ficar falada”. Após trancar a menina no banheiro, ela e o amante se entregam ao objetivo da visita. Depois, o casal ainda na cama e a menina no banheiro, a mulher conta uma história envolvendo a própria mãe e o amante desta. A narrativa “interna”, em primeira pessoa, no corpo de um diálogo, adensa a narrativa “externa”, em terceira pessoa. As elipses são radicalizadas: “Não basta que mamãe… Certa manhã descobri o que mamãe era”. As ironias são lancinantes: “Não gostava de Nestor, não sei por quê. (…) Eu recolhia as pontas de cigarro dele e fumava no banheiro. Sonhava todas as noites com ele”. Dois casais de amantes, duas filhas solitárias — uma delas, a protagonista de ambas as histórias. Em um só conto, duas narrativas que se espelham.

Trevisan jamais aliviou suas marcas narrativas e estilísticas, mas tratou de levá-las ao extremo. Assim, elementos do sujeito acanalhado que repara nas “duas sombras” em “Idílio”, das Novelas, e do amante grosseiro d’“A Visita” (“Você parece louca, Ema.”), por exemplo, reaparecem com maior violência no conto-título d’O vampiro de Curitiba, na voz do famigerado Nelsinho: “Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento”; “Toda família tem uma virgem abrasada no quarto”; “Mãe do céu, até as moscas instrumento de prazer — de quantas arranquei as asas?”. A boçalidade e a raiva do macho brasileiro, estuprador em potencial ou violador contumaz, são traduzidas à perfeição desde a estruturação tensa, abrasiva e rascante dos períodos compostos por Trevisan. A violência do texto ecoa a violência da rua ou da alcova, bem como a brutalidade do toque indesejado e do olhar vampirizador.

Um dos desdobramentos mais extraordinários da radicalização dessa estilística se dá nos microcontos de Ah, é?, 234, Pico na veia e Arara bêbada, lançados entre 1994 e 2004. As “ministórias” presentes nesses e outros volumes da mesma época não são maneirismos, mas expressões cristalizadas de um autor no auge da forma: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do mindinho amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”; “Eu? Nove lances, eu? É mentira da moçada. Uma delas grávida? O que eu tenho são três assinados. Não sei dizer, não. (…)”; “Assim o cãozinho quer pegar no chão a sombra do voo rasante do pássaro, você persegue no tempo a lembrança em fuga dos teus mortos queridos”.

Em uma bibliografia extensa e geralmente associada à repetição, impressiona como o autor jamais se perde. Do teor arquetípico dos joões e marias de Guerra conjugal (1969) aos batimentos do “coração delator do tempo” (o relógio) que marcam O beijo na nuca (2014), há um tensionamento que sempre transforma o mesmo em algo novo. É como se Curitiba e seus habitantes continuamente nos escapassem ou se tornassem outros, e outros, e outros, deixando estilhaços, fragmentos e restos humanos que, somados, apontam para uma completude maior, uma integridade ulterior — a própria obra literária de Dalton Trevisan.

Alguns parágrafos sobre “Megalópolis”

Uma boa surpresa (dentre várias outras) que tive assistindo a “Megalópolis” foi constatar que a estrutura narrativa do filme é absolutamente convencional, com os três atos muitíssimo bem delineados. Eu temia que, dominado pela húbris, Francis Ford Coppola tivesse sucumbido sob o peso das próprias ideias e do tamanho de um projeto acalentado há décadas e financiado com seus próprios recursos. Não é o caso.

Mas essa constatação leva águas para outro moinho. Reli algumas críticas (positivas e negativas) publicadas desde as primeiras exibições do filme e, em muitas delas, tive dificuldades para enxergar ali a obra que vi na tela. Não há nada da “bagunça” que alguns apontaram. É como se, em alguns casos, o crítico (ou “crítico”) visse a si mesmo vendo o filme através de um filtro no qual se acumulam zilhões de preconceitos e expectativas desencontradas. Ou seja, a “bagunça” estava nos olhos de quem viu.

Sim, sim, todos alimentamos expectativas, é algo inescapável (falo a respeito das minhas daqui a pouco), mas também estou me referindo a algo diferente: há muita gente que não vê (ou lê) a obra pela obra, a obra pelo que ela é ou tal como se apresenta, cinematográfica ou literariamente falando, mas, sim, mediante uma impressão ou uma ideia difusa do que ela (obra) “deveria” ser. Essas pessoas não se abrem ao que veem ou leem, desarmadas, mas se fecham de forma antecipada e julgam “saber” exatamente o que esperar. Se a obra corresponde a essa expectativa (boa ou ruim), está tudo certo, “eu já sabia” etc. Se a obra foge a essa expectativa, é rejeitada logo de cara. Não há curiosidade. Não há espaço para/possibilidade de surpresa.

Eu vi “Megalópolis” esperando que fosse desastroso, mas por uma boa razão: desde meados dos anos 1990, os filmes de Coppola oscilam entre a mediocridade (“O homem que fazia chover”) e a extrema ruindade (“Jack”, “Twixt”). Esperava que “Megalópolis” fosse desastroso, mas em nenhum momento me fechei para a possibilidade de que fosse bom ou mesmo excelente (ou sequer teria ido ao cinema). Em outras palavras, mesmo esperando pelo pior, fui desarmado à exibição e vi o filme com os olhos bem abertos. E “Megalópolis” foi uma ótima surpresa, tanto quanto “Dias perfeitos”, de Wim Wenders. Sim, são filmes muito, muito diferentes entre si, mas cito Wenders porque seu trabalho no cinema de ficção descarrilhara feio após “Asas do desejo”. Há essa coincidência entre eles: dois cineastas que perderam a mão.

Não é absurdo trazer Wenders para a conversa também por outra razão: “Hammett” (1983). Caso não saiba do que se trata, sugiro que veja o filme e leia a respeito de sua conturbada produção. Ali, Coppola (no papel de produtor) fez com Wenders o que reclama que os executivos dos estúdios de Hollywood fazem com os artistas de verdade. Curioso, não? Ironias assim sempre me divertem.

A trajetória de Coppola também é curiosa porque a ideia que ele parece ter a respeito de si foi sistematicamente desmentida ao longo de quase seis décadas. Embora quisesse se firmar como uma espécie de auteur, um realizador independente de filmes “pequenos” e ousados, seus melhores trabalhos (a trilogia “O poderoso chefão”, “A conversação” e “Apocalypse now”) são narrativamente clássicos, além de financiados e/ou distribuídos por majors. Sim, o homem enterrou dinheiro próprio em “Apocalypse now” e quase se estrepou por isso (ele se estreparia feio poucos anos depois, com “O fundo do coração”), mas a United Artists distribuiu o longa. Não é por estabelecer sua produtora Zoetrope em San Francisco que ele escaparia dos estúdios, do “sistema”. Não escaparia e não escapou. Toda essa conversa me parece sintoma de autoengano.

Quando deu com os burros n’água (ou numa das vezes em que deu com os burros n’água), Coppola voltou correndo para o colo da Paramount e fez o terceiro “Chefão”. E, como ainda tivesse dívidas para quitar, sugou 40 milhões de dólares das tetas da Columbia e entregou “Drácula de Bram Stoker” — seu último grande filme antes de “Megalópolis”, aliás.

Mesmo os (ótimos) filmes “pequenos” que fez após o fracasso financeiro de “O fundo do coração”, como “Vidas sem rumo”, “O selvagem da motocicleta” e “Tucker”, são estruturalmente clássicos, isto é, obedecem a uma gramática narrativa formalizada no cinemão norte-americano desde (ou a partir de) Edwin S. Porter e D. W. Griffith. E não custa lembrar que um dos grandes colaboradores de Coppola é o montador Walter Murch, criador da famigerada “regra dos seis” (ele a explica AQUI).

Óbvio que o trabalho sob parâmetros bem estabelecidos não impede a inovação. Na verdade, não é raro que tal rigidez resulte em inovações mais consequentes, isto é, direcionadas a objetivos específicos ou resultantes de problemas pontuais. Vide o trabalho revolucionário do próprio Murch com o som em “Apocalypse now”, por exemplo, ou a ousadia trevosa do fotógrafo Gordon Willis na trilogia “O poderoso chefão” (especialmente no segundo), exemplo genialíssimo de subexposição.

Em “Megalópolis”, Coppola se movimenta dentro daquela estrutura narrativa sedimentada e, sem extravasá-la (o que arruinaria o filme), brinca com ela, força, empurra, ironiza e autoironiza. Os alicerces do filme são todos clássicos, desde o discurso (roteiro, mise-en-scène, montagem) até os discursos (Shakespeare, Cícero, Marco Aurélio). Mesmo os excessos ocorrem coerentemente no âmbito de regiões bem delimitadas. Tome-se como exemplo a extraordinária sequência no “Coliseu”. Apenas um criador com pleno conhecimento das possibilidades e dos limites de seu modelo narrativo conseguiria alinhavar de forma tão brilhante tantos e tão variados elementos que não só correm paralelamente como num crescendo estonteante e muito divertido. Apenas com tesoura e cola (não literalmente, claro), Coppola nos dá todas as informações necessárias acerca de cada um dos personagens principais, faz a história avançar e, ao mesmo tempo, insere uma lisergia capaz de comentar aquelas mesmas informações e criar sentidos ulteriores. Como se não bastasse, ele ainda coroa a sequência com o discurso mais célebre das “Catilinárias”, enunciado, é claro, por Cícero (Giancarlo Esposito) — “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência…”. Tudo ali é primoroso.

As reverberações políticas e as metáforas acerca da criação artística em “Megalópolis” exigiriam outros textos. Aqui, limito-me a sublinhar a fala do banqueiro interpretado por Jon Voight (que ficou a cara da Judi Dench com aquele cabelinho): “América kaputt”. Antes, um de seus sobrinhos (Shia LaBeouff) berra para a massa enraivecida: “Vamos pegar o nosso país de volta!”. O problema é quando não há mais país algum para retomar.

Em “Megalópolis”, a cidade não é retomada, mas reimaginada e construída sobre novas bases. O filme tem um final feliz, condizente com tudo aquilo que eu procurei ressaltar acerca do jogo narrativo no qual se fia, cujas regras Coppola segue coerentemente do começo ao fim. Mas nada me afasta a impressão (corroborada por meus olhos) de que aquele bebê flutua no vazio.

(Sacaneei os cabelos do Voight, mas ele é uma das melhores coisas do filme. Todo o elenco está fenomenal.)

Após o fim, um recomeço

Com Búfalos selvagens, Ana Paula Maia encerra sua trilogia apocalíptica.

Resenha publicada no Estadão.

A “Trilogia do Fim” compreende os romances Enterrem seus mortos, De cada quinhentos uma alma e Búfalos selvagens, todos publicados pela Companhia das Letras. Neles, Ana Paula Maia trafega pelo interior de um mundo colapsado na companhia de Edgar Wilson, personagem recorrente em quase toda a ficção da autora, especialista em fazer o “trabalho sujo dos outros”: recolher carcaças em rodovias, abater animais em matadouros, lidar com a sujeirada do mundo. Como é dito em De gados e homens, romance de 2013 que antecipa o esgarçamento que observamos na “Trilogia do Fim”: “Alguém precisa fazer o trabalho sujo. O trabalho sujo dos outros. Ninguém quer fazer esse tipo de coisa. Pra isso Deus coloca no mundo tipos como eu e você”.

Mesmo em um ambiente degradado, no qual a escuridão “engoliu a Terra, levando-a para os abismos de um deus”, sempre há trabalho sujo a ser feito. Em Búfalos selvagens, reencontramos Edgar Wilson circulando pela estrada, recolhendo corpos de animais e levando-os para serem triturados. A impressão é de que o (ou um) fim do mundo veio e já passou, levando consigo nacos inteiros da realidade e dos personagens. O livro remete a acontecimentos da obra anterior, De cada quinhentos uma alma, como a pandemia não identificada que varreu o mundo: “Antes havia o silêncio, o desaparecimento dos vermes necrófagos e a iminência do fim de todas as coisas. Mas esse fim recaiu sobre a Terra como raios diluídos”. O que ocorreu, portanto, foi uma espécie de apocalipse parcial, do tipo que — ilusoriamente ou não — permite algum recomeço àqueles que sobreviveram.

E é nesse espírito que Edgar Wilson aceita o convite para voltar a trabalhar em um matadouro, ocupação que já tivera em De gados e homens. Mas, agora, em vez de gado, lidará com búfalos, ciente de que todos “seguem para a morte”, todos compartilham da “mesma angústia”, do “mesmo espectro das próprias trevas”. O cadáver de um palhaço na rodovia e o mistério que cerca a sua morte, a bizarrice das apresentações de um autoproclamado “Circo das Revelações”, no qual uma vidente oferece algum conforto à arraia-miúda (procure não se espantar com Boris, o galo), e uma confusão envolvendo a origem dos búfalos levados ao matadouro se misturam em uma narrativa no qual importam menos quaisquer peripécias e mais a rotina dos trabalhadores, por um lado, e as digressões, por outro. As intrigas comezinhas são resolvidas rapidamente, sem maiores pirotecnias, e o homicídio aponta para o mistério maior e inexplicado, relacionado à vidente.

Mas, claro, não há descanso. No recomeço ensaiado em Búfalos selvagens, quase tudo aponta para a morte: “Edgar Wilson precisa enterrar todos os mortos, ainda que aparentemente estejam vivos e andando sobre a terra. Ainda não é tempo de paz, ainda não é tempo de descansar”. É nesse sentido que o romance assume suas feições apocalípticas: todo fim enseja um recomeço, redentor ou não. Tal caráter é afirmado em mais de uma passagem, ainda que, em pelo menos em um caso, a ressurreição surja como uma piada impagavelmente doentia.

Por fim, há que se ressaltar a organicidade do projeto. Em uma rápida folheada de outros livros da autora, lemos: “Até os cães comem os próprios donos com lágrimas nos olhos” (Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos); “Olha comovido a pilha de carvão animal ao lado da pilha de carvão mineral. Não é possível identificar qual é mais negro. Se misturados, homens e fósseis se confundiriam” (Carvão animal); “Todos são matadores, cada um de uma espécie, executando sua função na linha de abate” (De gados e homens)”; “Ali vai o homem que sepulta os mortos no rio e que faz reviver um novo ser humano. A única maneira de nascer de novo é morrendo” (Enterre seus mortos). Na construção de seu inferno nada provisório, Ana Paula Maia ostenta exemplares domínio estilístico e clareza de propósitos.