Beleza exausta

Resenha publicada no Estadão em 09.11.2013.

amálgama

A prosa descolorida de Rubem Fonseca reaparece com força nos contos de Amálgama. Desde já, ressalte-se que o termo “descolorida” não traz nenhuma crítica negativa, pelo contrário. A potência de alguns dos relatos que encontramos no livro deve tudo a essa aspereza tão cara à prosa do escritor.

São 34 contos, e mesmo um texto de difícil catalogação como Lembranças não deve ter a sua, digamos, vocação narrativa constrangida. Enquanto contista, Fonseca arrebentou a coleira há muito tempo para seguir rosnando livremente por aí. A experimentação formal é bem menos acentuada do que, por exemplo, a de um Dalton Trevisan, onde a depauperação humana encontra um correlato na própria depauperação linguística, mas o esforço é similar e, não raro, igualmente poderoso.

Os narradores de Fonseca deitam seus olhos exaustos sobre uma realidade tão esgarçada quanto incompreensível. “Tudo cansa, tudo nos dá tédio, a beleza também”, lemos em Perspectivas. Daí, talvez, o descolorido de que falamos.

As palavras não alcançam o mundo e sua violência avassaladora, mas esses personagens insistem em descrever os percalços por que passam. Não há, contudo, o sentido de um testemunho. As histórias se sucedem como garranchos nas paredes de um banheiro público. São as pinturas rupestres de que dispomos na contemporaneidade.

Em O Filho, conto que abre os trabalhos, uma mãe planeja vender o bebê da filha para comprar uma dentadura. O grotesco da intenção só é suplantado pelo desfecho da aventura, que poderíamos descrever como uma gargalhada sardônica do acaso. Não obstante, escolhas são feitas e descritas com precisão: “Foi caminhando lentamente pela rua até que encontrou a primeira lata de lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo”. As palavras dizem o que acontece ao mesmo tempo em que atestam a impossibilidade de dizer, de fato, o que acontece.

Mais adiante, em Isto é o Que Você Deve Fazer, o narrador fala de alguém que estaria matando os gatos de um parque: “Joga-os dentro do lago e fica olhando os animais se afogarem”. Não há, em princípio, qualquer surpresa ou estupefação. No entanto, algumas perguntas surgem naturalmente: “Qual será o prazer de matar um gato? Quem mata um gato é capaz de matar uma pessoa?”. E depois: “O que eu devo fazer? Apenas observar?”. Quando afinal interpela o sujeito, o narrador descobre que ele “matava cães e gatos, mas não dizia palavras torpes”. O que fazer com alguém assim? Ao final, a resolução é tomada e, por meio dela, reitera-se uma zona de indiferenciação ontológica – gatos, cães, baratas ou homens, todos podem ser trucidados.

Em Conto de Amor, por exemplo, um pai exprime o desejo de assassinar o próprio filho deficiente, embora (ou justamente por isso) declare ao final seu amor pelo rebento. Em O Ciclista, um jovem entregador revela-se uma espécie de justiceiro sobre duas rodas. Mas, como ele próprio afirma, seu interesse não é fazer justiça, mas, sim, “punir as pessoas más”. A maldade, no caso, é identificada naqueles que “batem em crianças, que batem em mulheres, urinam nos cantos das ruas”. Não há uma reflexão sobre a natureza do mal, mas uma série de constatações pontuais.

Os indivíduos parecem incapazes de um esforço de contextualização ou mesmo de abstrair o que quer que seja. Não há um chão comum que lhes garanta qualquer perspectiva. A existência é reduzida a um espaço onde as “pessoas são infelizes, as ruas são esburacadas e fedem, todo mundo anda apressado, os ônibus estão sempre cheios de gente feia e triste”, e “o pior não é isso”. O pior é justamente decidir o que fazer com o outro.

Rubem Fonseca traduz um mundo no qual a valoração, qualquer que seja, perdeu a razão de ser. Não faz mais sentido falar em termos de barbárie e civilização. Em contos hoje considerados clássicos, como Feliz Ano Novo e O Cobrador, ele percebeu as rachaduras no teto e nas paredes. Agora, aos 88 anos de idade, ele se dedica a documentar as ruínas.