Realidade tortuosa

Realidade tortuosa

Resenha publicada no Estadão em 03.06.2012.

Talvez você se lembre do escocês Irvine Welsh no filme Trainspotting. Naquela adaptação de seu romance de estreia, nós o víamos como Mikey Forrester, um traficantezinho que vendia supositórios de ópio para um Mark Renton (Ewan McGregor) desejoso de abandonar o vício em heroína sem sofrer demais no processo. Lendo Requentando repolhos (Rocco, trad.: Paulo Reis), coletânea de contos de Welsh recém-lançada no Brasil, não é difícil pensar naquele sujeito careca e barrigudo, a cabeça já um tanto avariada pela bebida e pelas drogas, errando por Leith, distrito de Edimburgo no qual se passa a maioria das histórias que compõem o livro.

À exceção da última delas, a dolorosamente esperançosa “Eu sou Miami”, são narrativas publicadas entre 1994 e 2000 em diversas antologias que, nas palavras do próprio autor, “exploravam as fraquezas dos escoceses ou o tema das drogas, dominantes na década de 1990, pelas quais assumo ao menos parte da culpa” e, em seguida, afirma sentir muito por isso. E a verdade é que alguns desses autoproclamados “contos de degeneração química” não agradarão aos leitores de estômago fraco.

Tomemos como exemplo “Falta em cima da linha”, que abre o volume. A exemplo dos dois contos subsequentes, ele é narrado em raivosa primeira pessoa por um cidadão de Leith beberrão, boca suja, machista, homofóbico e torcedor do Hibernian F.C., time local mais conhecido como Hibs. E é justamente em dia de embate dos Hibs contra o seu maior rival, o Heart of Midlothian (ou apenas Hearts), que a esposa do nosso herói o chama para passear com ela e o casal de filhos. Ele aceita, desde que estejam em casa a tempo de assistir ao jogo. A “linha” do título é a férrea, pois acontece de, quando estão voltando para casa e são instados pelo chefe de família a cortar caminho pelos trilhos, a mulher não atravessar a tempo, ser atingida por um trem expresso e ter as pernas arrancadas. Em meio ao horror da situação, com uma das crianças em estado de choque, a outra buscando nos trilhos os membros da mãe, a correria até o hospital, a única preocupação do protagonista é com o jogo que perderá.

Após três histórias narradas por vozes bem parecidas, Welsh pega o leitor no contrapé com “O incidente de Rosewell”, uma longa viagem envolvendo desde a juventude inerte e drogada de Edimburgo até uma invasão alienígena levada adiante por um torcedor dos Hibs abduzido anos antes. A habilidade com que Welsh estrutura um painel dos mais inusitados e sem recorrer gratuitamente à violência é o que mais chama a atenção. Parece haver uma compreensão maior desse tecido social esfarrapado. Antecipando certa ternura que externará no conto que fecha o volume, ele se permite um olhar cúmplice sobre personagens como Shelley, uma adolescente que sonha em se casar com Liam Gallagher, então vocalista da banda Oasis, enquanto se entrega por puro tédio a um frentista de posto de gasolina e, o que é pior, acaba engravidando dele. Folheando uma revista e fitando os olhos do ídolo numa fotografia, imaginando conseguir “ver um pouco da alma dele ali”, ela só consegue pensar sobre o estado em que se encontra de forma tortuosa: “Ela não sabia se manteria o bebê ou se o descartaria. Naturalmente que Liam também teria que ser consultado. Era justo”. Ainda que seja absurdo, o raciocínio não soa de todo patético em função do desespero mudo que enseja.

Acabamos envolvidos por essa humanidade torta que irrompe aqui e ali. Logo, é interessante notar como a brutalidade explícita dos primeiros contos aos poucos cede lugar àquela compreensão de que falamos há pouco. Não é que Welsh comece a se valer de sutilezas, mas é inegável a compaixão suscitada por um personagem como Collum, de “A festa”, tendo de lidar com a morte súbita por overdose de um amigo e, depois de (mal) resolvida a questão que se coloca (o que fazer com o corpo?), dizendo com enorme dificuldade: “Nós… vimos o Boaby… o Boaby… vimos o Boaby morrer… não devia ser assim, não devia ser como se nada tivesse acontecido…”. O mesmo esforço transparece em “Disputada”, no qual dois amigos brigam por uma mesma mulher que talvez nem queira ficar com nenhum deles, mas acabam se entendendo (ok, o ecstasy ajuda), e, sobretudo, em “Eu sou Miami”. Neste, um ex-professor viúvo e aposentado está em Miami visitando o filho. Ali, uma série de coincidências o coloca frente a frente com alguém que fora um de seus piores alunos, agora um DJ famoso.

A implausibilidade das coisas que se sucedem acaba por resultar em um reencontro do velho consigo mesmo e com os outros: “Ele ainda viu seu antigo professor sorrir, num agradecimento tímido, antes de se virar e sair caminhando, ainda trêmulo nos primeiros passos, mas, depois, como o velho soldado que era, marchando firme pelo jardim tropical, dando a volta na piscina”. Desse modo, e até pela forma inteligente como a coletânea foi organizada, Irvine Welsh permite que olhemos para esses personagens como se alguma coisa estivesse, sim, acontecendo. No caso, boa literatura.

Jünger, Céline

Artigo publicado no Estadão.

DA AMBIVALÊNCIA AO CINISMO
Obras de Jünger e Céline nos transportam à Primeira Guerra Mundial de formas genialmente distintas

A Primeira Guerra Mundial chegou ao fim há 106 anos, mas a sujidade das trincheiras e as explosões dos obuses ainda se fazem literariamente presentes: Tempestades de aço, clássico do alemão Ernst Jünger originalmente lançado em 1920 (quando a lembrança do conflito ainda fritava na memória das pessoas), acaba de ganhar uma reedição pela Carambaia, com tradução e posfácio de Marcelo Backes; e Guerra (Cia. das Letras), escrito no começo da década de 1930, mas só publicado na França em 2022, é um exemplar formidável (embora inacabado) da prosa do francês Louis-Ferdinand Céline, em tradução de Rosa Freire d’Aguiar. Falemos um pouco dos autores.

Céline, pseudônimo de Louis Ferdinand Auguste Destouches (1894-1961), niilista e femeeiro, é responsável por um dos maiores romances do século XX, o qual também parte de (mas não se limita às) suas experiências nas trincheiras: Viagem ao fim da noite. O manuscrito de Guerra foi roubado do apartamento de Céline ao final da Segunda Guerra, quando ele fugia dos aliados e da resistência francesa, pois publicara panfletos antissemitas e era citado com frequência pela imprensa colaboracionista. Prenderam-no na Dinamarca em dezembro de 1945. Solto em 1947 e obrigado a permanecer no país escandinavo, foi julgado e condenado in absentia na França, mas anistiado por ser um veterano da Primeira Guerra. Retornou ao país natal em 1951.

Jünger (1895-1998), filho de um empresário afluente, foi membro do movimento Wandervogel (anti-industrialista e teutônico até a medula) e, sedento por ação, chegou a se alistar na Legião Estrangeira, pelo que quase foi preso. Por “sorte”, veio a Primeira Guerra, ele se juntou às fileiras alemãs e, no decorrer do conflito, foi ferido mais de uma dezena de vezes. Suas experiências são brilhantemente narradas em Tempestades de aço. Durante a República de Weimar, seguiu militando contra valores liberais-democráticos, mas não se deixou seduzir por Hitler e cia. Em 1943, lotado como capitão do exército regular na Paris ocupada, escreveu o ensaio Der Friede (“A Paz”), no qual se coloca frontalmente contra o nazismo e advoga a criação de uma federação europeia que evitasse novos confrontos armados. Indiretamente implicado no atentado de 20 de julho de 1944 contra Hitler, acabou dispensado do exército. No mesmo ano, por razões também políticas, seu filho mais velho foi sentenciado ao “batalhão penal” e morreu em combate na Itália. Nas décadas subsequentes, Jünger viajou e escreveu bastante, aprofundou seu ideário individualista e conservador e experimentou drogas (sobretudo mescalina e LSD). Morreu aos 102 anos de idade.

Jünger e Céline são criaturas bem diferentes. Em Tempestades de aço, a guerra é descrita como uma experiência quase mística, em consonância com a natureza e apontando para a essência elusiva da existência (não por acaso, Heidegger foi um leitor atento de seu conterrâneo). Em Guerra, não há vestígios de quaisquer transcendências, tudo é carne, é “terra podre por todo lado”, e a prosa crua descreve a guerra e a vida como gratuitas e sem sentido.

O romance de Céline se passa em 1914 e não vai às trincheiras, por assim dizer: ferido, o narrador é levado para um hospital na retaguarda, onde lida com uma enfermeira licenciosa, a estupidez dos pais e um coleguinha militar que prostitui a própria esposa e acaba se estrepando em grande (e baixíssimo) estilo. Exemplos típicos da voz de Céline: “Peguei a guerra na minha cabeça. Ela está trancada na minha cabeça”; “Nunca vi ou ouvi alguma coisa tão nojenta quanto meu pai e minha mãe”; “Bater as botas, ainda é possível aceitar, mas o que esgota a poesia é tudo o que precede, toda a charcutaria, as futricarias, as torturações que precedem o soluço final. Portanto, é preciso ser bem breve ou bem rico”; “Em matéria de experiência, eu envelhecia um mês por semana. É no ritmo em que se deve ir para não ser fuzilado na guerra”.

Tempestades de aço se filia à tradição bélico-literária ocidental que, conforme aponta Marcelo Backes no posfácio, remonta à Ilíada de Homero. Mais do que uma invenção humana, a guerra é encarada como um fato incontornável da natureza. Jünger narra suas experiências no front, entre 1915 e 18, com sobriedade, mas não distanciamento. Fiel ao individualismo, ele deplora a mecanização do confronto — prefere o combate corpo a corpo, no qual se sobressai a destreza de cada soldado. O apego ao caráter imediato e fenomênico da coisa e a extrema elegância da prosa impedem que o livro seja facilmente rotulado: há quem o considere belicista, há quem o ache neutro e há até quem enxergue ali um teor antibelicista. O que importa é que o homem escrevia bem demais: “Ali imperava a grande dor, e pela primeira vez eu vislumbrava as profundezas de seu reino através de uma fresta demoníaca. E as explosões não paravam”; “A concentração monstruosa das forças na hora decisiva em que se lutava por um futuro distante e o desencadeamento que se seguiu a ela de modo tão surpreendente e abalador haviam me conduzido pela primeira vez às profundezas de regiões suprapessoais. Isso era diferente de tudo o que eu vivenciara até então; era uma iniciação que não apenas abria as câmaras incandescentes do horror, mas também as atravessava do princípio ao fim”.

O fato de Tempestades de aço ter sido escrito logo após o confronto contribui para o frescor e a ambivalência que tornam a obra atemporal. Em Guerra, redigido quase duas décadas após o fim da Grande Guerra, é justamente o distanciamento que ajuda a depurar a prosa cínica de Céline. Lidas em sequência, as obras são antagônicas e complementares, e ressaltam as violentas contradições inerentes a qualquer conflito armado e a qualquer indivíduo.

Siracusa

André de Leones | ficção

 

 

“Queria que Deus estivesse vivo pra ver isso.”
— Homer Simpson.

 

Era uma vez, e nem foi uma vez tão boa assim, foi uma vez horrível, na verdade, uma vez hedionda, fedorenta, bizarra, uma vez malcheirosa, uma vez com bodum de mertiolate e merda, era uma vez essa vez e, nessa vez que era uma vez, era uma vez um sujeito que ouvia vozes e esse sujeito que ouvia vozes pegou uma faca, e nem era uma faca tão boa assim, não, senhoras e senhores, de jeito nenhum, muito pelo contrário, era uma porcaria de faca, não era uma faca dessas que os soldados de elite usam nos filmes, não era a faca do Rambo em Rambo II, não era a faca do tenente-coronel John Matrix em Comando para matar, não era uma faca daquelas táticas, acho que é assim que eles chamam aquelas facas especiais, não era uma faca tática, com aquela lâmina fodástica e serrilhadinha num dos lados, o tipo de faca que você desatarraxa a tampa do cabo e tira uma bússola lá de dentro e se orienta assim no meio da selva ou do deserto ou das cavernas quando os inimigos estão bem próximos, porque os inimigos estão vindo e é melhor você ficar esperto, quase todo mundo tem inimigos, todo mundo que importa tem inimigos, uma pessoa sem inimigos é uma pessoa da qual é melhor desconfiar, até Jesus tinha inimigos, como Caifás, Caifás era um puta inimigo de Jesus, e Caifás era um tremendo cretino, na Mishná fazem um trocadilho com o nome dele e chamam o cretinão de “Ha-Koph”, “O Macaco”, uma boa pessoa com bons inimigos tem ou deveria ter uma boa faca, exceto Jesus, é claro, a posse de uma faca talvez zoasse a mensagem de Jesus, mas estou falando de pessoas normais, terrenas, como eu e os senhores e as senhoras, uma boa pessoa terrena e normal com bons inimigos terrenos e normais tem ou deveria ter uma boa faca, uma faca bacana, e a faca desse sujeito que ouvia vozes não era bacana, não mesmo, a faca que ele pegou era uma faca comum, e não era sequer uma faca muito afiada, porque uma faca pode ser comum e meio gasta, mas afiada, uma faca afiada ainda faz o que se espera dela, isto é, ela corta e perfura, é uma faca útil, uma boa faca, embora comum e meio gasta, mas a faca do sujeito que ouvia vozes era uma faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, era uma faca muito feia, do tipo que a pessoa sentiria vergonha de levar consigo a uma pescaria, os amigos com tralhas novinhas e facas especiais afiadíssimas, algumas delas táticas, os amigos olhando para aquela faca comum, meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, olhando e julgando e rindo e sacaneando, que porra de faca é essa?, vai usar essa faquinha aí?, essa faquinha não abre nem lambari, que faca mais feia você tem, olha como é feia a faca dele, pode até parecer bobagem, mas as pessoas prestam muita atenção nas facas umas das outras, e as pessoas não fazem isso apenas no relaxado e amistoso e aprazível ambiente de uma pescaria, não, as pessoas estão sempre prestando atenção nas facas umas das outras, pois a faca diz muito do caráter do indivíduo, um indivíduo com uma faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia é um indivíduo comum e meio gasto e meio cego e além de tudo feio, ao menos de certa forma ou por assim dizer, não literalmente comum e meio gasto e meio cego e além de tudo feio, embora também possa ser, as pessoas estão sempre adiando aquela consulta com o oftalmo, por exemplo, dá uma certa preguiça dilatar a pupila, embora nem sempre a pupila seja dilatada, e assim ficam meio cegas, não é mesmo?, os óculos defasados relativamente ao avanço da miopia, do astigmatismo ou da hipermetropia, e talvez o sujeito que ouvia vozes e pegou a faca, esse sujeito comum e meio gasto e além de tudo feio, fosse também meio cego, porque ele pegou a faca e, ouvindo todas aquelas vozes ou talvez apenas uma voz, sim, podia ser o caso de uma só voz tonitruando dentro da cabeça dele, não são necessárias muitas vozes para enlouquecer alguém, basta uma voz para enlouquecer alguém, uma voz incansável e insistente e desagradável dizendo isso e aquilo, pedindo isso e aquilo, exigindo isso e aquilo, provocando e instigando, basta uma voz tonitruando dentro da cabeça do indivíduo para que tenhamos configurado um caso de loucura esquizofrênica assim bem psicótica, pois as pessoas costumam ou tendem a fazer coisas muito loucas, esquizofrênicas e assim bem psicóticas quando têm uma voz ou várias vozes tonitruando dentro da cabeça, uma voz que não é a voz da própria pessoa, bem entendido, pois estamos sempre ouvindo a nossa própria voz dentro da nossa respectiva cabeça, isso é o normal, o comum, até mesmo o saudável, eu diria, alguém que não ouve a própria voz dentro de sua respectiva cabeça precisa de ajuda médica e psicológica, pode apostar, não sou especialista, mas sei do que estou falando, o problema é quando outra voz ou outras vozes tonitruam dentro da nossa respectiva cabeça, porque essa outra voz ou essas outras vozes, quando tonitrua ou tonitruam dentro da nossa respectiva cabeça, elas nunca são agradáveis ou amistosas, elas nunca dizem coisas bacanas como o seu time será campeão, anota aí os números da Mega-Sena, não esquece de pegar as roupas no varal, acho que a sua vizinha ou o seu vizinho quer transar com você, e se a gente fizesse uma pausa e bebesse um uisquinho?, vou te ensinar a ganhar uma grana extra sem sair de casa, não se preocupe porque o tumor no seu intestino reto é benigno, nada disso, a voz ou as vozes quando tonitrua ou tonitruam dentro da nossa respectiva cabeça, porra, as vozes dizem coisas terríveis, coisas absurdas, coisas nojentas, coisas abjetas, coisas criminosas, as vozes não dizem ajude aquela velhinha a atravessar a rua, as vozes dizem pegue uma marreta e arrebente os joelhos daquela velhinha que quer atravessar a rua para que ela nunca mais atravesse uma rua no pouco que resta de sua vida miserável, as vozes não dizem ajude aquele senhor cego a passar pela catraca do metrô, as vozes dizem pegue uma agulha de crochê e fure os tímpanos daquele senhor cego para que além de cego ele também seja surdo, as vozes não dizem você engravidou a amiga da sua namorada e isso é muito muito feio e é melhor você fazer uma autocrítica violenta e sentir um arrependimento bem sincero e repensar suas atitudes canalhas e suas escolhas estúpidas e confessar tudo para a sua namorada e dizer que sente muito sou uma pessoa imatura boçal babaca irresponsável ao passo que você é uma pessoa madura bacanérrima responsável sensacional e merece alguém maduro bacanérrimo responsável sensacional alguém que não sou eu evidentemente e depois procurar a amiga da sua agora ex-namorada e se desculpar por tê-la embebedado naquele feriadão que vocês passaram na chácara de um parente seu e por ter esperado a sua namorada ir para a cama e por ter levado a amiga bêbada da sua então namorada para a despensa e por ter transado com a amiga bêbada da sua então namorada na despensa e não ter usado camisinha e ter gozado dentro embora ela pedisse especificamente que você não fizesse isso depois de perceber que você não usava camisinha coisa que aliás ela perguntou no começo se você tinha e você mentiu dizendo tenho sim não esquenta vou colocar você deve se desculpar por tudo isso e pedi-la em casamento mesmo que não goste muito dela porque uma criança precisa de um pai e sacrifícios às vezes são necessários, as vozes dizem você engravidou a amiga da sua namorada e é melhor não contar nada para a sua namorada a menos que você queira magoá-la e arruinar a vida dela e se for esse o caso se você quiser magoá-la e arruinar a vida dela conte tudo mesmo e diga que se foda eu também comi a prima da sua mãe e a porcaria da sua professora de pilates e as duas nem sabem chupar uma pica direito e quanto à amiga grávida da sua agora ex-namorada primeiro duvide que o filho seja seu e jogue na cara dela que ela é uma vadia que andou trepando com meio mundo é isso mesmo você não passa de uma piranha e depois encha o saco dela para que faça um aborto e quando ela chorar e pedir dinheiro para o procedimento diga a ela que procure outro otário com quem tenha trepado porque ela trepou com meio mundo você dirá mesmo que não seja verdade ou sobretudo se não for verdade você dirá é óbvio que o filho não é meu e ela se quiser que aborte por conta própria ou tenha a criança sozinha quem se importa e depois te processe e peça um exame de DNA e se for o caso isto é se por azar você for o pai da criança ela que exija uma pensão e que se foda, as vozes não dizem vá à igreja amanhã e confesse e se arrependa de seus pecados e comungue e se esforce para ser uma pessoa melhor, as vozes dizem ouça Burzum e queime uma igreja de preferência com pessoas lá dentro incluindo padres e freiras e o filho coroinha do seu vizinho, as vozes não dizem está vendo aquele candidato a um importante cargo público ele é uma má pessoa e você precisa conversar com as pessoas e argumentar com calma e mostrar que aquele candidato a um importante cargo público é uma má pessoa e é melhor votar em outro candidato que não seja tão má pessoa ou quem sabe anular o voto qualquer coisa é melhor do que votar naquele candidato má pessoa a um importante cargo público desde que o processo democrático seja respeitado e as pessoas possam discordar de forma civilizada e respeitosa, as vozes dizem pegue uma faca nem precisa ser uma boa faca nem precisa ser uma faca dessas que os soldados de elite usam nos filmes pode ser uma faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia pegue a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia e procure aquele candidato má pessoa a um importante cargo público e enfie a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia no bucho cheio de bosta e ruindade do candidato má pessoa a um importante cargo público enfie a faca com vontade faça isso agora e que se fodam as consequências mas aconteça o que acontecer seu louco desgraçado dos infernos que ouve vozes dentro da sua cabeça aconteça o que acontecer não se esqueça de girar a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia porque se você enfiar a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia no bucho cheio de bosta e ruindade do candidato má pessoa a um importante cargo público se você enfiar mas não girar a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia tudo isso terá sido em vão seu louco burro desgraçado dos infernos que ouve vozes dentro da sua cabeça em vão está me entendendo tudo isso terá sido em vão, porque era uma vez, e nem foi uma vez tão boa assim, foi uma vez horrível, na verdade, uma vez hedionda, fedorenta, bizarra, uma vez malcheirosa, uma vez com bodum de mertiolate e merda, era uma vez essa vez e, nessa vez que era uma vez, era uma vez um sujeito que ouvia vozes e esse sujeito que ouvia vozes pegou uma faca, e nem era uma faca tão boa assim, não, era a porcaria de uma faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, esse sujeito que ouvia vozes pegou essa faca e invadiu uma festinha muito pobre e muito fodida, uma festinha das mais molambentas, cheia de gente mal vestida, maquiada em excesso e ouvindo músicas sem noção, esse sujeito invadiu a porcaria dessa festinha, mas não matou ninguém, só cantou parabéns, comeu uma fatia de bolo, elogiou o bolo, fez uma coisa, agradeceu pela festa e foi embora, pois o sujeito ignorou as vozes, ignorou em parte, e, usando aquela faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, o sujeito, depois de comer e elogiar o bolo, mas antes de agradecer pela festa e dar o fora, o sujeito fez uma coisa, e essa coisa que ele fez foi sacar a faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, e fincar essa faca no chão e abrir os braços e, com lágrimas nos olhos, dizer: Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui pedindo a sua ajuda, me dê uns trocados, pode ser moedinha, pode ser vale-transporte, se é que ainda existe vale-transporte, faz muito tempo que não uso o transporte urbano coletivo, fiquei fora por uns tempos, internado em uma belíssima instituição, meus familiares me internaram nessa belíssima instituição para que as vozes que tonitruam dentro da minha cabeça parassem de tonitruar dentro da minha cabeça, e elas pararam por um tempo, foi muito bom, eu adorei ouvir apenas a minha própria voz dentro da minha cabeça, mas agora as outras vozes voltaram, isso talvez tenha a ver com as medicações que parei de tomar porque as medicações me deixavam brocha e me davam caganeiras terríveis, caganeiras épicas, a ausência de libido eu conseguia suportar, pois sou uma pessoa comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia e maluca que ouve vozes, não é como se eu fosse sair por aí comendo uma mulher atrás da outra, mesmo mulheres comuns e meio gastas e meio cegas, e além de tudo feias, o mais provável é que eu só consiga comer alguém mediante um acerto financeiro prévio, daí eu estar aqui diante de vocês pedindo uns trocadinhos, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só quero uns trocadinhos para somar aos trocadinhos que já tenho e, quem sabe, mediante um acerto financeiro prévio, comer uma buceta após todos esses anos afastado do convívio social com as pessoas ditas funcionais ou saudáveis ou sei lá como se chama hoje em dia, pode ser quanto for, não importa, qualquer valor ajuda, qualquer ajuda é válida, estou aqui pedindo a sua ajuda para completar a mensalidade da academia porque eu quero comer a professora de pilates da minha namorada, não, brincadeira, não quero, não, aquela não sabe nem chupar uma pica direito, estou aqui pedindo a sua ajuda para comprar uma faca dessas que os soldados de elite usam nos filmes, tipo a faca do Rambo em Rambo II, tipo a faca do tenente-coronel John Matrix em Comando para matar, uma faca daquelas táticas, acho que é assim que eles chamam aquelas facas especiais, uma faca tática, com aquela lâmina fodástica e serrilhadinha num dos lados, o tipo de faca que você desatarraxa a tampa do cabo e tira uma bússola lá de dentro e se orienta assim no meio da selva ou do deserto ou das cavernas quando os inimigos estão bem próximos, porque os inimigos estão vindo e é melhor você ficar esperto, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui pedindo a sua ajuda, e que Deus te dê em dobro e te abençoe e abençoe toda a porra da sua família, amém, porque era uma vez, escuta só isso que vou contar para vocês, já estou terminando, senhor, pare de gritar, por favor, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só quero uns trocados e contar essa história para vocês, era uma vez, e nem foi uma vez tão boa assim, foi uma vez horrível, na verdade, uma vez hedionda, fedorenta, bizarra, uma vez malcheirosa, uma vez com bodum de mertiolate e merda, e essa vez foi uma vez tão ruim que acabou com todas as vezes, e a gente se estrepou, todo mundo se estrepou, eles me prenderam e me internaram, foi uma internação do tipo compulsória, por isso me dê uma ajudinha, me dê uma ajudinha para que eu possa procurar uma mulher, uma profissional da área que não sinta um nojo excessivo da minha pessoa, para que, mediante um acerto financeiro prévio, eu possa comer a buceta dessa mulher que não sinta um nojo excessivo da minha pessoa, pois, no momento, não estou ingerindo meus medicamentos e, por conseguinte, ostento esta irrefreável ereção e não passo por nenhum episódio de caganeira, me dê uns trocadinhos ou eu juro que pegarei essa faca que finquei aqui no chão, e vejam, percebam, não se trata de uma faca bacana, não se trata de uma faca tática, é uma faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, me dê uma ajuda ou eu juro que pegarei a porcaria dessa faca e enfiarei aqui no meu bucho, é, bem aqui, e não se esqueça de girar, seu louco desgraçado dos infernos que ouve vozes dentro da sua cabeça, eu sou uma voz dentro da sua cabeça, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só estou aqui falando dentro da sua cabeça, estou aqui implorando, não se esqueça de girar a porcaria da faca, e que Deus te abençoe e te dê em dobro, foda-se, obrigado pela festa, pessoal, o bolo estava mesmo uma delícia e eu realmente preciso comer a buceta de uma mulher profissional da área que não sinta um nojo excessivo da minha pessoa mediante um acerto financeiro prévio, então, por favor, que tal uns trocadinhos?

 

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[Imagem: Wojciech Fangor, nº 48 (1963, óleo sobre tela).]

“Discurso”

Acho que agora eu entendi tudo.

Se o livro é “urgente”, ele também é “importante”, ou seja, ele aborda “questões” que, também elas, são “importantes”. Em geral, quando o livro é “urgente”, ele é “urgente” na maneira como aborda (ou “ataca”) (ou “trata”) “questões” assim “importantes”.

Mas as expressões são intercambiáveis: é perfeitamente possível que um livro seja “importante” por atacar (ou “abordar”) “questões” assim “urgentes”, ou por abordar (ou “atacar”) essa ou aquela “questão” com toda a “urgência” que ela (“questão”) “exige”.

Não raro, a “urgência” com que uma “questão” assim “importante” é tratada (ou “abordada”) (ou “atacada”) também diz respeito à “crueza” desse mesmo tratamento (ou dessa mesma “abordagem”) (melhor não usar “ataque” aqui), sendo a “crueza” diretamente proporcional à “coragem” do(a) autor(a) na forma como aborda a supramencionada (e “importante”) “questão”.

Voltarei à “crueza” daqui a pouco. Agora, quero falar um pouco dos(as) autores(as).

Os(as) autores(as) são muito “corajosos”, “ousados” e “inventivos”. Eles(as) têm “vozes” assim muito “poderosas” e “potentes”, e suas “vozes” são sempre “únicas” (mas também “generosas”) e “atravessadas” pelas “tensões” do “real”.

Ah, sim: o “real”.

O “real” é “fragmentado” ou até “estilhaçado” (há muitas “tensões”), de tal forma que as “vozes” dos(as) autores(as) também são “fragmentadas” ou “estilhaçadas”, pois os(as) autores(as) “trafegam” pelo “real”. Não obstante seu “caráter fragmentário” ou seu “estilhaçamento”, o “real” é “trafegável”. Ou talvez “trafegáveis” sejam as “veredas da ficção” que “apontam” para o “real”. Mas, nesse “jogo” entre o “real” e a “ficção”, “o real sempre ganha fácil”, ainda que a ficção seja “importante” por (ou para) nos “ressituar” no “mundo” (que, por sua vez, é “real”, mas pode ser “ilusório”; depende).

E há o “corpo”, claro.

Há sempre o “corpo”, e ele “pulsa” com bastante “intensidade” nas páginas da “obra” (onde mais?), dada a “urgência” desta (“obra”) e das “questões” que ela (“obra”) “atravessa”. Sim, não nos esqueçamos de que a “obra” não só aborda, ataca, trata ou “endereça” (tinha me esquecido dessa) as tais “questões”, não, a “obra” também “atravessa” as tais “questões”. Melhor ainda: as “questões” é que são “atravessadas” pela “obra” ou (intercambialidade) a “obra” é que é “atravessada” pelas questões.

Tudo é “poroso”. A “porosidade” também é muito “importante”. E tudo é “líquido”, a começar pela “modernidade” e incluindo as “relações”. Que também são “fluídas”, a exemplo dos “gêneros”.

Mas eu falava da “crueza”.

Claro, por mais “incisiva” que seja, a “crueza” nem sempre é “imprescindível”, pois há também abordagens “sutis” (mas igualmente “poderosas” e/ou “potentes”) de “temas delicados”. A “sutileza” pode ser uma forma “madura” de “enfrentar” aquelas “questões” que, como todos sabemos, dada a sua “urgência”, são muito “importantes”.

Às vezes, há um “acerto de contas” com “questões” que não são apenas “importantes”, mas também “estruturais”.

E, sendo “estruturais”, as “questões” são ainda mais “urgentes”, e elas são tão “urgentes” por “sublinhar” (ou “devassar”) “tensões” que, por sua vez, são ou se tornaram “insustentáveis”, “ressignificando” (por exemplo) as “relações” dos nossos “corpos” com o “outro”, com o “mundo” e/ou com a “história” neles “inscrita” (ou “marcada”), pois o “corpo” é sempre “político”.

Eu ainda não falei das “fraturas”.

Para começo de conversa, “fraturas” são sempre “dolorosas” e “traumáticas”. E, sejam tais “fraturas” identificadas como “sociais” ou “existenciais” (e uma coisa está sempre ligada à outra), importa a forma “potente” com que elas (“fraturas”) são “expostas”, pois as melhores “fraturas”, como todos sabemos, são as “fraturas expostas”.

E haja “coragem” para lidar — de forma “crua” ou “sutil”, mas sempre “poderosa” e “potente” — com tais “feridas”, “fraturas”, “traumas”, “atravessamentos”, “tensões” e “urgências”, abordando (ou “endereçando”) “questões” tão “importantes”.

Sim, haja “coragem”.

Murakami entre dois mundos

Resenha publicada no Estadão.

O FIM DO MUNDO E O IMPIEDOSO PAÍS DAS MARAVILHAS, UM DOS PRIMEIROS E MELHORES ROMANCES DO AUTOR JAPONÊS, É LANÇADO NO BRASIL.

Nos capítulos ímpares, uma ficção científica cyberpunk envolvendo implantes cerebrais, guerra informacional e um autêntico submundo; nos capítulos pares, uma narrativa fantástica situada em uma cidade utópica povoada por unicórnios e pessoas desprovidas de sombras e desejos. Lançado originalmente em 1985, O Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas (Alfaguara, tradução de Jefferson José Teixeira) é o quarto romance de Haruki Murakami e está estruturado da forma descrita acima: duas narrativas muito distintas que, no entanto, convergem para constituir uma só história e, de certo modo, uma só pessoa.

Como diria Ivan Lessa, a trama do livro é simples, mas o enredo é complicado. O narrador dos capítulos ímpares é um “calculador”, alguém treinado para processar informações, às quais não tem acesso direto: grosso modo, em duas etapas (“lavagem cerebral” e “shuffling”), o sujeito armazena as informações codificadas, de tal forma que estas não podem ser arrancadas dele. No mundo dessa parte da história, há duas grandes corporações em guerra: a System (empregadora dos “calculadores”) trabalha para proteger as informações dos clientes, ao passo que a “máfia dos dados” Factory emprega calculadores que perderam suas licenças (os “simbolistas”) e tenta roubar as informações.

Logo no começo, o narrador é chamado ao laboratório de um cientista para proteger os dados de uma pesquisa que pode decidir a guerra informacional em curso. Para roubar esses dados, os “simbolistas” se aliaram a criaturas que vivem nos subterrâneos de Tóquio, os “tenebrosos”. Não demora muito para o protagonista entender que não é um mero peão na brincadeira. Pelo contrário, seu cérebro e alguns implantes que fizeram nele são a chave de tudo.

Nos capítulos pares, somos levados a uma cidade murada, da qual os habitantes não podem (nem querem) sair. Ao ingressar nela, as pessoas são separadas de suas sombras, que morrem não muito depois. A morte da sombra implica a perda de quaisquer memórias, sentimentos e anseios. Os indivíduos levam, assim, uma existência atemporal, realizando suas pequenas tarefas e entregues a um ciclo repetitivo. Recém-chegado, com sua sombra definhando sob a vigilância de um guardião kafkiano (lembra o vigia da lei naquela parábola n’O Processo), o narrador é encarregado de “ler” os velhos sonhos dos moradores. O leitor deve atentar ao papel dos crânios dos unicórnios em ambas as histórias.

Escrito logo após o formidável Caçando carneiros, O Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas pode ser descrito como um esforço para conciliar inspirações muito diversas e, a partir delas, conceber um universo particularíssimo. De fato, Murakami pega elementos que não fariam feio em um romance de William Gibson (guerra tecnológica e informacional, implantes cerebrais, mundo virtual) e os atira em uma fantasia que remete a Philip K. Dick (realidades e identidades colidindo; o que é real e o que é ilusão?; unicórnios). Emerge algo único dessa mistura. Logo, o esforço é muito bem-sucedido.

Os poucos senões dizem respeito às platitudes e breguices proferidas em certas passagens (“Abra mais seu coração. Você não é um prisioneiro! É um pássaro que voa no céu em busca de sonhos!”) e que alimentam o pior lado do sentimentalismo de Murakami. O melhor está na capacidade do autor de criar mundos absurdos e torná-los plausíveis por meio de recursos e soluções que parecem simples, mas são extremamente sofisticados. Em seus melhores momentos, como na descida do protagonista ao mundo ínfero — passagem que encerra uma catábase e uma anábase —, o livro abandona o tom pedestre e abraça a lógica dos pesadelos. Mesmo a longa explicação do cientista não consegue nos afastar da escuridão “desagradável e opaca” que parece “viver, respirar e se movimentar”. É a escuridão daqueles mundos fantásticos, mas também a escuridão do nosso mundo. Lá como aqui, não há muito que se possa fazer para escapar dela. E, assim, temos aqueles recursos e soluções de simplicidade enganosa, que elevam o romance e o colocam entre os melhores de Murakami: a atenção aos mínimos gestos, a descrição espirituosa das menores ações cotidianas e a reiterada alusão à incompletude fundamental das pessoas e seus mundos, interiores ou não.

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5xMURAKAMI
Meus prediletos do autor

CRÔNICA DO PÁSSARO DE CORDA
A mulher do protagonista é sequestrada pelo próprio irmão. Mas, para resgatá-la, o nosso anti-herói precisa encontrar o caminho por um labirinto não só metafísico como propriamente histórico: a violência atual presentifica e atualiza violências pretéritas. Lewis Carroll sorri lá no inferno.

KAFKA À BEIRA-MAR
Talvez o mais misterioso e fantasmagórico dos romances de Murakami, é um pesadelo edipiano que não faz muitas concessões. Há, para variar, um outro mundo à espera (ou à espreita) e uma cura possível. Mas, aqui, a passagem custa um pouco mais caro do que o habitual.

CAÇANDO CARNEIROS
A certa altura, surge a questão: estamos nos arredores de Hokkaido ou dentro da mente do protagonista? Ou, pior, no Hades ou coisa que o valha? O melhor de tudo é que Murakami nem se preocupa em responder. Primeiro grande romance dele.

NORWEGIAN WOOD
Menos “surreal” do que a maioria dos livros de Murakami, ainda que vozes do “outro mundo” (ou, melhor dizendo, do passado) se façam sempre presentes, metaforicamente falando. É um grande livro sobre as perdas que sofremos e como lidamos (mal) com elas. E aborda o suicídio de forma dolorosamente honesta.

O ASSASSINATO DO COMENDADOR
Murakami revisita inúmeros motivos já explorados em romances anteriores (separações, pessoas que desaparecem, poços, outro mundo), o que explica a má vontade com que o livro foi recebido por alguns. Para mim, foi como devorar um dos meus pratos favoritos: sei exatamente o que esperar, mas saboreio com enorme alegria (e não há nada de errado nisso).

O bruto nos deixa aflitos

ALGUNS PARÁGRAFOS SOBRE OS CONTOS DE DALTON TREVISAN.
Artigo publicado no
Estadão. O escritor completa 99 anos hoje.

Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado “Feliz Natal”. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli. Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.

Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”. As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.

Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares. Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.

Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.

Já o narrador do conto-título de O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”. Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em “Feliz Natal”. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.

Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferirem, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas. Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.

 

[Ilustração: George Grosz (detalhe).]

Sobre “Os grandes carnívoros”

Resenha publicada no Estadão.

MORTE E VIDA DOS ANIMAIS

Em seu novo romance, Adriana Lisboa aborda diversas formas de violência.

Adelaide, a protagonista de Os grandes carnívoros (Alfaguara), esteve na cadeia. Foi presa em um país estrangeiro, nos Estados Unidos (ou na América, a “Grande Sinédoque”), por incendiar um laboratório de pesquisas que utilizava animais como cobaias. Ela também sente culpa: para não ser julgada como “terrorista” e passar o resto da vida na cadeia, dedurou os demais membros do grupo de ativistas que integrava, isto é, colaborou com as autoridades. Cumprida a pena de três anos, Adelaide retorna ao Brasil e aluga uma casa na serra da Mantiqueira, nas proximidades de um vilarejo. É nesse ponto que se inicia o oitavo romance da carioca Adriana Lisboa: no ponto do retorno.

Trata-se de um ponto familiar à literatura brasileira contemporânea. Perdi a conta de quantos livros nacionais recentes (alguns bons, vários assim-assim e inúmeros ruins) partem daí ou de premissas similares. Mas há distinções a serem traçadas aqui, elementos que impedem Os grandes carnívoros de cair na vala comum. O primeiro deles é o fato de que Adelaide retorna ao Brasil após uma longa e acidentada estadia no exterior, mas não para casa. Voltar para casa seria voltar para a cidade do Rio de Janeiro, onde estão seus únicos parentes vivos, o pai doente e a tia, e aí teríamos aquela historieta convencional repleta de acertos de contas e escarradas sentimentalistas. Felizmente, não é o caso aqui, pois Adelaide opta por um segundo exílio. E, ao final do romance, “recrutável” como é, ela parece optar por um terceiro ou por uma repetição caseira do exílio original. Naquela historieta banal, teríamos a personagem lidando com (encha a boca de farofa) os fantasmas familiares. Lisboa é incapaz de conceber banalidades, e Adelaide tem coisas mais imediatas e assustadoras com as quais lidar. Uma delas é o próprio corpo; outra é o corpo do outro (esse animal).

Outro elemento que eleva o romance é a prosa de Lisboa. Melhor ficcionista de sua geração, autora de livros excelentes como Hanói, Azul corvo e Rakushisha, ela foi agraciada com o Prêmio José Saramago por Sinfonia em branco. Claro que, a julgar pela lista de premiados, convém dizer que é Lisboa quem conferiu prestígio a esse prêmio, e não o contrário. Veja, por exemplo, como ela descreve a viagem de Adelaide em “um longo voo noturno que, segundo o mapa que acompanhava na escuridão da cabine, veio despencando Américas abaixo”, fantasiando que “talvez bastasse ao piloto largar o aviãozinho em seu ponto de partida setentrional e, pela força da gravidade, ele acabaria em seu porto de chegada mais ao sul”. Ocorre que, no “coração de Adelaide”, esse “movimento parecia ser, mais que do norte ao sul, do fundo à superfície”. Ela espera deixar “a escuridão para trás”. Mas, claro, aqui é o Brasil e isso não é possível. E o romance se desenrola para mostrar a Adelaide uma outra modalidade de escuridão.

Chegamos, assim, a um dos temas que norteiam Os grandes carnívoros: a violência. Há diversas formas de violência abordadas e retratadas no livro. Há, claro, a violência política dos ativistas, violência contra o “patrimônio”, sabotagens e destruições de bens e instalações, em que ninguém morre ou sai ferido — exceto (o que não deixa de ser irônico) os próprios ativistas.

Vide Sofia, uma das líderes do grupo e pessoa importantíssima para Adelaide. Presa, Sofia é a única que não abre o bico para as autoridades. Mas, se é verdade “que o mundo se desmantela por um nada”, também é verdade que pessoas assim, quando confrontadas com esse mundo, desmantelam-se em igual medida. Fiel àquilo em que acredita e pelo que luta, a “terrorista” Sofia comete suicídio na cadeia. No entanto, e isso é curioso, seu gesto não carrega originalidade nenhuma: o método (uma sacola plástica na cabeça) e o bilhete deixado espelham o método e o bilhete deixado por outro ativista. Quando até mesmo o suicídio enquanto political statement perde a sua “aura”, é sinal de que estamos mesmo ferrados.

Lisboa também lida com as violências que testemunhamos ou, nos piores casos, sofremos cotidianamente. Nas páginas 64 e 65, há um relatório de brutalidades ocorridas apenas no ano de 2011. E, no caso específico dos personagens que enfoca, o romance caminha para a ocorrência de um crime hediondo. Quantas mortes (de si mesma e de outrem) Adelaide será capaz de suportar? Sendo formidável como é, provável que muitas. E, em vista do que sofreu, compreendendo melhor a “faculdade” da violência, talvez resulte em uma ativista mais efetiva do que a malfadada Sofia.

Em resumo, temos a violência dos humanos contra os outros animais, que leva à “violência” dos ativistas, à qual o Estado reage pronta e violentamente, e a violência dos animais humanos contra os animais humanos em suas incontáveis variedades cotidianas, seja em Mariupol, seja na Mantiqueira. À sua maneira, Os grandes carnívoros é um belo livro apocalíptico: “Morrer dos vivos. Viver dos mortos. O começo é o tempo todo e também o fim”. Mas, hoje em dia, toda e qualquer narrativa contemporânea digna de nota, pelo sim, pelo não, exala um fortíssimo bodum apocalíptico.

Noites japonesas

“Noite e névoa no Japão” (1960), de Nagisa Oshima, começa e termina com discursos obtusos, de um professor meio vacilão e de um burocrata stalinista, sendo este, por certo, a criatura mais desprezível em todo o filme. O longa é coalhado de planos longos (o primeiro dura uns dez minutos), e não raro os flashbacks são introduzidos mediante truques simples, mas muito eficazes, de iluminação e movimentação de câmera. Os personagens relembram momentos críticos da história japonesa no pós-guerra, como as manifestações contrárias ao tratado militar (“Anpo”) firmado entre os EUA e o Japão em 1960.

No “presente”, a festa de casamento entre dois membros de gerações distintas, mas ainda próximas, de militantes. Claro que chamar aquilo de “festa” é um exagero. Noivo e noiva parecem prestes a botar um ovo, e não no estilo depois consagrado pelo mesmo Oshima em “O império dos sentidos”. Egressos da noite e da névoa, companheiros e ex-companheiros de militância irrompem na celebração feito zumbis, sedentos por um acerto de contas com os outros e (nos melhores casos) consigo mesmos. O hegeliano está de cara cheia. O foragido só pensa em exumar alguns corpos. O stalinista sai pela tangente (enquanto há perigo). Todos se lembram de tudo nos mínimos detalhes — (auto)punição maior não há, certo?

Há um forte teor teatral na coisa, que parece ressaltar e ridicularizar a teatralidade muitas vezes inerente à própria ação política, sobretudo em seus excessos e extremos: um “espião” (um ladrãozinho, na verdade) é mantido prisioneiro, todos discordam de todos sobre quase tudo, a maioria é obviamente usada como massa de manobra, alguns estão mais interessados em trepar (mas nem sempre) (em todo caso, há salvação para esses), a polícia prende e arrebenta, e o que sobra no final? O stalinista, aquele. Discursando noite adentro.

Curioso que o estúdio tenha retirado o filme de cartaz por causa do assassinato do político socialista Inejiro Asanuma por um ultranacionalista em 12 de outubro de 1960. Acho curioso porque não me parece uma decisão mercadológica feliz, mas, beleza, eu sou meio cínico. O assassino (cujo nome prefiro não mencionar) tinha dezessete anos de idade, o que inspirou Kenzaburo Oe a escrever a obra-prima “Seventeen” (v. “Catorze contos de Kenzaburo Oe”, trad.: Leiko Gotoda, Cia. das Letras) e sua sequência, “Seiji Shonen Shisu” (tirada de circulação a pedido do autor, que sofreu ameaças de extremistas durante toda a vida). A arma do crime foi uma wakizashi (espada samurai de lâmina curta), e o assassinato foi registrado pelo fotógrafo Yasushi Nagao (o que lhe rendeu um Pulitzer).

Agora me ocorreu que o ex-primeiro ministro Shinzo Abe foi assassinado em 2022 por um maluco cuja birra era com a Igreja da Unificação (leia “Mao II”, de Don De Lillo). É possível dizer que, no Japão, a prática do assassinato político é ecumênica.

Voltando a Oshima, onze anos depois ele ofereceu um recorte ainda mais doentio das tensões inerentes à sociedade japonesa: “Cerimônia solene”. Acompanhando a história de uma família desde o final da Segunda Guerra até a década de 1970, e usando como dispositivo narrativo as festas, reuniões e cerimônias do clã (incluindo um casamento sem noiva), ele parece afirmar que não há salvação nem mesmo no incesto ou — o que é ainda pior — no beisebol.

“Noite e névoa no Japão” e “Cerimônia solene” estão em um box lançado pela Versátil tempos atrás.

Carnívoros

Artigo publicado n’O Popular em 30.04.2024.

“Os grandes carnívoros” (ed. Alfaguara) é o novo romance da carioca Adriana Lisboa. Vencedora do Prêmio José Saramago, Lisboa é uma das melhores escritoras brasileiras contemporâneas, autora de uma obra impressionantemente regular e muito, mas muito acima da média. Aliás, não me canso de dizer que, ao receber a supracitada honraria, foi ela quem conferiu prestígio ao prêmio, e não o contrário. Em geral, é assim com os(as) melhores escritores(as).

Alguns dos personagens de “Os grandes carnívoros” são ativistas ambientais, gente que (por exemplo) sabota e incendeia laboratórios que usam animais como cobaias. Na medida em que sou um carnívoro, qualquer coisa que eu diga sobre essas pessoas soaria (na melhor das hipóteses) condescendente ou (na pior) abertamente babaca. Assim, falo do livro, e de como Lisboa consegue desenvolver a narrativa pontuando tais e tais coisas sem, contudo, contaminá-la. É um bom romance, não a porcaria de um panfleto.

Aliás, tanto melhor que, em seu desenrolar, o livro discorra sobre (e descreva/“mostre”) a violência dos humanos contra os humanos, e não “apenas” a violência humana contra os outros animais. O pior ato de violência descrito em suas páginas envolve duas pessoas, e não René Descartes e um cachorro (leia o livro se quiser entender a referência).

A protagonista se chama Adelaide. Ela é uma ativista que, por incendiar um laboratório nos Estados Unidos, cumpriu pena de três anos por lá. Libertada, ela volta ao Brasil e se isola em uma casa na Mantiqueira. A ideia é espairecer e colocar a cabeça no lugar. Mas, claro, a cabeça é teimosa, as pessoas são cretinas, as memórias são dolorosas e a desgraça está sempre à espreita.

Adelaide começa a se relacionar com o senhorio, um sujeito aparentemente legal, embora casado. A Sétima Sinfonia de Beethoven (não seria melhor a Sexta?) ribomba nas páginas. Os corpos se entendem. A ingenuidade da protagonista estridula no campo. E a perversidade humana não demora a se manifestar. De um humano específico, no caso. Não há generalizações fáceis e/ou programáticas no romance.

Em se tratando de Descartes, um efeito colateral da leitura foi revisitar com enorme prazer trechos das “Meditações sobre Filosofia Primeira” (na tradução de Fausto Castilho, ed. Unicamp) e de outros livros dele. É que os tais ativistas “cancelam” Descartes e se apegam a picaretagens como as de Derrida. Não que isso seja importante, claro. Para incendiar um laboratório, as pessoas só precisam de raiva e fósforos, não de uma “fundamentação teórica” consequente (embora julguem tê-la e, em alguns casos, tenham mesmo). Logo, que diferença faz os picaretas que elas papagueiam? E esses momentos de bricolagem pseudofilosófica não atrapalham o romance. Pelo contrário, eles são imprescindíveis para a ótima caracterização dos personagens.

No cenário depauperado da literatura brasileira atual, tomado por panfletarismos de todas as cores e tamanhos, é um alívio ter em mãos um livro como “Os grandes carnívoros”. Adriana Lisboa mostra que é possível conceber uma narrativa literariamente ímpar e politicamente alerta sem apelações e proselitismos toscos. Em outras palavras, ela trata o leitor como um animal inteligente, não como um tonto esperando ser catequizado.

Memória e pertencimento em “O outono dos ipês-rosas”

Resenha publicada na edição de abril de 2024 da revista Pernambuco.

O termo alemão Bildung é imprescindível para compreender O outono dos ipês-rosas (editora Cepe), novo romance de Luis S. Krausz. Em uma nota de rodapé na página 409, o narrador nos diz que a “identificação dos judeus de língua alemã com a Europa de língua alemã baseava-se no pressuposto de que a pessoa cria sua própria cultura, e de que a cultura cria a própria pessoa”. Assim, a “ideia oitocentista de Bildung, de uma formação humana abrangente, individual e autônoma, pressupõe a autodeterminação (…). A Bildung é um caminho que se baseia na liberdade e que deve conduzir à liberdade”. O protagonista do livro é um judeu paulistano chamado Martin Stieglitz, “cidadão brasileiro, filho de imigrantes”, morador de uma casa no Jardim Europa (herança dos pais) e alguém que “aprecia muito a memória e detesta o esquecimento como a morte”.

Stieglitz é, também, um Spaziegänger, um “caminhante”, pois aprecia flanar pela cidade e observar o que permanece (pouco) e o que foi alterado (muito). Educado na Suíça, frequenta concertos na Sala São Paulo, adora Vivaldi e despreza quase todos os compositores posteriores a Mahler. Veste-se bem, mantém um escritório na Faria Lima (no mesmo prédio do consulado alemão), onde cuida de seus investimentos e procura preservar o que herdou. Stieglitz sustenta uma ligação fortíssima com certa Europa que “existiu, segundo dizem, antes que a Europa tivesse deixado de ser a Europa”: a Europa dos Habsburgo.

O narrador nos informa que ele “herdou de seus antepassados um sonho: pertencer ao mundo alemão”. Tal pertencimento está ligado à Bildung, pois, na época do Império Habsburgo, “parecia que ‘pertencer ao mundo alemão’ era algo que estava ao alcance de quem quisesse fazê-lo já que, segundo se acreditava, ser austríaco não era entendido como uma condição de nascimento, de origem biológica”, mas cultural: conhecer “a língua alemã e (…) a literatura alemã significava ‘pertencer ao mundo alemão’”. O Império Habsburgo ruiu. Com a ascensão do nazismo, milhões de judeus foram exterminados e outros tantos se exilaram — uma diáspora dentro da diáspora.

Esses temas vêm sendo abordados por Krausz em toda a sua carreira como ficcionista. Mas, enquanto os excelentes Desterro, Deserto, Bazar Paraná, Outro lugar e Opulência abraçam uma forma narrativa que alguns chamam (hediondamente) de “autoficção”, mas que talvez fosse melhor chamar de “heteroficção”, pois centrada na miríade de experiências alheias marcadas pelo exílio (o narrador quase sempre olha para fora, não para dentro), O outono dos ipês-rosas coloca mais dois filtros entre as vivências abordadas e o leitor: o narrador em terceira pessoa e Stieglitz, que, obviamente, não é Krausz (o qual, aliás, é citado em uma nota na página 78, incrementando o distanciamento).

O romance é dividido em duas partes: “A cidade invisível” e “A cidade visível”. Na primeira, acompanhamos as deambulações de Stieglitz sobretudo pelo Jardim Europa. Na segunda, Stieglitz vai a um jantar no apartamento de uma riquíssima família de conhecidos, os Fuchs; lá, reencontra pessoas com quem conviveu e, a certa altura (diante de um samovar “que brilha como um espelho”), relembra outro evento social — um almoço ocorrido anos antes no sítio (em São Roque) de outra família, os Stern. Assim, seja nesses encontros, seja em seus passeios, a maior parte do que acontece na narrativa passa pelas lembranças de Stieglitz, são recordações ligadas às pessoas que conhece ou conheceu e às circunstâncias em que elas (ou seus antepassados) aportaram no Brasil.

No decorrer do romance, Krausz aborda várias diásporas, muitas delas interligadas, como, por exemplo, dos judeus da península ibérica que, expulsos em fins do século XV, foram parar na Polônia, de onde seriam expulsos no século XIX pelo czar Alexandre III. E, mesmo em se tratando de gentios, o trânsito (forçado ou não) de indivíduos é reafirmado a todo instante (vide a sueca naturalizada brasileira Maud Tork-Fisk), bem como os conflitos que surgem entre pessoas de procedências distintas (como no caso da filha do cônsul britânico e o “oriental”) ou mesmo entre aqueles que, advindos de ambientes culturais relativamente comuns, têm outros motivos para se estranhar.

Há, por exemplo, o contraste entre as castas financeiras de Stieglitz e dos Fuchs. A fortuna do primeiro é relativamente grande, mas não obscena, ao passo que os Fuchs vivem em um apartamento que vale dezenas de milhões de reais (mas bebem um whisky medíocre, Pinwinnie, que só é vendido a peso de ouro para incautos e otários). E, em se tratando do convidado e dos anfitriões, há também um contraste cultural, sublinhado na discussão literária entre Stieglitz e Martin Fuchs. “Um romance pode mostrar ao leitor outros mundos”, diz ele ao ricaço, “realidades diferentes das que ele conhece, que são capazes de colocar o mundo tal e qual a pessoa o vê em nova perspectiva. Nós não somos capazes de enxergar o mundo como ele é. Fazemos isso de acordo com o que somos. Ao retratar um mundo, o escritor mostra, também, a si mesmo: uma pessoa diferente do leitor. E, com isso, o leitor pode se perguntar se as coisas realmente têm que ser como são, se são o que precisam ser e se são o que parecem ser.”

Stieglitz é, portanto (e de diversas formas), membro de uma espécie em extinção. Seu apego à palavra, à música e à memória traz em si a consciência de que nele também sobrevivem “pedacinhos da sua terra” ancestral, aquela Europa que desapareceu. Mas também há o pressentimento de que muitas dessas coisas morrerão com ele, de uma forma ou de outra. Não por acaso, o outono é a estação favorita de Stieglitz: “No outono paira no ar a sensação de que algo está sumindo”. Mas, enquanto essas coisas não desaparecem, o melhor que podemos fazer é frequentá-las e fixá-las de algum modo. A literatura de Luis. S. Krausz parece empenhada em um esforço dessa natureza.