Noites japonesas

“Noite e névoa no Japão” (1960), de Nagisa Oshima, começa e termina com discursos obtusos, de um professor meio vacilão e de um burocrata stalinista, sendo este, por certo, a criatura mais desprezível em todo o filme. O longa é coalhado de planos longos (o primeiro dura uns dez minutos), e não raro os flashbacks são introduzidos mediante truques simples, mas muito eficazes, de iluminação e movimentação de câmera. Os personagens relembram momentos críticos da história japonesa no pós-guerra, como as manifestações contrárias ao tratado militar (“Anpo”) firmado entre os EUA e o Japão em 1960.

No “presente”, a festa de casamento entre dois membros de gerações distintas, mas ainda próximas, de militantes. Claro que chamar aquilo de “festa” é um exagero. Noivo e noiva parecem prestes a botar um ovo, e não no estilo depois consagrado pelo mesmo Oshima em “O império dos sentidos”. Egressos da noite e da névoa, companheiros e ex-companheiros de militância irrompem na celebração feito zumbis, sedentos por um acerto de contas com os outros e (nos melhores casos) consigo mesmos. O hegeliano está de cara cheia. O foragido só pensa em exumar alguns corpos. O stalinista sai pela tangente (enquanto há perigo). Todos se lembram de tudo nos mínimos detalhes — (auto)punição maior não há, certo?

Há um forte teor teatral na coisa, que parece ressaltar e ridicularizar a teatralidade muitas vezes inerente à própria ação política, sobretudo em seus excessos e extremos: um “espião” (um ladrãozinho, na verdade) é mantido prisioneiro, todos discordam de todos sobre quase tudo, a maioria é obviamente usada como massa de manobra, alguns estão mais interessados em trepar (mas nem sempre) (em todo caso, há salvação para esses), a polícia prende e arrebenta, e o que sobra no final? O stalinista, aquele. Discursando noite adentro.

Curioso que o estúdio tenha retirado o filme de cartaz por causa do assassinato do político socialista Inejiro Asanuma por um ultranacionalista em 12 de outubro de 1960. Acho curioso porque não me parece uma decisão mercadológica feliz, mas, beleza, eu sou meio cínico. O assassino (cujo nome prefiro não mencionar) tinha dezessete anos de idade, o que inspirou Kenzaburo Oe a escrever a obra-prima “Seventeen” (v. “Catorze contos de Kenzaburo Oe”, trad.: Leiko Gotoda, Cia. das Letras) e sua sequência, “Seiji Shonen Shisu” (tirada de circulação a pedido do autor, que sofreu ameaças de extremistas durante toda a vida). A arma do crime foi uma wakizashi (espada samurai de lâmina curta), e o assassinato foi registrado pelo fotógrafo Yasushi Nagao (o que lhe rendeu um Pulitzer).

Agora me ocorreu que o ex-primeiro ministro Shinzo Abe foi assassinado em 2022 por um maluco cuja birra era com a Igreja da Unificação (leia “Mao II”, de Don De Lillo). É possível dizer que, no Japão, a prática do assassinato político é ecumênica.

Voltando a Oshima, onze anos depois ele ofereceu um recorte ainda mais doentio das tensões inerentes à sociedade japonesa: “Cerimônia solene”. Acompanhando a história de uma família desde o final da Segunda Guerra até a década de 1970, e usando como dispositivo narrativo as festas, reuniões e cerimônias do clã (incluindo um casamento sem noiva), ele parece afirmar que não há salvação nem mesmo no incesto ou — o que é ainda pior — no beisebol.

“Noite e névoa no Japão” e “Cerimônia solene” estão em um box lançado pela Versátil tempos atrás.