No deserto em expansão

Um trecho de VENTO DE QUEIMADA, meu novo romance.
Lançamento em maio, pela Record. Mais informações
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No hotel, toma um banho e veste a mesma camiseta, outro jeans, outra jaqueta, depois coloca as roupas usadas em uma sacola plástica que resgata do fundo da mochila. Precisa se livrar delas. Precisa se livrar de tudo. A coisa tão rápida, tão atabalhoada. Um serviço todo errado. E agora outro serviço todo errado. Rápido, atabalhoado. Sim, aquilo trouxe paz. Pensar em Gordon. A primeira vez, todas as vezes subsequentes. Mas, e agora? O que poderia trazer paz agora? Neste exato momento? Não pensar. Não pensar demais. Faça o serviço, disse Gordon. Receba o pagamento. Vá pra casa.
(Deixe essa merda pra trás.)
Pede uma pizza, come duas fatias, espera. Come uma terceira. Onze e cinco da noite quando ligam da recepção.
Alô?… Sim, deixa subir.
Ela se levanta, entreabre a porta, depois volta a se sentar na cama. Olha para a pistola sobre o criado-mudo, ao alcance da mão direita. Visível. É bom que esteja visível. Evita mal-entendidos. Ou trata de acelerá-los. Seja como for, é o melhor que pode fazer na situação atual.
Duas leves batidas na porta.
Entra.
Dois homens. Parecem os mesmos que estavam na porteira da chácara horas antes, mas pode estar enganada. Peões. São todos mais ou menos iguais. São todos peões. Ela também. De certa forma. E o pai. Peões. Como aquele que ajudou a matar no Abaporu. Não. Quem matou foi a Elizete, eu só castrei. Calibre 22. Mas parecem os mesmos, sim. Estômago, bagos, merda. Com roupas limpas agora, botinas engraxadas, perfumados. Um deles usa chapéu de vaqueiro, não um chapéu qualquer, parece caro, um artigo de luxo, e segura uma sacola preta. O outro, barbudo e gordo, entra no banheiro e começa a mijar.
Ou!, diz o primeiro, tirando o chapéu. Cê podia fechar a porta pelo menos, disgraçado.
Eu, hein, diz Isabel, impassível. Não esperava uma coisa dessas do Bud Spencer.
Hein?
Aôôôô, é a resposta que vem do banheiro, alguém sinceramente maravilhado com a potência do próprio mijo.
Desculpa ele aí, moça.
Sem problema.
Tem gente que não tem educação.
Podia ser pior.
Como assim?
Pelo menos ele não foi cagar.
O homem solta uma risadinha, concordando, e dá dois passos à frente. Olha para a pequena televisão ligada, depois aponta para a pistola sobre o criado-mudo, ao alcance da mão direita dela. Tinha necessidade disso, não.
O som da descarga.
Tinha necessidade nenhuma disso, ele insiste, voltando os olhos para a televisão.
Isabel não diz nada.
Cê viu A Super Máquina mais cedo?
Silêncio.
Acho que ia estrear hoje. Queria ver aquilo.
O barbudo sai do banheiro, subindo a braguilha. Av’Maria, tava apertado demais da conta, sô.
Falei pra ir aquela hora, mas cê é teimoso.
Eu não tava com vontade aquela hora.
Mas é claro que ia ficar depois por causa das cerveja. Melhor mijar por precaução.
Mijar por precaução. Essa é boa.
O outro suspira, recolocando o chapéu na cabeça, e estende a sacola preta para Isabel. Tá tudo aí dentro, viu? Endereço, chave do carro, foto, ferramenta. Tudim.
A gente vai levar o Corcel agora, diz o barbudo, coçando o saco.
Ferramenta?
É essa aí?, aponta para a chave que está sobre o criado-mudo, ao lado da pistola.
Isabel concorda com a cabeça.
O barbudo pega a chave e entrega para o parceiro, que a coloca no bolso da jaqueta e diz: A gente trouxe uma procê com silenciador.
Melhor usar ela, diz o barbudo.
Taí dentro. Depois deixa tudo lá com o Chiquinho.
O barbudo olha para ela, sorrindo. Melhor usar ela que essa outra aí. Ninguém quer fazer barulho de noitão.
A moça tem quarenta e oito hora, diz o outro, repentinamente sério, como se quisesse encerrar logo a conversa. Domingo e segunda ele costuma ficar no endereço que a gente anotou no verso aí da foto.
Ele usa o apartamento pra comer gente. Aproveita que a muié vai quase todo fim de semana pra roça e fica nesse apartamento co’as menina.
A muié costuma voltar na terça de manhã.
Ele diz que aproveita o fim de semana pra trabaiá, mas não trabaia, não, só fica comendo as menina mesmo.
Um bando de menina novinha.
Por esses dia tem uma menina que chega mais cedo, mas tem outra que só chega ou devia chegar lá pra meia-noite.
Ela mente pros pai, tem base?
Sai de fininho.
Mentia, né. Saía.
E devia chegar porque não vai aparecer hoje, não.
Nem amanhã.
Num vai aparecer mais.
Eles gargalham, olhando um para o outro, como se o fato de a menina não aparecer fosse a coisa mais engraçada do mundo.
Se não conseguir pegar ele no apartamento, diz o barbudo, o endereço da casa também tá aí, mas lá ia ser bem mais complicado.
Muié, criança, um monte de empregado.
Melhor dar um jeito de pegar ele aqui no centro mesmo, moça, hoje ou amanhã.
É um desses prédio baixinho ali pra cima, na Anhanguera mesmo, perto do teatro. Tem pouco apartamento ocupado.
Prédio véi, sem porteiro.
O safado escolheu o lugar direitim.
É.
Pra comer as menina em paz.
A chave da portaria taí dentro.
Tá tudo aí.
A moça não vai ter pobrema.
Depois que terminar, leva o carro lá pro Chiquinho.
Deixa tudo com ele.
É. Quer perguntar alguma coisa?
Ela engole em seco. E o meu pai?
Uai. Saudável.
Tava bebendo com o patrão e vendo TV quando a gente saiu de lá. Eles ia ver a Super Máquina.
Mais saudável que nós aqui.
A moça faz o que tem que fazer, depois liga dum orelhão pro número anotado aí no verso da foto.
Liga, volta pra cá e espera.
A gente ou outra pessoa vem e traz o pagamento.
A gente ou outra pessoa vai ficar de sobreaviso, o barbudo bate uma continência torta.
O carro é um Oggi.
Oggi?, ela pergunta.
É, um Oggi pretim.
O Voyage gasta menos na cidade.
É verdade, diz o barbudo, cutucando o outro. Cê sabia? Li isso na Quatro Roda.
Grandes bosta. O carro tá no estacionamento do hotel, moça. Cê precisa de mais alguma coisa?
Balança a cabeça: não.
Boa sorte, então.
Fica com Deus.
Eles dão meia-volta e saem, fechando a porta, o barbudo ainda falando sobre a matéria na Quatro Rodas: Mas escuta, o Voyage faz quase dez quilômetro por litro na cidade, e tem o câmbio longo, a quarta marcha dele…
Ela olha para a sacola preta que segura no colo. Fica com Deus. Fica com Deus é o caralho, vai tomar no cu.
E decide não esperar.
Abre a sacola. Não havia necessidade da foto, bastava dizer o nome do alvo e onde e quando encontrá-lo. Um filho da puta famoso, que merda. Ela memoriza o endereço e o número do telefone, depois rasga a foto, vai ao banheiro, joga na privada e dá a descarga. Observa que o barbudo, pelo menos, não mijou fora do vaso. De volta ao quarto, tira a chave do carro, a arma e o silenciador de dentro da sacola. Parece tudo em ordem. Taurus PT92. Tenho uma igual. A “filha” da Beretta 92. Uma cópia, na verdade. Deus abençoe a indústria nacional. O petróleo é nosso, e o fogo também. Pente carregado. A Beretta foi arma com que aprendeu a atirar. Uma delas, pelo menos. Enrosca e desenrosca o silenciador. Sim, tudo em ordem. É raro que usem silenciadores, ela e o pai, ela ou o pai. Em geral, a ideia é fazer barulho. Ou, na verdade, dada a natureza da maioria dos serviços executados, o barulho é irrelevante. Como na birosca horas antes. Poeira. Fumaça. Uma prega inflamada dos cus de Goiás. Ou naquele posto em Frutal. Três e pouco da manhã. Noite feia. Chuva forte a caminho. Respira fundo e coloca tudo na mochila, inclusive a SIG que a acompanha desde cedo. Não esperar. A gente ou outra pessoa vai ficar de sobreaviso. Grandes bosta. Boa sorte, então.
Fica com Deus é o caralho, diz antes de sair.
Onze e cinquenta e dois quando dirige pela Anhanguera. O ideal seria apenas fazer um reconhecimento. Sacar o lugar. Dar uma boa olhada.
Foda-se.
Agora, pensa não em Gordon ou no pai, mas na menina que só chega ou devia chegar por volta da meia-noite. Eu sou essa menina. Hoje, agora. Acelera para cruzar a Goiás. Deserto. Uma rua após a outra. Lá está. Teatro Goiânia. Dobra à esquerda, cortando transversalmente a Araguaia (o lado direito do manto da Santa) (supostamente), e estaciona na rua 23. Desliga o carro. O teatro às escuras. Onze e cinquenta e cinco. Imóvel por alguns segundos, as duas mãos no volante. Ninguém por perto. O centro, esse ermo. Deserto em expansão, o fora pulsando no escuro — aqui.
Agora, porra.
Alcança a mochila que está no banco ao lado, pega o boné (não aquele com que foi presenteada), coloca, pega a Taurus, checa outra vez, enrosca o silenciador, recoloca na mochila e sai do carro.
Vento frio. Cidade morta.
Segue pela calçada. O prédio logo após a esquina. Consultório odontológico. Uma loja de colchões.
Aqui.
Olha para a direita, depois para a esquerda: ninguém, nada. Cidade morta. Pega a chave no bolso da jaqueta. Será que era a tal menina? Destranca a porta. Na chácara, de topless, jogando conversa fora com a mulher do Velho? Entra. A menina que não vai aparecer mais. Uma lâmpada falha no teto, prestes a queimar. Provável que sim, mas.
(Presta atenção.)
Pega a arma, respira fundo outra vez, ajeita a mochila nas costas e sobe até o segundo andar.
(Presta atenção no que tem que fazer, caralho.)
Tudo escuro, tudo silencioso, exceto pelo zumbido baixo de uma ou outra televisão ligada, poucas.
(Aqui.)
Para diante da porta. Música em volume baixo rolando lá dentro.

I know it’s late, I know you’re weary
I know your plans don’t include me.

Sorri ao tocar a campainha. Passado um instantezinho, o som da chave girando na fechadura.

Why should we worry?…

O sorridente homem de meia-idade que surge à porta segura um copo americano com cerveja pela metade e ostenta uma cueca amarela e um princípio de ereção, botas de couro preto, um chapéu marrom enfiado na cabeça, a pança inchada como a de uma criança com esquistossomose e uma grossa corrente (com o indefectível crucifixo de ouro) pendurada no pescoço. Um feixe de luz vem de um cômodo próximo, à esquerda dele; o quarto, provavelmente.
Opaaaa, estala a língua, depois tenta firmar as vistas. Uai, menina, cê veio disfarçada, e esse bonezim, quê q
O primeiro tiro acerta bem no meio da arcada superior, o quadro (Sagrado Coração de Jesus) pendurado atrás dele e a parede tingidos de vermelho por um borrifo grosso e escuro em que se misturam massa encefálica e lascas de crânio e estilhaços de dentes.
O copo se quebra ao cair: ploft.
Cheiro de cerveja.
Ela atira outras três vezes, no rosto e na testa e no alto da cabeça, acompanhando a descida do corpo, costas contra a parede.

We’ve got tonight
Who needs tomorrow?

Antes que a bunda dele chegue ao chão, Isabel levanta a cabeça, dá meia-volta e desce as escadas com rapidez, mas sem correr, guardando a arma na mochila. Quando está prestes a ganhar a rua, ouve um berro ecoando desde o segundo andar. Estridente. Essa também não vai aparecer nunca mais, pensa.