No Estadão: “Geração Cerrado”.

Por Amanda Calazans.

Com o peito inchado de tristeza após a partida de um filho, Zé Minino, protagonista de Farejador de Águas, observa a Lua subir e cobrir de luz tudo o que os olhos enxergam na imensidão do chão e se pergunta: “Pra que sair daqui, gente?”.
O romance da escritora goiana Maria José Silveira, publicado pela editora Instante em junho, divide o cenário do Cerrado do Centro-Oeste com os livros de André de Leones (Vento de Queimada, Record, 2023), Fabiane Guimarães (Como se Fosse um Monstro, Alfaguara, 2023) e Paulliny Tort (Erva Brava, Fósforo, 2021). São autores com tempo variado de produção anterior, mas todos com novos livros que exploram uma paisagem ainda rara na literatura brasileira.
A sincronia literária acompanha a maior representação do Centro-Oeste no cinema, como em Mato Seco em Chamas e Fogaréu, lançados no ano passado, e no mercado de artes plásticas, com a inauguração recente da Cerrado Galeria, em Goiânia. Na cultura pop, a região com a população que mais cresce no País é representada na novela da Globo Terra e Paixão e pelo fenômeno do “agronejo”, em que se destaca Ana Castela, cantora mais ouvida no Brasil hoje.

Paisagem rara

O Cerrado do Centro-Oeste, no entanto, ainda é uma paisagem rara na literatura brasileira, mesmo entre o repertório de leitores da região. Foi assim na infância de Paulliny Tort, de Brasília. Além de Cora Coralina, ela não teve contato com outras narrativas baseadas em sua terra.
“Eu não fugi à regra”, diz Maria José Silveira, que hoje vive em São Paulo. Embora tivesse autores goianos à disposição na biblioteca do pai, eles não despertavam seu interesse. “Os leitores preferem ler quem já foi aprovado pelo eixo Rio-São Paulo e os estrangeiros.”
Fabiane Guimarães, nascida em Formosa (GO), também só descobriu referências locais depois de adulta, já vivendo no Distrito Federal. “Várias vezes me falaram que eu fui a primeira autora que eles leram que escreve sobre Brasília. Aí, eu começo a puxar outros”, conta ela.
Já André de Leones leu mais autores do Centro-Oeste, como Yêda Schmaltz, Bernardo Élis e José J. Veiga, antes de se tornar escritor. Radicado em São Paulo, ele costuma doar exemplares de seus livros para a Biblioteca Pública Coronel Pirineus, de Silvânia (GO), onde cresceu.

Marcha para o Oeste

“Claro que isso tem a ver com a formação colonial do País, que começou ali pelas bordas, e o centro só foi ocupado há pouco tempo”, diz Fabiane sobre a atenção diferente dada a obras do Centro-Oeste. A construção da capital federal, bem como a passagem da Coluna Prestes por Goiás, a Marcha para o Oeste, o movimento de Santa Dica e a Revolta de Trombas e Formoso, está presente no livro de Maria José.
Embora reconheça que o vazio de referências literárias do Centro-Oeste existiu na sua formação como leitora, Paulliny afirma que não o sentiu. “Em nenhum momento eu falei ‘puxa, como eu gostaria de ler um livro que se passasse na minha cidade’. Acho que eu pensava ‘puxa, como eu gostaria de escrever um livro que se passasse aqui’.” Sua obra Erva Brava, finalista do Prêmio Jabuti 2022 na categoria de contos, reúne histórias localizadas em Buriti Pequeno, cidade fictícia do interior de Goiás.

Cerratense

Mais do que personagens típicos do Centro-Oeste, Paulliny buscou retratar nos contos que compõem Erva Brava um mundo em desaparecimento que ela teve a oportunidade de conhecer. “Brasília foi construída para aproximar esta região do litoral, e isso foi muito recente, então nós temos pessoas vivas que viveram esse isolamento.” Longe de ser regra, alguns de seus personagens nunca viram o mar, “um símbolo de outras coisas que não estão acessíveis”. No conto Má Sorte, por exemplo, que narra um acidente com um trabalhador em um silo de soja, ela escreve: “Justo você, que nunca viu o mar, vai morrer em mar seco”.
Embora Vento de Queimada tenha uma personagem adulta que vai à praia pela primeira vez em Santos, De Leones discorda que a pouca familiaridade com o mar seja uma característica comum do cerratense. “Mas, por outro lado, gosto de pensar que as amplidões do Cerrado, o clima seco, a vegetação, tudo isso influencia de alguma forma no temperamento dos meus personagens.”
No romance, um “pequi noir” segundo o autor, pai e filha trabalham como matadores em Goiás. Os muitos diálogos e monólogos interiores do livro são cheios de expressões locais como “tem base um trem desse?”, “disgrama”, “uai”, um “jeito de falar oscilando entre a caipirice e um registro mais urbano a depender da companhia e/ou do grau de irritação ou alcoólico”, como é definido o ex-policial civil assassino.

‘Criatura do deserto’

Já a gastronomia típica do Centro-Oeste está presente principalmente em Farejador de Águas, em que Maria José descreve o passo a passo de uma pamonhada e o cozimento do pequi. Em Erva Brava, além dos alimentos da terra há o domínio do refrigerante e o café muito doce. “A relação com o açúcar tem muito de uma memória afetiva minha. Mas acho que não é só aqui”, diz Paulliny.
“A gente tem paisagens que são muito interessantes para se explorar numa ficção”, afirma Fabiane. “Acho incrível estar em Brasília, num prédio que parece uma coisa alienígena, aí, você dirige 20 minutos e chega a um paraíso com cachoeiras.” Em Como se Fosse um Monstro, uma mulher que foi barriga de aluguel nos anos 1980 recebe uma jornalista com motivações pessoais para entrevistá-la. Damiana, a entrevistada no romance, sai de Formosa para Brasília, “uma cidade chique e bonita, porque é onde o presidente mora”.
A chuva em Brasília é um acontecimento, diz Fabiane em uma manhã de junho coincidentemente chuvosa. “Eu acho que todo mundo que vive aqui é no fundo uma criatura do deserto.” Uma forma comum de o cerratense fazer as pazes com a água, segundo ela, é ir tomar banho de cachoeira no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no nordeste de Goiás.

Devastação ambiental

Assim como em Erva Brava, que fecha com uma enchente em Buriti Pequeno, a devastação ambiental também é o tema central de Farejador de Águas. No livro de Maria José, cem anos da história de Goiás e do Cerrado são contados a partir dos rumos de Zé Minino. Antropóloga, Maria José usa na literatura o método de histórias de vida, que são marcadas pelo entorno e pela cultura em que estão inseridas, segundo a autora. “É um romance que se passa no Cerrado, não se passaria em outro lugar.”
No romance, o único filho a estudar na Universidade de Brasília (UnB), que o irmão dele ajudou a construir, fala a Zé Minino a respeito de uma entrevista do pesquisador do Cerrado Altair Sales Barbosa, este um personagem da vida real, com quem o estudante aprendeu sobre a “floresta de cabeça para baixo”, a água retida que ajuda a formar as maiores bacias que abastecem o País, o risco do desmatamento de árvores como o buriti, que leva 500 anos para atingir 30 metros.
Além da preocupação com a devastação ambiental que ocorre no Cerrado, os autores ouvidos para esta reportagem atribuem a publicação de livros sobre o Centro-Oeste por editoras nacionais também a um interesse recente do mercado editorial por novas vozes. “Basta observar o saudabilíssimo aumento da diversidade de vozes. Há vozes da periferia, vozes gays, vozes pretas, vozes de toda parte, e isso é ótimo”, diz De Leones.
“Mas ainda falta”, avalia Paulliny. Para ela, os eventos literários continuam deixando a desejar na representação do Centro-Oeste. Com nove romances já publicados, Maria José sugere que as editoras busquem autores “novos não só na idade, mas de temas novos que digam alguma coisa além do que já foi demasiadamente dito”. Fabiane concorda: “Diversificar é urgente até para a nossa literatura caminhar e ganhar novos tons”.
O interesse do público pela literatura do Cerrado não tem limitações geográficas. “Eu não estou falando só de uma região, estou falando de um país”, afirma Fabiane, que percebe ter mais leitores de fora de Brasília. No caso de Erva Brava, segundo Paulliny, a identificação com o cenário onde seu livro é ambientado pode ocorrer com qualquer pessoa que tenha tido alguma experiência no campo. No entanto, a autora prefere que o interesse seja na perspectiva do autor do Centro-Oeste, e não em uma temática própria da região.
A autora reconhece que ser uma escritora mulher, jovem e do Centro-Oeste é uma chance de ser lida neste momento de valorização de vozes diversas. “Mas o que a gente quer é que todo mundo seja analisado como literatura brasileira.” Num país de tão poucos leitores, Paulliny, por sua vez, não se incomoda com rótulos que o seu livro possa receber. “Se for esse tom pitoresco, exótico, que vai atrair o leitor, que seja. O importante é que as pessoas estejam lendo.”