Sobre “Vento de queimada”

Vento de queimada é um romance sobre uma matadora chamada Isabel. A história se passa em 1983, em Goiânia, Brasília, interior de Goiás, São Paulo e outras vizinhanças¹. Estamos nos estertores da ditadura, e bandidos de todos os tipos, fardados ou não, orbitam em torno do corrupto, inchado e ingovernável estado brasileiro. Pessoas são assassinadas a troco de nada ou muito pouco, em intrigas e conflitos tão mesquinhos quanto não raro inexplicáveis, e muitos já anteveem o que lucrarão com a retorno previsto, mas ainda indefinido, das eleições diretas.

Isabel é historiadora por formação e matadora por deformação. As razões que levaram uma graduada pela Universidade de Brasília ao crime são delineadas a certa altura (mas só até certo ponto) do romance, e elas passam pela figura do pai, William Garcia, ex-policial e assassino profissional que ostenta uma tatuagem (invertida) de “Behemoth e Leviatã”, de William Blake, bem no meio das costas. Garcia está em conflito com o Velho, um bandido muito bem relacionado, amigo de ex-senadores e inimigo de mulheres magras. Há, também, a figura do Gringo, o misterioso Andrew J. Gordon — será que Isabel pode confiar nele?

Na maior parte do tempo, frequentamos a cabeça de Isabel e compartilhamos de suas dúvidas, temores e afetos. Uma mulher sozinha cercada por Homens de Bem™️. O que começa mal, termina mal, mas isso não é um spoiler. Vento de queimada é um romance sobre o custo-Brasil: cadáveres e mais cadáveres se amontoam, e às vezes o único jeito de alcançar a saída (qualquer saída) é atirando. Em sendo assim, é uma narrativa amoral sobre criaturas imorais. Um autêntico pequi noir.

A gênese do romance está no conto que dá título ao livro Paz na Terra entre os monstros² (leia AQUI), escrito por volta de 2004. Estão ali dois matadores, pai e filha, mas é claro que, mais de quinze anos depois, quando passei do conto ao romance, muita coisa mudou³. Quanto à estruturação, acho que escrevi uma carta de amor para Xenofonte (como se ele já não tivesse muitos problemas para resolver). Para o bem e para o mal, estamos mergulhados em um determinado oceano cultural e nele navegamos, abordando temas similares há milênios — família, poder, violência, memória, sexo, morte etc. Ter consciência disso, dessa tradição, e trabalhar com e a partir dela, é algo importantíssimo. Para um escritor, é a diferença entre saber nadar e se afogar.

Também procurei concretizar certas coisas que (vá lá) “teorizei” AQUI. Um mundo disfuncional pede histórias disfuncionais, e histórias disfuncionais são mais bem desenvolvidas assim disfuncionalmente. Eu poderia dizer que peco pelos excessos, mas não acredito em pecado e peso mais de noventa quilos.

Lancei meu primeiro livro há 17 anos. Vento de queimada é o sétimo romance que publico, e há nele algo da raiva que anima Hoje está um dia morto, bem como da explicitação de uma falsa dicotomia (entre “mundo” e “submundo”) que comecei a desenvolver em Abaixo do paraíso. Neste, Cristiano provou da violência e voltou correndo para a casa do pai. Talvez Isabel não tenha para onde correr. E, mesmo que tivesse, a verdade é que ela não correria. De jeito nenhum.

(Leia um trecho de Vento de queimada AQUI.)

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¹ Há um capítulo com vista para o Atlântico; cuidado para não se afogar.
² No mesmo livro, a novela “Aneurisma” apresenta uma personagem que escreveu um romance protagonizado por um matador; eu era ingênuo, achava que a ficção me protegeria de certas coisas.
³ Isabel, por exemplo, desaprendeu a rezar.