Canto LXXVI

“E o sol”: Hélio, a presença divina no mundo. Pound parece se imaginar em casa, em Rapallo, assistindo ao nascer do sol.

“dove sta memora”, “onde vive a memória”: da tradução de Pound de Donna mi prega.

“Signora Agresti”: a britânica Olivia Rossetti Agresti (1875-1960) foi uma ativista e intelectual, filha do crítico de arte William Michael Rossetti e da artista e modelo Lucy Madox Brown. Agresti viveu por muitos anos em Roma e se correspondeu com Pound. Ideologicamente, ela foi do anarquismo ao fascismo, o que seria cômico se não fosse estúpido. Com sua irmã Helen Rossetti Angeli (1879-1969), publicou um jornal anarquista, The Torch. Depois, usando o pseudônimo “Isabel Meredith”, elas publicaram o livro A Girl Among the Anarchists.

Alcmene ou Alcmena é uma personagem mitológica, mulher de Anfitrião e mãe de Héracles. As dríades são ninfas associadas aos carvalhos (δρῦς, drýs). Cada dríade nascia junto com uma árvore e com ela morria. As hamadríades também são ninfas, mas associadas a outras espécies de árvores. As helíades são as ninfas filhas de Hélio.

“Dirce et Isotta (…) Primavera”, “Dirce e Isotta e ela que se chamava Primavera”: Dirce, esposa de Lico, rei da antiga cidade que depois viria a se chamar Tebas. A sobrinha deles, Antíope, foi estuprada por Zeus e deu à luz os gêmeos Anfião e Zeto. Dirce maltratava Antíope e queria matá-la. Antíope e os filhos se vingaram. Com a ajuda de alguns pastores, mataram Lico. Depois, os gêmeos amarraram os cabelos de Dirce nos chifres de um touro, que a arrastou até matá-la. Isotta degli Atti foi amante e depois a terceira esposa de Sigismundo Malatesta (v. Canto IX). “Primavera” era a amada de Guido Cavalcanti, para quem ele compôs diversas canções. As três mulheres estão “no ar intemporal” porque foram cantadas por poetas.

“or nel crivo ed al triedro?”, “ou na encosta e no triedro”: lugar onde se cruzam três estradas. Pound passava por uma encruzilhada dessas na estrada entre Rapallo e Sant’Ambrogio.

“sotto…”, “sob os nossos penhascos”; “pela Aurélia até Roma”: Aurélia é a via costeira que liga Roma a Pisa, e esta a Gênova; “la vecchia”, “a velha”: a velha estrada em S. Pantaleone; “qual (…) scalza”: “aqui na esquina e garota descalça” (na edição brasileira, está “scala” em vez de “scalza”).

“e ela que disse: ainda tenho o molde”: Caterina Sforza Riàrio (1463-1509), filha bastarda de Galeazzo Maria Sforza, foi casada com Girolomo Riàrio (sobrinho do papa Sisto IV) e depois com Giovanni de Médici. Após a morte de Sisto IV, em 1484, Caterina (grávida de sete meses) tomou de assalto o Castelo de Santo Ângelo e tentou forçar os cardeais a indicarem algum parente seu como o próximo papa. Não obteve sucesso e foi embora com o marido para Forlì. Lá, em 1488, por obra de uma conspiração organizada pela família Orsi, Girolomo foi assassinado e Caterina, aprisionada com os seis filhos. No entanto, os conspiradores não conseguiram tomar a fortaleza de Ravaldino, fundamental para a defesa da cidade. Caterina, então, ofereceu-se para ir até lá e convencer o castelão, Tommaso Feo, a depor as armas. Como os filhos dela seriam mantidos como reféns, os Orsi acreditaram que Caterina manteria a palavra. No entanto, uma vez lá, ela se juntou à sublevação. Quando os Orsi ameaçaram matar os filhos, conta-se que Caterina subiu na muralha, ergueu o vestido e, exibindo a genitália, berrou: “Fatelo, se volete: impiccateli pure davanti a me… qui ho quanto basta per farne altri!” (“Faça isso, se quiser; pode enforcá-los na minha frente… aqui tenho o que preciso pra fazer outros!”). Na versão de Pound: “Ainda tenho o molde”. Os Orsi não tiveram coragem de matar a filharada. Com a ajuda de Ludovico il Moro, seu tio, Caterina retomou o controle de toda a cidade. Não por acaso, Maquiavel elogia Caterina nos Discorsi (III, 6).

“cette… venggg”, “aquele vento podre”.

Monte Segur foi a última fortaleza dos albigenses, na Provença, a ser destruída na cruzada do século XIII.

“memorat Cheevers”, “Cheever lembra”: Ralph Cheever Dunning (c.1865-1930), poeta norte-americano que viveu suas últimas décadas de vida em Paris. A “muralha da Babilônia” é uma referência ao poema “The Four Winds”, de Dunning, onde lemos: “My garden hath a wall as high / As any wall of Babylon, / And only things with wings shall spy / The fruit therein or feed thereon” (em tradução livre: “Meu jardim tem uma muralha tão alta / Quanto qualquer muralha da Babilônia, / E só coisas com asas podem espiar / O fruto ali dentro ou dele se alimentar”).

Dieudonné foi um famoso chef londrino, cujo restaurante era frequentado por Pound e outros escritores. Nos versos seguintes, os nomes de outros restaurantes (em Paris, Nova York, Viena etc.) são citados.

“Willy” é o escritor Henri-Gauthier Villars, hoje mais conhecido por ter sido casado com Colette.

“mas o raio solar artificial de Eileen…”: no original, “trick sunlight”. A artista Eileen Agar colocava uma lâmpada atrás das cortinas amarelas em sua casa, daí o “truque”.

“Chung” + o ideograma = Pound traduz como “pivô inabalável”. Ele escreve em The Townsman (12 de abril de 1939) que o dinheiro é o “pivô”, “o denominador comum das trocas” e, portanto, “o pivô de toda ação social” (citado por Terrell). Mais abaixo, o ideograma seguinte é “Ch’eng”, “sinceridade”. “Kung fu Tseu”: “K’ung”, Confúcio; “fu Tseu”, “mestre”. “Chung ni” é outro nome de Confúcio.

“cada qual em nome de seu deus”: Miqueias 4,5. Variações dessas palavras de Miqueias aparecem nos Cantos LXXIV, LXXVIII, LXXIX e LXXXIV.

Pound visitou uma sinagoga em uma de suas estadias em Gibraltar (v. Canto XXII).

“capítulo XIX”: Levítico 19, 35-37 — “Não cometereis injustiça no julgamento, quer se trate de medidas de comprimento, quer de peso ou de capacidade. Tereis balanças justas, pesos justos, medida justa e quartilho justo”.

“Don Fulano”, “Caio”, “Tizio”: algo como “fulano”, “beltrano” e “cicrano”, como se diz coloquialmente no Brasil.

“Por que não reconstruí-lo?”: dos Analectos (239). Alguém sugere a construção de um novo celeiro. Outra pessoa retruca: “Por que não reconstruir o antigo?”. Kung endossa a opinião de que é melhor reconstruir.

“ante mortem no scortum”: fala o estuprador e assassino Louis Till (“Snag”) — “Antes da morte, nenhuma puta”.

“‘no céu (…)’ mulheres”: de Aucassin et Nicolette, história cantada composta no século XII ou XIII. No capítulo 6, Aucassin diz a um clérigo que prefere ir para o inferno, pois lá estarão sua amada Nicolette, cavaleiros, nobres e outras mulheres.

Hans Memlig (c.1430-1495) foi pintor flamengo de motivos religiosos. Mac Elskamp (1862-1931) foi um poeta simbolista belga que também se valia de temas religiosos. Ao citá-los, Pound contrasta a postura irreligiosa de Aucassin com a tradição artística religiosa.

Galla Placidia (388-450) foi imperatriz-consorte do Império Romano do Ocidente, esposa de Constâncio III. Antes, fora casada com o rei dos visigodos, Ataulfo. Seu mausoléu fica na igreja de São Nazário e São Celso, em Ravena, que, ao contrário do que pensa Pound, não foi destruída durante a Segunda Guerra (embora esse rumor circulasse à época).

“Tout (…) fortune”, “Todos dizem que a fortuna não dura”.

“Joyce et fils”: em 1920, James Joyce e seu filho, Giorgio, visitaram Pound pela primeira vez. O encontro se deu na cidade de Desenzano, às margens do lago de Garda, em um dia tempestuoso.

“Miss Norton”: Sara Norton, filha do escritor e crítico de arte Charles Eliot Norton, editou as cartas do pai. Em 1908, Pound a encontrou em Veneza.

“La Figlia de Jorio” é uma pela de Gabriele D’Annunzio (1863-1938).

“l’ara sul rostro”, “o altar na tribuna (ou pódio)”.

“jovem Mozart”: em 16-17 de outubro de 1777, Mozart escreveu uma carta para seu pai. Nela, descrevia o filho de um magistrado que o sacaneava, tirando sarro de um prêmio que recebera. O rapaz ofereceu a Mozart um pouco de rapé, e Mozart ofereceu a mesma coisa em resposta, e nisso ficaram por um tempo. Por fim, Mozart escreveu ao pai dizendo que todos aqueles “patrícios” podiam lamber o rapé de sua bunda. “Prise” é uma pitada de rapé.

“Cythera potens, Kύθηρα δεινα”, “poderosa Citera, terrível Citera”: Citera é um epíteto de Afrodite.

“Κορη, Δελια δεινα et libidinis expers”, “Filha, terrível Delia [Ártemis] para quem a paixão é desconhecida”.

“πολλα παθειν”, “sofrer muito”: da Odisseia I, 4-5 — “(…) as muitas dores amargadas / no mar (…)”.

“af ferae familiares”, “e animais selvagens domesticados”.

“atasal”: provável transliteração do termo árabe que significa “união com o divino”.

“nec personae”, “nenhuma pessoa”. No verso seguinte, “hipóstase” é usada no sentido filosófico (entidade autossuficiente), não teológico.

“Helia” é um erro de impressão. Pound segue falando de Delia.

“Κύπρις”, “Chipre”: o local de culto de Afrodite era Citera, no Chipre.

“ambos os olhos (…) vaca…”: Mary de Rachewiltz, filha de Pound, trabalhou em um hospital militar alemão na Itália, durante a Segunda Guerra. Lá, conheceu um jovem que perdera a visão. Ele reclamou que o pai não cuidava direito de sua vaca.

“un terzo cielo”, “um terceiro paraíso”: Dante, no Paraíso VIII, 37 — “Vós, de quem move o céu terceiro a mente“.

“e Bracken (…) ou seja mentir”: Pound usou artigos publicados na Time em 4 e 11 de junho de 1945 para escrever esses versos. Em 23 de maio de 1945, Churchill (a “boneca-falante”) renunciou ao cargo de primeiro-ministro ao meio-dia; às 16hs, estava no Palácio de Buckingham aceitando o convite do rei George para formar um novo governo. Brendan Bracken foi o ministro da informação que, durante a guerra, supervisionou a censura da BBC. A Time afirma que ele só censurava informações militares, mas Pound pensa diferente.

“ego scriptor”, “eu, o escritor”; “spirit questi? personae?”, “estes são espíritos? pessoas?”.

“Maya” é a filha de Atlas e Pleione, e mãe de Hermes. Ἀφροδίτη, Afrodite. Mais abaixo, “οι βάρβαροι”, “os bárbaros”. “Divae Ixottae”, “Divina Isotta”.

“et sequelae”, “e as consequências”; “Le Paradis…”, “o Paraíso não é artificial”; “δάκρυων”, “chorando” ou “de lágrimas” (se genitivo plural); “L. P.”, “Laval Petain”; “gli onesti”, “os honestos”; “J’ai (…) assez”, “Tenho pena dos outros, provavelmente não o bastante”; “l’enfer…”, “tampouco o inferno”.

“las pastorella…”, “a pastorinha dos suínos”; “benecomata dea”, “a deusa de belas-tranças” (Circe); “le bozze”, “as provas” (do livro A Lume Spento, o primeiro que Pound publicou, em 1908).

A “Era” é a era fascista. “Tullio Romano” é Tulio Lombardo (c.1455-1532), escultor e arquiteto italiano que fez a tumba no Palácio Vendramini (citado antes, entre outras edificações venezianas). As “sereias” são quatro figuras de mármore na igreja de Santa Maria Dei Miracoli, citada alguns versos depois.

“che mi porta fortuna”, “que me traz boa sorte”; “Tio George” é o mesmo George H. Tinkham citado no Canto LXXIV; “voi (…) via”, “você que passa por esse caminho”; “K.H.” é a pianista Katherine R. Heyman, que Pound “empresariou” em 1908.

“Atena”: citação do “Hino a Afrodite”, de Safo; “τις αδικει”, “quem (te) fez mal?”

“Conde Volpe”: Giuseppe Volpi, ministro das finanças fascista. A “princesa” mencionada a seguir é Winnaretta Eugenia.

“Sandro de Dafne”: inversão; no caso, ele se refere à tela “Dafne”, de Boticcelli.

“Trovaso, Gregorio, Vio”: a Igreja de S. Trovaso e a Abadia de S. Gregório ficam às margens do canal do Rio de S. Trovaso.

O “Dottore” é Alexander Robertson, pastor presbiteriano que vivia em Veneza. A “intriga babilônica” refere-se ao fato de que, entre 1309 e 1378, por conta de intrigas com os italianos, os papas (franceses) viveram em Avignon, não em Roma.

“Squero”, “estaleiro”. “Ogni Santi” é um canal em Veneza. Em 1908, Pound vivia na conjunção dos canais Ogni Santi e S. Trovaso.

“coisas têm fins e princípios”: interpretação poundiana de um texto de Confúcio.

“ninho oculto”: pintura abstrata de Tamiosuke Koumé feita para Pound, que a chamava de “o sonho de Tami”. Eles se conheceram em Londres. Koumé morreu em 1923, no terremoto de Tóquio. Na Segunda Guerra Mundial, a pintura foi apreendida pelos aliados e nunca mais foi vista. O “grande Ovídio” era um exemplar raro do Fasti, que também desapareceu.

“64 aldeias…”: no original, “64 countries”. Terrell sugere que o tal sargento está enumerando os países envolvidos na guerra, mas me parece mais uma descrição da região italiana onde se encontra o DTC. Se for o caso, Grünewald foi feliz em sua escolha.

“lisciate (…) ΔΑΚΡΥΩΝ”, “amaciado com lágrimas / lágrimas polidas LÁGRIMAS”.

“ΠΟΙΚΙΑΟΘΡΟΝ, ‘ΑΘΑΝΑΤΑ”: do primeiro verso do “Hino a Afrodite”, de Safo — “… imortal de faiscante trono” (na tradução de Jaa Torrano).

“… anéis de fumo”: no original, “smoke hole”. Referência à segunda parte do Fausto de Goethe, ato II (6819-7004), quando Wagner está criando um ser humano no laboratório, em especial à passagem (na tradução de Jenny Klabin Segall, ed. 34):

WAGNER (baixinho)
(…)
Uma obra esplêndida vem vindo à luz.

MEFISTÓFELES (mais baixo)
Qual é?

WAGNER (mais baixo)
Um ser humano.

MEFISTÓFELES
Um ser humano! E que casal de amantes
Fostes trancar no tubo da fornalha?

“saeva”, “cruel”; “po’eri di’aoli”, “pobres diabos” (logo, o tradutor devia ter flexionado a frase, “enviados à matança”).

“Knecht [e] gegen Knecht”, “escravo contra escravo” ou “servo contra servo”: de volta à mesma passagem do Fausto. Mefistófeles diz (6956-6963):

Oh não! Deixa de lado a eterna gritaria
Brigas sem fim da escravidão e tirania.
A mim me enfadam, pois apenas cessam,
Logo a partir do zero recomeçam.
E ninguém nota: é Asmodeu que as provoca,
E que se esconde atrás dessa baldroca.
Dizem que a liberdade é a aspiração;
E olhando, servos contra servos são.

“ΜΕΤΑΘΕΜΕΝΩΝ”, “mudança” (Aristóteles, Política); “ΝΗΣΟΝ ‘ΑΜΥΜΟΝΑ”, “ilha egrégia” (Homero, Odisseia XII, 261, quando Odisseu chega à ilha de Hélio-Sol).