Canto LXXV

“Flegetonte” é um rio de fogo no Hades. Ele também corre pelo Inferno de Dante (v. Canto XII, 46–48; 103-138; a gravura acima é de Gustave Doré), lá descrito como um rio de fogo e sangue fervente no qual estão imersos aqueles que, em vida, cometeram crimes violentos (os tiranos mergulhados até os olhos; os homicidas, até o pescoço; e os salteadores, até o peito). Vale sublinhar que, nesse caso, o Flegetonte também tem poderes curativos, uma vez que precisa preservar aqueles que ali estão, a fim de torturá-los pela eternidade afora. No Canto VI da Eneida de Virgílio, quando da catábase, Eneias também contempla o rio e o que ele circunda (548-558, na tradução de Carlos Alberto Nunes, ed. 34):

Vira-se Eneias, e viu no sopé de uma rocha, à sinistra,
descomunal fortaleza por tríplice muro cintada,
que o Flegetonte sombrio circunda com chamas do Inferno;
pedras de estrondo invulgar entrechocam-se na correnteza.
Em frente vê-se uma porta gigante de fortes colunas,
de aço tão duro, que forças humanas, nem mesmo as espadas
dos próprios deuses, podiam quebrá-las. Ao lado, uma torre,
onde Tisífone se acha, com o manto coberto de sangue,
sem pregar olhos, de noite e de dia a escutar, vigilante.
Ouvem-se crebros gemidos, açoites vibrados com raiva,
férreas batidas, barulho infernal de grilhões arrastados.

Tisífone é uma das três Fúrias (ou Erínias) e personifica o castigo. Suas irmãs são Megera e Alecto. Dentro da fortaleza, Radamanto (irmão de Minos e um dos três juízes dos Infernos) interroga e tortura os culpados, prolongando ao máximo o sofrimento, no que é auxiliado pelas Fúrias. Quem guarda a entrada da fortaleza é a Hidra de Lerna, um monstro com corpo de dragão e várias cabeças de serpente.

“Gerhart” é o compositor e pianista alemão Gerhart Münch (1907-1988), amigo de Pound, que o recebeu diversas vezes em Rapallo nos anos 1930. Lá, organizava concertos com Olga Rudge.

Dieterich Buxtehude (1637-1707) foi um compositor e organista teuto-dinamarquês do período barroco.

Ludwig Klages (1872-1956) foi um intelectual alemão, autor de Der Geist als Widersacher der Seele (“O intelecto como adversário da alma”), obra que influenciou Münch. Eles chegaram a se corresponder.

“Ständebuch de Sachs”: referência a um livro com ilustrações de Jost Amman para as canções de Hans Sachs.

“não de um só pássaro, mas de muitos”: Münch fez arranjos para violino e piano de Le Chant des Oiseaux (“O canto dos pássaros”), do compositor renascentista francês Clément Janequin (1485-1558). Ouça AQUI. A reminiscência também se dá por conta dos pássaros que Pound ouvia quando estava engaiolado.

Em Rapallo, Münch pesquisou e editou os manuscritos com músicas do século XVI do musicólogo e luthier italiano Oscar Chilesotti (1848-1916). Ao fazer isso, ele se deparou com um arranjo para alaúde do Chant des Oiseaux feito pelo italiano Francesco da Milano (1497-c.1543). Münch usou o arranjo de Milano como base para criar o seu, e o resultado agradou bastante Pound. O poeta ficou impressionado como “os pássaros ainda estavam lá” nas versões de Milano e Münch, conforme afirma em ABC da Literatura (trad.: Augusto de Campos e José Paulo Paes, ed. Cultrix, p. 59):

“Clement Janequin escreveu um coro com sons para os cantores das diferentes partes do coro. Esses sons não teriam qualquer valor literário ou poético sem a música, mas quando Francesco da Milano os adaptou para alaúde, os pássaros ainda estavam na música. E quando Münch os transcreveu para instrumentos modernos, os pássaros ainda estavam lá. Eles ainda estão lá na parte do violino.”

Pound liga a forma dinâmica da composição de Janequin à “rosa na poeira de aço (the rose in the steel dust)” e à “penugem do cisne (swansdowm)”, versos que estão no final do Canto LXXIV. Terrell cita as palavras de Pound sobre isso (em Guide to Kulcher, pags. 151-152):

“A forma, o concetto imortal, o conceito, a forma dinâmica que é como o padrão da rosa cravado nas limalhas de ferro mortas pelo próprio ímã, não pelo contato material. (…) Cortadas pela camada de vidro, a poeira e as limalhas sobem e se ordenam. (…) Assim, a forma, o conceito surge da morte. (…) O conceito de Janequin assume uma terceira vida no nosso tempo. (…) E acho que sua ancestralidade remonta a Arnaut Daniel e sabe Deus a qual ‘antiguidade oculta’.”

E o próprio Terrell nos diz: “O leitor deve parar e pensar: o Canto LXXV é um exemplo da forma ou da forma dinâmica d’Os Cantos como um todo, bem como um movimento de transição para fora do inferno (…), rumo ao paradiso terrestre” (em A Companion to the Cantos of Ezra Pound – vol. II, University of California Press, p. 389).

Eis o ideograma que aparece manuscrito ao final da partitura:

Ele significa “torne isso novo”.

As palavras manuscritas no começo da partitura foram traduzidas por Grünewald e estão em uma nota ao final do Canto.