Canto LXXIV

Canto LXXIV

Pound permaneceu na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Uma de suas poucas fontes de renda era um programa que apresentava na Rádio Roma, no qual falava sobre literatura, política etc. Após o ataque japonês a Pearl Harbor, ele chegou a pedir para ser repatriado, mas isso não lhe foi concedido. No rádio, dentre outras coisas, o poeta expressava opiniões antissemitas e se posicionava contrariamente à entrada dos EUA no conflito, tanto que, em 1943, acabou indiciado nos EUA, in absentia, por traição. Em abril de 1945, entregou-se aos partigiani. Foi transferido no mês seguinte para o American Disciplinary Training Center (DTC). Os norte-americanos mantiveram-no preso em uma gaiola ao ar livre por quase um mês. O calor e as condições eram inclementes. Após sofrer um colapso, foi levado para a enfermaria, onde teve acesso a uma máquina de escrever e alguns livros: uma Bíblia, um texto em chinês de Confúcio (e a tradução deste feita por James Legge) e um dicionário de chinês. Eventualmente, achou na latrina um exemplar do Pocket Book of Verse, editado por Morris Edmund Speare. Também tinha consigo uma semente de eucalipto.

Preso, alijado de sua biblioteca, psicologicamente em frangalhos e politicamente arruinado, Pound só podia recorrer à memória, abordando os anos que passou em Londres e Paris, e relembrando os escritores e artistas que conheceu e os lugares que visitou. Em geral, os Pisanos são referidos como a melhor parte dos Cantos, e é certamente uma das mais conhecidas. Publicados em 1948, foram agraciados com o Prêmio Bollingen, o que causou uma grande polêmica — Pound, afinal, era visto por muitos como louco e traidor (não necessariamente nessa ordem). A essa altura, estava confinado no hospital psiquiátrico St. Elizabeths, em Washington, de onde só seria libertado em 1958.

No decorrer dos Cantos Pisanos, Pound compara o DTC ao afresco “Alegoria de Março”, de Francesco del Cossa. Na obra, dentre outras coisas, vemos homens trabalhando em um parreiral, uma imagem recorrente nos poemas.

O Canto LXXIV começa com Pound preso na “gaiola”. O que ele vê? “A enorme tragédia do sonho nos ombros do campônio”, isto é, os camponeses que trabalham nas proximidades do DTC. E o que ele ouve? A notícia da morte de Mussolini: “Manes foi curtido e empalhado”, e agora jaz dependurado “pelos calcanhares em Milão”. Temos aí o primeiro vislumbre das ruínas de suas convicções políticas. Manes (c.216–276), também conhecido como Maniqueu, foi um profeta persa, criador da doutrina gnóstica conhecida como maniqueísmo. A certa altura, tentou conciliar o zoroastrismo com o cristianismo e acabou condenado como herege; foi esfolado vivo e atirado ao fogo (“curtido e empalhado”).

“Assim Ben e la Clara a Milano“: Mussolini e sua amante, Clara (“Claretta”) Petacci, foram fuzilados por partigiani em Giulino di Mezzegra, um vilarejo da Lombardia, em 28 de abril de 1945. Depois, tiveram os corpos dependurados e malhados na praça de Loretto, em Milão. O epíteto “DIGONOS” (“nascido duas vezes”) se refere a Dionísio. Pound sugere um negativo disso em Mussolini, fuzilado e depois malhado, duplamente morto.

“(…) diga isso a Possum, um estrépito, não um lamento”: “Possum” (“gambá”) é T. S. Eliot, e o verso inverte o célebre trecho d'”Os Homens Ocos” sobre a maneira como o mundo acaba: “not with a bang but a whimper”. Em Pound, “a bang, not a whimper / with a bang not with a whimper”. Pound deu esse apelido para Eliot porque este seria bom em se fingir de morto. É uma pena que Grünewald não tenha traduzido o apelido: “no entanto, diga isso ao Gambá: um estrondo, não um lamento, / com um estrondo não com um lamento”.

“Dioce” ou Deioces foi o primeiro grande governante dos medos, construtor da cidade de Ecbátana. Pound identifica Dioce com Mussolini, que também pretenderia construir uma cidade paradisíaca (na visão do poeta, claro). Heródoto nos conta que Ecbátana foi fundada no século VII a.C. Há quem afirme que seja a atual Hamadan, no Irã. V. Canto IV, inclusive no que diz respeito aos versos seguintes, onde “processo” remete ao taoísmo. Os rios Kiang e Han não são citados por acaso. O “grande périplo” remete a Odisseu, e os “pilares de Héracles” são os penhascos em Gibraltar. “Lúcifer”, aqui, é o planeta Vênus: visto de Pisa, ele parece “descer” a Oeste sobre a Carolina do Norte (“N. Carolina”); “siroco”, um vento quente que sopra sobre o Mediterrâneo, vindo da África; “sorella la luna”, “a irmã lua”; “La Sposa” é a “Esposa (de Cristo)”, isto é, a Igreja Católica, também referida como “Sponsa Christi”.

Nos Cantos Pisanos, os temas continuam se entrelaçando. Assim, muitos eventos e personagens que já apareceram em cantos anteriores são revisitados aqui, como Sigismundo Malatesta, o escultor florentino Agostino di Duccio, Bellini (“Zuan Bellin”) e o “vil bárbaro” Franklin D. Roosevelt. “Charlie Sung” é uma referência a Charlie Soong, empresário e missionário metodista, sogro de Chiang Kai-shek e pai do premiê chinês Soong Tzu-wen. Soong foi importantíssimo na Revolução Hsinhai, que derrubou a dinastia Qing e instaurou a República da China em 1911. “Tang” ou T’ang foi a 13ª dinastia chinesa (618-907), que emitiu cédulas, prescindindo do ouro na confecção do dinheiro (coisa imperdoável para Pound). Isso abre espaço para mais uma diatribe antissemita contra os juros e a “grandeza churchilliana” que “voltou ao pútrido padrão ouro”, causando uma tremenda recessão em todo o império britânico.

Há, também, uma sucessão de transformações, por assim dizer. Logo no começo, por exemplo, Pound se (re)identifica como Odisseu usando o epíteto Οὖτις, “ninguém” — no Canto IX da Odisseia (recorro à tradução de Trajano Vieira, ed. 34), é assim que Odisseu se identifica para o ébrio ciclope Polifemo, antes de cegá-lo:

Três vezes lhe servi, três vezes sorve o estúpido.
Quando a bebida atinge o seu precórdio, disse-lhe
palavras-mel: ‘Ciclope, queres conhecer
meu renomado nome? Eu te direi e, em troca,
receberei de ti o dom que cabe ao hóspede:
Ninguém me denomino. (…)

Cegado por Odisseu e seus companheiros, Polifemo pede ajuda aos outros ciclopes: “Ninguém me fere com astúcia, não com força”. Ao que os outros: “Se, então, ninguém te agride e estás sozinho…”.

A figura do Οὖτις é como que atravessada mais adiante no poema pelo deus da mitologia aborígene, Wanjina. Este criava as coisas dizendo seus nomes, mas foi silenciado pelo pai, Ungur, por exagerar na dose, atulhando o mundo; coisas em demasia distrairiam os homens do que há de mais importante na vida: conversar, dançar, caçar e guerrear. De modo similar, preso e caído em desgraça, Pound também se encontra silenciado, mas não por completo, pois escreve e escreve. Assim, Wanjina se transforma em “Ouan Jin”, “homem de letras”, “escritor”.

“im Westen nichts neues”, “nada de novo no Oeste”: o título original do clássico romance de Erich Maria Remarque, traduzido por aqui como Nada de novo no front.

“nem palavras (…) terra”: Pound parafraseia os Analectos (IV, X). “Rouse” é William Henry Denham Rouse (1863-1950), acadêmico e tradutor de Homero.

De sua gaiola no DTC, Pound podia ver uma montanha que o fazia se lembrar do Monte Taishan, na China, daí a referência. Pouco depois, ele também cita a sagrada montanha de Fujiyama, no Japão, ligando-a à comuna de Gardone Riviera, às margens do Lago de Garda, onde Mussolini instituiu a famigerada República de Salò. Villa Catullo é outra localidade às margens do lago, onde Catulo (87 ou 84 a.C. – 57 ou 54 a.C.) viveu por um tempo.

“poluphloisboios” é um kenning homérico cujo teor onomatopeico, segundo Pound, remete ao som das ondas batendo na praia e depois recuando.

Nicoletti era o prefeito de Gardone durante a República de Saló e um intermediário entre Mussolini e os socialistas. Bianca Capello (1542-1587) era amante de Francesco de Médici, com quem se casou em 1579 e foi proclamada Grande Duquesa da Toscana. Diz-se que foi envenenada por Ferdinando, irmão de Francesco. Talvez ela lembre Pound de Claretta Petucci. Ao que parece, Nicoletti declamou um poema de sua autoria para Pound: “‘A mulher (…)’ / ‘a mulher / a mulher!’ / ‘Por que a coisa deve continuar?’ / ‘Se eu cair’ (…) / ‘não caio de joelhos.'”

“Alaúde de Gassir”: Gassir, filho de Nganamba Fasa, rei da tribo norte-africana Fasa (daí o “Hooo Fasa”, “saúdem os Fasa”). A história de Gassir está na antologia de histórias míticas chamada Dausi.

“le six potences (…) absoudre”, “os seis enforcados / Absolvei, que talvez [Deus] nos absolva a todos” (em tradução livre e provavelmente errada): Villon, Epitaphie de Villon. Leia AQUI a tradução de Augusto de Campos.

Wilson Thos, Mr. K e Lane eram “trainees” no DTC.

Os “papagaios de Lésbia”: Clódia, esposa do cônsul romano Metelo Céler (103–59 a.C), era uma notória libertina. Catulo foi um de seus amantes e o responsável pelo apelido “Lésbia”, e a ela dedicou o seguinte poema (D’O Livro de Catulo. Tradução: João Angelo Oliva Neto. São Paulo: EdUSP, 1996):

Pássaro, delícias de minha amiga —
com quem brincar e ter no colo, a quem
no ataque dar a ponta dos dedinhos
e acres dentadas incitar costuma
quando lhe apraz ao meu desejo ardente
um capricho, um gracejo preparar,
não sei qual, só um consolo à sua dor,
creio, para acalmar o ardor assim —
pudesse eu como ela brincar contigo
e a mente esquecer pensamentos tristes!
Para mim é tão bom quanto à menina
veloz se diz que foi a maçã de ouro
que o cinto atado há muito enfim soltou.

“el triste (…) rivolge”, “o triste pensamento se volta / para Ussel. Para Ventadour / vai o pensamento, o tempo dá meia-volta”: os versos são de Pound, inspirados em “Lo tems vai e ven e vire”, de Bernart de Ventadorn.

“Kuanon”: Kuan-yin, a deusa chinesa da misericórdia, a bodhisattva compassiva. “Linus, Cletus, Clement” são papas e santos católicos. O ideograma que aparece logo depois é Hsien, “mostre-se, seja ilustre, ínclito”. Pound utiliza o ideograma como uma “tênsil luz a cair”. A luz, aqui, é a inteligência, conforme Scotus Erigena (“sunt lumina”, “são luzes”) e Grosseteste. Shun foi um dos imperadores chineses lendários, que teria reinado mais de dois milênios antes da era comum. O “paracleto” é o Espírito Santo da trindade cristã (v. João 14, 26).

“4 gigantes (…) ossos”: no DTC, embora os “trainees” não pudessem falar com Pound enquanto ele estava na gaiola (e mesmo depois), alguns passaram a gostar dele e faziam pequenos agrados, como cavar o fosso ao redor da cela, a fim de aliviar o calor. Os “gigantes”, claro, são os sentinelas.

“(…) disse o irlandês”: no original, “irlandês” é “Oirishman”, isto é, Erigena. O “rei Carolo” é Carlos II, o Calvo (823–877), neto de Carlos Magno. Não há registros de que Erigena tenha sido exumado. É provável que Pound se refira a Amalric de Bene, herético panteísta do século XIII. Ele foi exumado em 1209 e queimado junto com dez de seus seguidores (estes ainda vivos) diante dos portões de Paris.

“soi disantemente”, “supostamente”.

“Les Albigeois” ou albigenses (também conhecidos como “cátaros”) derivavam parte de seu pensamento do mitraísmo, a exemplo dos maniqueístas. Foram dizimados por uma cruzada (1209-1244) organizada pelo papa Inocêncio III, daí ser um “problema da história” o fato de que só temos conhecimento deles (albigenses) por meio dos seus carrascos.

“e a frota em Salamina (…) armadores”: Temístocles venceu os persas na Batalha de Salamina (480 a.C.) usando navios construídos com dinheiro ganho pelo estado com as minas de Laurlon (o estado emprestou esse dinheiro aos armadores para que construíssem os navios). Trata-se de um refrão recorrente nos Cantos Pisanos e posteriores, pois é algo que ilustra um “dogma” da teoria do crédito social, de que o o crédito deve ser uma prerrogativa do estado, não dos bancos e investidores/especuladores privados.

“Pisa, no 23º dia…”: aqui, um erro de Grünewald. No original, lemos “in the 23rd year”, isto é, no 23º ano. Pound refere-se ao tempo decorrido desde a formação do governo de Mussolini, em 1922. Logo, estamos em 1945. A menção a Pisa é porque o DTC se localizava nos arredores dessa cidade.

“E Till foi ontem enforcado”: Louis Till, soldado norte-americano também preso no DTC, foi executado em 24 de julho de 1945. Condenado por violência doméstica nos EUA, o juiz deu a ele a opção de se alistar. Na Itália, foi preso e condenado por dois estupros e pelo assassinato de uma mulher. Uma década depois, nos EUA, o filho de Till, Emmett, foi linchado por dois homens brancos, Roy Bryant e John Milan, em Money, Mississippi, num caso que teve enorme repercussão e inflamou a luta pelos direitos civis. O garoto teria assoviado para uma mulher branca, Carolyn, esposa de Bryant. Emmett tinha catorze anos de idade. Os assassinos foram absolvidos por um júri formado inteiramente por homens brancos.

“Cholkis”: Cólquida (atual Geórgia), o reino de Eetes, filho de Hélio, onde Jasão e os argonautas foram roubar o velo de ouro. Em seguida, há outro erro do tradutor: “aríete de Zeus”. No original, lemos “thought he was the Zeus ram or another one”. No contexto, a tradução correta de “ram” não é “aríete”, mas “carneiro”, pois o velo de ouro é justamente a lã do carneiro alado Crisómalo, o qual é sagrado para Zeus.

“Ei Snag… aporrinhe”: “Snag” é, possivelmente, um apelido que deram para Till. O termo significa “senão”, “obstáculo”, “problema”. Ao que parece, um dos soldados está provocando Till.

O ideograma a seguir é “Mo” e significa uma negativa. Ao lado dele, a palavra grega “Οὖτις”, “ninguém”, reaparece. Logo, “não        ninguém”.

“um homem sobre o qual o sol baixou”: metáfora homérica utilizada quando o herói está em maus lençóis, como, por exemplo, Odisseu cativo de Circe e, por extensão, Pound cativo no DTC e temendo ter o mesmo destino de Till.

“a ovelha… olhos”: palavras de Till, ao que parece. Vindo de alguém condenado por estupro e pelo assassinato de uma mulher, é no mínimo irônico.

Hagoromo é uma peça clássica do teatro nō. A palavra se refere a um manto feito de penas, mágico, pertencente a uma “tennin” ou ninfa, descrita por Pound como um “espírito etéreo ou dançarina celestial”. Ela deixa o manto pendurado num galho de árvore, e um sacerdote o encontra. Quando a “tennin” vai pedir ao sacerdote que devolva o manto, ele concorda em fazê-lo, desde que ela o ensine a dançar. O coro explica que a dança simboliza as mudanças diárias da lua. No final, ainda segundo Pound, a ninfa desaparece lentamente, como uma montanha envolta pela névoa. A Hagoromo voltará a ser mencionada diversas vezes nos cantos posteriores, em especial no LXXIX e no LXXX.

“dell’Italia tradita”, “da Itália atraiçoada”: sim, Pound está sugerindo que a Itália (Mussolini) foi traída(o) pelo rei e por Pietro Badoglio (1871-1956), o militar e político italiano que substituiu o Duce após sua deposição pelo Grande Conselho Fascista, em 24/25 de julho de 1943, e tratou de negociar a paz com os aliados. Isso me lembrou do meu ex-barbeiro octogenário, italiano de Casalbuono, que sempre dizia que a Itália perdeu a guerra porque um padre dedurou a posição das tropas para os norte-americanos. Ele nunca soube me explicar quem era esse padre e como o “traidor” sabia tanto das movimentações militares. Desconfio que meu ex-barbeiro viu Roma, Cidade Aberta quando moleque e achou que o filme tem um final feliz.

“ch’intenerisce”, “que suaviza”: citação de Dante, Purgatório, VIII, 2 — “Era já a hora que volve o querer / do navegante, e induz-lhe o coração / o dia da despedida a reviver” (na tradução de Ítalo Eugenio Mauro, ed. 34). Mais abaixo, “Che sublia es laissa cader” é o terceiro verso do poema de Bernart de Ventadorn sobre a cotovia, “que esquece e se deixa cair”. “NEKUIA” ou nekyia é a prática da necromancia pelos gregos, quando as “ânimas” dos mortos são invocadas e questionadas sobre o futuro, como no Canto XI da Odisseia. Não confundir com “catábase”, a “descida” efetiva ao mundo dos mortos. “Hamadríade”, “três ninfas”. “HAION… HAION”, “o sol em torno do sol”. “Lucina” (Ilítia para os gregos) é uma deidade romana menor, filha de Juno, a deusa dos partos e das gestantes.

“Bunting”: Basil Bunting (1900-1985), poeta inglês amigo de Pound, passou diversas temporadas em Rapallo. Por ser um objetor consciente, não quis se alistar no exército britânico e chegou a ser preso por isso. Foi libertado após uma greve de fome. O título correto do livro de estreia de Bunting é Redimiculum Matellarum (1930).

“negros que morrem…”: Pound se refere a uma pantera do zoológico de Roma. Logo, a tradução correta seria “negra que morre…”.

“Rais Uli”: bandido marroquinho que sequestrou Ian Perdicaris (citado logo depois) e seu sobrinho, Cromwell Varley, em troca de um resgate de 80 mil dólares, pago pelos EUA. Para evitar uma guerra contra norte-americanos e britânicos, o sultão do Marrocos ressarciu os EUA. Elson era um missionário que Pound visitou mais de uma vez em Gibraltar.

Nos versos seguintes, Pound cita diversos escritores que conheceu, como Ford Madox Ford (“Fordie”), Yeats (“William”), Joyce (“Jim o comediante que cantava”) e Maurice Henry Hewlett (“Maurie”). “Kokka” é o cel. Goleiévski, adido militar do embaixador czarista na Inglaterra, Beckendorff. Ele teria dito a frase citada por Pound (“Você fica quieto…”) ao embaixador czarista em Washington, Stalevesky, em 1913. “Tio George”: George Holden Tinkham, congressista de Massachussetts (1915-43), isolacionista e conservador, que Pound conheceu em Veneza. A citação em grego no mesmo verso significa “tudo flui” (inversão de uma frase de Heráclito), sugerindo que Tinkham permaneceu firme enquanto os outros políticos se deixaram levar (à guerra). “Huddy” é o escritor William Henry Hudson.

“où sont les heurs”, “onde estão os bons tempos”.

Mrs. Hawkesby era a governanta de Henry James em Rye. O Mr. Adams citado em seguida é o historiador Henry Brooks Adams (1838-1918). O “monumento” é o filósofo George Santayana. “Haec sunt fastae” parece uma forma errada de “haec sunt fasti”, “estas foram as festividades”, mas mesmo isso soa meio sem sentido no contexto. “Amber Rivers” é a escritora Amélie Rives, falecida em 15 de junho de 1945, cujo obituário foi publicado no New York Times dez dias depois; Grünewald erra o gênero ali. “Mr. Graham” é R. B. Cunningham Graham (1852-1936), escritor escocês, famoso por viajar a cavalo pela América do Sul.

“Lillibullero”: canção que sacaneia os católicos irlandeses, popular na Inglaterra durante a revolução de 1688. Foi usada pela BBC durante a Segunda Guerra. “Adelphi” era um velho hotel na Strand, bombardeado durante a guerra. “Mr. Edwards”: soldado negro que usou uma caixa para improvisar um apoio sobre o qual Pound pudesse escrever quando estava na enfermaria do DTC. Os soldados e prisioneiros eram proibidos de falar com Pound, mas vários ignoravam essa ordem.

“nient’altro”, “[e] nada mais”.

“Tessalônios”: ou Tessalonicenses. O versículo referido (4, 11) diz: “Empenhai a vossa honra em levar vida tranquila, ocupar-vos dos vossos negócios e trabalhar com vossas mãos, conforme as nossas diretrizes”.

“Kuanon, essa pedra…”: no caso, a estátua de pedra de Kuanon.

“χθονια γεα, Μητηρ”, “mundo ínfero, Mãe”. Creio que isso é de Homero, quando Odisseu fala com a mãe morta, Anticleia, no canto XI da Odisseia.

“ΤΙΘΩΝΩΙ”, Títono: troiano, filho de Laomedonte e irmão mais velho de Príamo. Aurora apaixonou-se por ele e pediu a Zeus que lhe concedesse a imortalidade, sem pedir também a juventude eterna. Titono envelheceu tanto que Aurora o trancou num quarto escuro, onde ele acabou por se transformar numa cigarra.

“in coitu inluminatio”, “no coito a luz brilha”: a luz divina é expressa sexualmente.

“ela penteou os cabelos…”: Olga Rudge (1885-1996), amante e companheira de Pound por mais de cinco décadas. Eles tiveram uma filha, Mary de Rachewiltz (1925).

“staria senza più scosse”: do Inferno XXVII, 63, “não mais se moveria”.

“a torre de Ugolino”: Ugolino della Gherardesca (c.1220-1289) tentou tomar o poder em Pisa, mas foi preso e teve os bens confiscados em 1276. Depois, traído pelo arcebispo Ruggieri, ele, os dois filhos e dois netos foram aprisionados na Torre de Gualandi, desde então chamada de Torre Della Fame, pois ali morreram de fome. No Inferno XXXII, 125-132, Dante descreve Ugolino comendo a cabeça de um dos filhos: “dois juntos vi num fosso: parecia / de uma a outra cabeça ser capelo; // e como um pão morde-se na agonia / da fome, um no outro seus dentes meteu / onde o crânio da nuca se inicia”.

“… der Geheimrat”, “o conselheiro privado”; “der im Baluba (…) hat”: “o homem [branco] que em Baluba fez o trovão soar”.

“Monsieur Jean” é o cineasta e poeta Jean Cocteau.

“pouvrette (…) lus”, “pobre e velho, nunca li uma carta” (Villon, Testament, “Ballade pour prier Notre-Dame”).

“magna NUX animae”: supõe-se que “grande noite da alma”, pois Pound escorrega no latim (“nux” é “noz”); mais adiante, ele acertará: “nox animae magna”.

“comes miseriae”, “companhia na miséria” (?). Em seguida, Pound cita vários soldados do DTC. “Dukes” é uma marca da tabaco. A menção aos “presidentes” deve-se ao fato de que vários dos soldados, em especial os negros sulistas, tinham nomes de presidentes dos EUA.

“ac ego in harum”, “eu também no chiqueiro”; “ivi in (…) animae”, “fui ao chiqueiro e vi as almas dos cadáveres”.

“ΘΕΛΓΕIΝ”, infinitivo de “Θελγω”, “enfeitiçar”; “nec benecomata” (da tradução de Andreas Divus da Odisseia), “belas-tranças”, isto é, Circe, referida a seguir como “Kirkê”. A citação em grego no mesmo verso é da Odisseia X, 213, “enfeitiçados por apavorantes fármacos” (no caso, os lobos e leões que circundam a casa de Circe).

“Estudar com as brancas asas do tempo (…) estão na colheita”: traduções de trechos dos Analectos feitas por Pound.

“E al Triedro (…) Luna'”, “E no Triedro, Cunizza / e nenhuma outra: ‘Eu sou a Lua'”.

Atena é descrita como “saeculorum”, “eterna”, e depois via Homero, a deusa “de olhos glaucos”

“C’è il babao(u)”, “Aí está o bicho-papão”; o “pozzeto…” é o “pequeno poço em Tigullio”; “Oedipus (…) magnanimi”, “Édipo, descendente do magnânimo Remo”.

“Mr. Bullington” é provavelmente outro detento do DTC. Ele canta uma velha canção dos anos 1930.

“e durante três meses…”: outro trecho dos Analectos. Alguns versos abaixo, o termo grego significa “brilho, claridade”, ecoando a palavra que o antecede. E “tanka” é uma forma poética japonesa com cinco versos; o primeiro e o terceiro têm cinco sílabas, e os outros, sete.

“Meyer Anselm”, tido como o fundador da Casa dos Rothschild. E aqui tem início outra diatribe antissemita de Pound, incluindo banqueiros, profetas (como Jeremias), xingamentos (“yidd”) e palavras de Jesus sendo distorcidas.

“METATHEMEON…”, “se aqueles que usam uma moeda desistem dela em favor de outra”: segundo Terrell, é um trecho (1275b16) da Política de Aristóteles. Não tive como confirmar.

“e dos Gedichte de Heine”, “e dos poemas de Heine”. Mais adiante, “N.E.P.”, sigla em inglês para “Nova Política Econômica” (da URSS).

“Katholou”, “generalidades”; “hekasta”, “particular(idad)es”.

“Dai Nippon Banzai”, “saúdem o grande Japão”. “Kagekyio” é uma peça nō de um ato sobre uma filha à procura do pai cego. “Kumasaka” é uma peça nō do século XV, na qual o fantasma do personagem-título volta para louvar a bravura daquele que o matou.

“quia impossible est”, “porque é impossível”: citação de Tertuliano, “Credo qui impossible”, ou seja, apenas a fé o sustentará.

“ΚΟΡΗ, ‘ΑΓΛΑΟΣ ‘ΑΛAΟΥ”, “filha, o brilho do homem cego”

Wemyss foi o almirante alemão que, junto com Foch, assinou o armistício da Primeira Guerra em favor dos aliados. Gesell e Lindhauer foram, respectivamente, o ministro das finanças e o ministro da educação da malfadada República Soviética da Baviera, que perdurou de 7 a 16 de abril de 1919. Gesell foi julgado por alta traição e absolvido; Lindhauer foi executado na prisão.

“Pellegrini”: Gianpietro Pellegrini, subsecretário do ministro das finanças na República de Salò. Em 27 de novembro de 1943, Pellegrini disse a Mussolini que iam lhe pagar 125 mil liras por mês como salário de chefe de estado. Mussolini disse que 4 mil liras bastavam, ao que o outro retrucou que ele devia pegar as 125 mil, pois “o dinheiro está lá”.

“Περσεφόνηεια”, Perséfone.

Alfred von Tirpitz (1849-1930), almirante alemão, dizendo à filha que tome cuidado com o charme dos ingleses, com as “ΣΕIPΗNEΣ”, “sereias”, que a cruz da suástica “gira com o sol”, e que o judeu guardará a informação recebida “faute de”, isto é, “por falta de” algo “mais sólido”. “ΧΑΡΙΤEΣ”, “graças”; “nautilis biancastra”, “concha de cor branca” (como a da Vênus de Botticelli); mais abaixo, “tira libeccio”, “sopra o vento sudeste”.

“Europa nec casta Pasiphae”, “Europa nem a casta Pasífae”: Europa, filha de Agenor, rei de Tiro, foi sequestrada por Zeus (que, para tanto, assumiu a forma de um touro); Pasífae, esposa do rei Minos, de Creta, é a mãe do minotauro.

“Arry” é, claro, Aristóteles.

A expressão em grego no verso “Amadas as horas…” é o célebre símile homérico para a aurora, “dedos róseos”.

“Mr. Kettlewell”: John Kettlewell, aluno do St. John’s College, em Oxford, na mesma época (1913) em que Edward, então Príncipe de Gales (e futuro rei Edward VIII), era calouro em Magdalen. “W. Lawrence”/”W.L.”, o irmão caçula de T. E. Lawrence (da Arábia, citado a seguir), teria atropelado o príncipe com sua bicicleta. W. L. convidou Pound para falar sobre poesia no St. John’s College. Lá, Pound teria ouvido Kettlewell dizer a W. L. que era uma pena que este não tivesse matado Edward no tal incidente ciclístico.

“LL. G.”: Lloyd George, primeiro-ministro inglês durante a Primeira Guerra. Compareceu à conferência de Versalhes, onde também esteve o “rãbaixador” francês George Clemenceau. T. E. Lawrence estava na conferência com a delegação árabe. Relutando em falar sobre suas aventuras, ele queria “conversar sobre arte moderna”.

“Snow”: Thomas Collins Snow, professor de língua e literatura inglesa no Jesus College em 1913. Ele declama a “Ode a Anactória”, de Safo: “φαίνε-τ-τ-τ-τττ-αι μοι” (“φαίνεται μοι”), “me parece”.

“l’aer tremare”, “o ar a estremecer”: de um soneto de Cavalcanti.

“O Cão do Paraíso” é um poema de Francis Thompson (1859-1907).

“Siki”: um boxeador dos anos 1920.

A citação em grego é da Odisseia XI, 76, da fala de Elpênor para Odisseu, pedindo que seja enterrado (grifo meu): “Vindouros saibam que eu vivi!”. Ou seja, as gerações por vir, aqueles que virão.

“aram vult nemos”, “o bosque precisa de um altar”.

“joli (…) Malatestiana)”, “um agradável quarto de hora, (na [biblioteca] Malatestiana)”.

“Torquato”: Manlio Torquato Dazzi, diretor da Malatestiana em 1926.

“la Stuarda” é Mary Stuart, rainha da Escócia.

“funge la purezza”, “a luz tênsil se derrama”.

“formato locho”, “em um lugar preparado”: de “Donna mi prega”, canção de Guido Cavalcanti.

“Arachne”: na mitologia grega, a jovem lídia que era uma extraordinária bordadora e foi transformada por Atena em uma aranha.

“ΕΙΚΟΝΕΣ”, “imagens”.

“black Jim”: nos anos 1890, era um funcionário do Hotel Easton, em Nova York, de propriedade da família Weston, da qual Pound era aparentado. O poeta passou algumas temporadas no hotel, que depois se transformou no Ritz-Carlton.

“Mr. Carver”: George Washington Carver (1864-1943), engenheiro agrônomo que convenceu os agricultores do Sul dos EUA a não exaurir o solo com a monocultura de algodão, e descobriu como fazer diversos produtos a partir do amendoim. Pound tentou convencer burocratas italianos a investir em plantações de amendoim (“arachidi”) durante a guerra, a fim de diminuir a escassez de alimentos.

“jato de cristal”: imagem recorrente de manifestação divina. Há uma progressão desde os primeiros cantos, da água para o cristal, o diamante e outras formas.

“nec accidens est (…) est agens”, “não é um atributo (…) é um agente”.

“penugem do cisne” (no original, “swansdown”): citação de “A Celebration of Charis: IV. Her Triumph”, de Ben Jonson (leia AQUI). Essa expressão e “a rosa na poeira de aço” antecipam algo que será musicalmente aprofundado no próximo Canto.

“nós que passamos pelo Letes”: no Hades, como o nome indica, é o rio do esquecimento. No Purgatório XXXI, 91-102, após confessar seus pecados para Beatriz (e desmaiar ao ver o rosto da amada), Dante é banhado no Letes por Matelda, e também bebe da água do rio. É curioso que, no canto seguinte, Pound aluda ao Flegetonte. Ou seja, é como se a contrição e o esquecimento não bastassem; ele ainda precisa ser curado.

Jogo de adiamentos

O quinto capítulo do Ulysses, de James Joyce, parodia o episódio dos lotófagos, parte integrante do canto IX da Odisseia de Homero. Recém-saído de casa, Leopold Bloom palmilha por Dublin enquanto não chega a hora de comparecer ao funeral de um conhecido, Paddy Dignam. Será em torno do enterro de Dignam que vai girar a sombria e esplendorosa descida ao Hades no sexto capítulo do romance. Antes dela, o quinto capítulo traz informações importantes sobre o protagonista e reafirma um modo de apresentar temas e personagens, sempre ao nível da rua, uns esbarrando nos outros, vendo e sendo vistos, incompreendendo e sendo incompreendidos, e o faz com um tom como que contaminado por uma “doença do sono no ar”. No Ulysses, o ócio é a antessala do Hades.

Ao final do capítulo anterior, ainda em casa, depois de preparar e levar o desjejum na cama para a esposa, Molly, e ler uma carta enviada pela filha, Milly, Bloom faz sua visita matinal à latrina. Está à mesa da cozinha quando se sente “pesado, cheio”, e então advém o “doce relaxamento do intestino” que o empurra para a proverbial casinha. Lá, enquanto ele faz o que precisa fazer, continuamos a seguir o fio de seus pensamentos: a mulher, a filha, o outro (Boylan, amante de Molly), o tempo, a morte. Por fim, na “luz clara, de corpo mais leve e mais fresco”, ele retorna ao dia, pronto para se lançar na rua. Sublinhe-se que, na épica negativa joyciana, cada mínima ação e cada mínimo gesto nos levam para um outro patamar da consciência de si e do mundo – mesmo ações e gestos tais como os descritos acima. Óbvio que Bloom, homem comum em meio a outros tantos homens comuns, não é elevado à categoria dos heróis homéricos. Não há anacronismos dessa natureza em Joyce. O que se desvela diante dos nossos olhos é uma regurgitação irônica e um deslocamento paródico, os quais são renovados página após página, capítulo após capítulo, mediante os acontecimentos mais comezinhos que movimentam as vidas dos personagens enquanto eles lutam contra o dia, um dia qualquer, na periferia da Europa, no começo do interminável século XX.

Assim, mais uma vez na rua (antes, no quarto capítulo, ele já havia saído rapidamente a fim de comprar rins para o desjejum), Bloom tem algum tempo livre até o funeral de Dignam. Matar até o tempo antes de encarar a morte. A morte de outrem, bem entendido, mas ainda e sempre morte. Trotando pela cidade, ele se distrai com a vitrine de uma loja de chás, e aqui têm início as alusões ao episódio homérico: seus olhos “inertes”, a mão “com graça lenta”, “as pálpebras derrubadas”, “folhonas preguiçosas pra você ficar boiando por aí”, sem “mexer uma palha o dia inteiro”; “Letargia. Flores do ócio”.

Na Odisseia, conforme adiantamos acima, os lotófagos aparecem em um episódio curto, no começo do canto IX. Graças à ingestão constante da flor de lótus, eles vivem narcotizados, esquecidos de si, do passado, de tudo. No poema, tudo se dá entre os versos 83 e 103 do referido canto. Odisseu desembarca na ilha dos lotófagos e ordena a três de seus companheiros que investiguem o lugar.  Enturmados com os locais e seguindo o seu exemplo, os homens começam a comer a flor de lótus e se esquecem de retornar para junto dos outros, tanto que Odisseu se vê obrigado a arrastá-los até o barco e amarrá-los: “que mais ninguém, comendo lótus, / olvidasse a volta!”.

Bloom não chega a olvidar a volta, mas ainda estamos no início de sua odisseia pedestre. Ele dá uma enorme volta para ir à agência dos correios buscar uma carta endereçada a Henry Flower, pseudônimo que usa para se corresponder com outra mulher, Martha. Ao sair, esbarra em um conhecido, M’Coy. Ansioso para ler a carta, faz de tudo para dispensar o sujeito o mais rápido possível enquanto se distrai com a lúbrica possibilidade de entrever um naco de carne (tornozelo, canela) da desconhecida que, do outro lado da rua, está prestes a subir em uma carruagem: “Olha lá! Olha lá! Seda relance rica meia branca. Olha!”. No entanto, um “pesante bonde grasnando a campainha” obstrui a vista do nosso herói no momento mais crítico.

Depois de se livrar de M’Coy, ele segue caminho. Para numa esquina para ver uns cartazes. Contorna o mesmo abrigo dos cocheiros ao qual retornará várias horas depois. E para junto ao muro da estação para, enfim, ler a tal carta. Dentro, uma flor amarela com pétalas achatadas. “Linguagem das flores. Elas gostam porque ninguém consegue ouvir. Ou um buquê de veneno para nocautear o sujeito.” Embora excitado com a possibilidade, Bloom não cogita conhecer a missivista pessoalmente. As obscenidades trocadas por escrito já lhe parecem suficientes. Após a leitura da carta, ele continua a caminhar. Matando o tempo. Acaba adentrando uma igreja. Filho de pai judeu, incompreende algumas coisas da missa em andamento e se diverte com outras. Aqui e ali, reitera-se a letargia reinante no capítulo: “Boa ideia o latim. Atordoa primeiro”. Deixando a igreja, lembra-se de buscar as encomendas de Molly no boticário. Enquanto espera o farmacêutico localizar a encomenda, cogita ir ao banho turco perto dali e, uma vez lá, quem sabe, masturbar-se, pois vê-se acometido por uma “vontade engraçada”. Compra um sabonete e fica de voltar mais tarde para acertar tudo e pegar as encomendas. Na rua mais uma vez, a caminho do banho, uma ocorrência insólita: um conhecido que atende pela alcunha de Garnizé Lyons pede para dar uma olhada no jornal que ele carrega. Está interessado nas corridas. “Pode ficar”, diz Bloom. “Eu estava justamente indo jogar fora.” Lyons, por sua vez, entende que está recebendo uma dica, que deveria apostar em um cavalo azarão chamado “Jogafora”. Mais uma incompreensão. Mais um mal-entendido. Por fim, Bloom antevê o banho que tomará a seguir:

Ele anteviu seu corpo pálido reclinado nela todo, nu, em ventre cálido, ungido por fragrante sabonete derretido, suave lavado. Viu seu tronco e seus membros marolondulados sustentados, boiando leves para cima, amarelimão: seu umbigo, botão de carne: e viu os negros cachos emaranhados de seu tufo flutuando, flutuantes pelos do caudal em torno do murcho pai de milhares, uma lânguida flor flutuante.

Com o banho, é encerrada a hora morta e cerrada a antessala do Hades. Termina a preparação para o enterro ao mesmo tempo em que chega ao clímax a letargia que, paradoxalmente, anima o capítulo. Não vemos Bloom se banhar, frise-se, mas apenas antevendo o banho. A catábase virá a seguir. Enquanto ela não se inicia, frise-se também que o “murcho pai de milhares” não emprenha ninguém nos estertores do capítulo.

Não será fácil a viagem de Bloom à necrópole, assombrado pelos fantasmas do pai suicida e do filho morto ainda pequeno. Daí a importância dessa hora morta, desse palmilhar ativo na superfície, ativo porque ele circula de um lado a outro da cidade, anda e conversa e observa e fantasia, mas também essencialmente ocioso, de uma indolência que, no limite (ou quando muito), convida à masturbação. No entanto, talvez contaminado pela apatia que se espalha pelo episódio, Bloom não se masturba no banho – e isso é algo de que só saberemos bem mais tarde, no décimo-terceiro capítulo (“Nausícaa”). Em seu ócio, nem mesmo tal alívio ele chega a buscar. Não, não. Ele se resguarda. Tem muito chão a percorrer.

Assim, entre a latrina visitada no final do capítulo anterior e a ida ao cemitério no capítulo posterior, Bloom navega por uma espécie de adiamento insistente. O ócio nessa passagem do Ulysses é uma instância desarmadora. Nela, até mesmo a antevisão do prazer solitário pressupõe o adiamento: ele sente aquela “vontade engraçada” e cogita se masturbar no banho, mas não há qualquer garantia que, no momento oportuno ou planejado (antevisto), o ato seja efetivamente realizado. Como foi dito no parágrafo anterior, nada acontece. E a informação concernente a isso, inclusive ela, é também adiada, postergada para um momento futuro. Não há espaço para ejaculações precoces no jogo de adiamentos proposto por Joyce.

De modo similar, na conversa com M’Coy, a atenção de Bloom se dispersa, vagabundeia, e os olhos dele acabam se voltando para a expectativa de ver algo da mulher do outro lado da rua, aquela que está prestes a subir na carruagem. No entanto, essa expectativa é também frustrada ou, melhor dizendo, adiada – sim, Bloom verá algo de uma mulher, mas só horas depois, quando, não por acaso e instado por outrem, também dará cabo daquela “vontade engraçada” que o acomete no boticário.

Voltando à conversa entre os dois homens, um dos tópicos concerne à morte de Dignam, a cujo funeral M’Coy avisa que talvez não comparecerá. “Será que você podia botar o meu nome lá no enterro?”, ele pede a Bloom. “Eu queria ir, mas pode ser que eu não consiga, sabe”. A desculpa envolve uma possível obrigação profissional, a qual, por sua vez e ironicamente, diz respeito a outro cadáver. Contudo, nós só nos despedimos uma vez dos que partiram. Pobre Dignam.

Em todos esses casos, seja na antevisão do banho, seja na visão frustrada de um naco de carne alheia, seja na notícia de uma provável ausência, percebo o ócio como uma espécie de (não-)evento preparador: para o prazer sexual, para o funeral (e o que ele implica), para o dia que se desenrola e a noite que nos aguarda, inadiável. Na hora morta, é como se Bloom instintivamente se resguardasse para exigências futuras, convocações outras, mais graves e urgentes, talvez, e assim ignorasse as promessas que não lhe dizem respeito (na igreja, por exemplo) e as ausências que lhe parecem irrelevantes. Além disso, embora se incomode com eventos que poderia adiar, mas não impedir (o adultério de Molly), ele não vê sentido em fazer nada a respeito e dá prosseguimento à errância que constitui o livro e se confunde com a vida.

Por fim, talvez seja lícito assinalar o óbvio: a supressão final, não raro abrupta, está sempre à espreita. Pergunte ao pai e ao filho de Bloom. Pergunte a Dignam. Eles não responderão. Em vista disso, tudo se apequena e Bloom opta pelo menor dos males: caminhar em meio aos vivos, ao nível da rua, enquanto for possível.

******

HOMERO. Odisseia. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.
JOYCE, James. Ulysses. Tradução: Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin/Companhia, 2012.

[Imagem: Ulysses (1947, detalhe), de Robert Motherwell.]

No deserto em expansão

Um trecho de VENTO DE QUEIMADA, meu novo romance.
Lançamento em maio, pela Record. Mais informações
AQUI.

No hotel, toma um banho e veste a mesma camiseta, outro jeans, outra jaqueta, depois coloca as roupas usadas em uma sacola plástica que resgata do fundo da mochila. Precisa se livrar delas. Precisa se livrar de tudo. A coisa tão rápida, tão atabalhoada. Um serviço todo errado. E agora outro serviço todo errado. Rápido, atabalhoado. Sim, aquilo trouxe paz. Pensar em Gordon. A primeira vez, todas as vezes subsequentes. Mas, e agora? O que poderia trazer paz agora? Neste exato momento? Não pensar. Não pensar demais. Faça o serviço, disse Gordon. Receba o pagamento. Vá pra casa.
(Deixe essa merda pra trás.)
Pede uma pizza, come duas fatias, espera. Come uma terceira. Onze e cinco da noite quando ligam da recepção.
Alô?… Sim, deixa subir.
Ela se levanta, entreabre a porta, depois volta a se sentar na cama. Olha para a pistola sobre o criado-mudo, ao alcance da mão direita. Visível. É bom que esteja visível. Evita mal-entendidos. Ou trata de acelerá-los. Seja como for, é o melhor que pode fazer na situação atual.
Duas leves batidas na porta.
Entra.
Dois homens. Parecem os mesmos que estavam na porteira da chácara horas antes, mas pode estar enganada. Peões. São todos mais ou menos iguais. São todos peões. Ela também. De certa forma. E o pai. Peões. Como aquele que ajudou a matar no Abaporu. Não. Quem matou foi a Elizete, eu só castrei. Calibre 22. Mas parecem os mesmos, sim. Estômago, bagos, merda. Com roupas limpas agora, botinas engraxadas, perfumados. Um deles usa chapéu de vaqueiro, não um chapéu qualquer, parece caro, um artigo de luxo, e segura uma sacola preta. O outro, barbudo e gordo, entra no banheiro e começa a mijar.
Ou!, diz o primeiro, tirando o chapéu. Cê podia fechar a porta pelo menos, disgraçado.
Eu, hein, diz Isabel, impassível. Não esperava uma coisa dessas do Bud Spencer.
Hein?
Aôôôô, é a resposta que vem do banheiro, alguém sinceramente maravilhado com a potência do próprio mijo.
Desculpa ele aí, moça.
Sem problema.
Tem gente que não tem educação.
Podia ser pior.
Como assim?
Pelo menos ele não foi cagar.
O homem solta uma risadinha, concordando, e dá dois passos à frente. Olha para a pequena televisão ligada, depois aponta para a pistola sobre o criado-mudo, ao alcance da mão direita dela. Tinha necessidade disso, não.
O som da descarga.
Tinha necessidade nenhuma disso, ele insiste, voltando os olhos para a televisão.
Isabel não diz nada.
Cê viu A Super Máquina mais cedo?
Silêncio.
Acho que ia estrear hoje. Queria ver aquilo.
O barbudo sai do banheiro, subindo a braguilha. Av’Maria, tava apertado demais da conta, sô.
Falei pra ir aquela hora, mas cê é teimoso.
Eu não tava com vontade aquela hora.
Mas é claro que ia ficar depois por causa das cerveja. Melhor mijar por precaução.
Mijar por precaução. Essa é boa.
O outro suspira, recolocando o chapéu na cabeça, e estende a sacola preta para Isabel. Tá tudo aí dentro, viu? Endereço, chave do carro, foto, ferramenta. Tudim.
A gente vai levar o Corcel agora, diz o barbudo, coçando o saco.
Ferramenta?
É essa aí?, aponta para a chave que está sobre o criado-mudo, ao lado da pistola.
Isabel concorda com a cabeça.
O barbudo pega a chave e entrega para o parceiro, que a coloca no bolso da jaqueta e diz: A gente trouxe uma procê com silenciador.
Melhor usar ela, diz o barbudo.
Taí dentro. Depois deixa tudo lá com o Chiquinho.
O barbudo olha para ela, sorrindo. Melhor usar ela que essa outra aí. Ninguém quer fazer barulho de noitão.
A moça tem quarenta e oito hora, diz o outro, repentinamente sério, como se quisesse encerrar logo a conversa. Domingo e segunda ele costuma ficar no endereço que a gente anotou no verso aí da foto.
Ele usa o apartamento pra comer gente. Aproveita que a muié vai quase todo fim de semana pra roça e fica nesse apartamento co’as menina.
A muié costuma voltar na terça de manhã.
Ele diz que aproveita o fim de semana pra trabaiá, mas não trabaia, não, só fica comendo as menina mesmo.
Um bando de menina novinha.
Por esses dia tem uma menina que chega mais cedo, mas tem outra que só chega ou devia chegar lá pra meia-noite.
Ela mente pros pai, tem base?
Sai de fininho.
Mentia, né. Saía.
E devia chegar porque não vai aparecer hoje, não.
Nem amanhã.
Num vai aparecer mais.
Eles gargalham, olhando um para o outro, como se o fato de a menina não aparecer fosse a coisa mais engraçada do mundo.
Se não conseguir pegar ele no apartamento, diz o barbudo, o endereço da casa também tá aí, mas lá ia ser bem mais complicado.
Muié, criança, um monte de empregado.
Melhor dar um jeito de pegar ele aqui no centro mesmo, moça, hoje ou amanhã.
É um desses prédio baixinho ali pra cima, na Anhanguera mesmo, perto do teatro. Tem pouco apartamento ocupado.
Prédio véi, sem porteiro.
O safado escolheu o lugar direitim.
É.
Pra comer as menina em paz.
A chave da portaria taí dentro.
Tá tudo aí.
A moça não vai ter pobrema.
Depois que terminar, leva o carro lá pro Chiquinho.
Deixa tudo com ele.
É. Quer perguntar alguma coisa?
Ela engole em seco. E o meu pai?
Uai. Saudável.
Tava bebendo com o patrão e vendo TV quando a gente saiu de lá. Eles ia ver a Super Máquina.
Mais saudável que nós aqui.
A moça faz o que tem que fazer, depois liga dum orelhão pro número anotado aí no verso da foto.
Liga, volta pra cá e espera.
A gente ou outra pessoa vem e traz o pagamento.
A gente ou outra pessoa vai ficar de sobreaviso, o barbudo bate uma continência torta.
O carro é um Oggi.
Oggi?, ela pergunta.
É, um Oggi pretim.
O Voyage gasta menos na cidade.
É verdade, diz o barbudo, cutucando o outro. Cê sabia? Li isso na Quatro Roda.
Grandes bosta. O carro tá no estacionamento do hotel, moça. Cê precisa de mais alguma coisa?
Balança a cabeça: não.
Boa sorte, então.
Fica com Deus.
Eles dão meia-volta e saem, fechando a porta, o barbudo ainda falando sobre a matéria na Quatro Rodas: Mas escuta, o Voyage faz quase dez quilômetro por litro na cidade, e tem o câmbio longo, a quarta marcha dele…
Ela olha para a sacola preta que segura no colo. Fica com Deus. Fica com Deus é o caralho, vai tomar no cu.
E decide não esperar.
Abre a sacola. Não havia necessidade da foto, bastava dizer o nome do alvo e onde e quando encontrá-lo. Um filho da puta famoso, que merda. Ela memoriza o endereço e o número do telefone, depois rasga a foto, vai ao banheiro, joga na privada e dá a descarga. Observa que o barbudo, pelo menos, não mijou fora do vaso. De volta ao quarto, tira a chave do carro, a arma e o silenciador de dentro da sacola. Parece tudo em ordem. Taurus PT92. Tenho uma igual. A “filha” da Beretta 92. Uma cópia, na verdade. Deus abençoe a indústria nacional. O petróleo é nosso, e o fogo também. Pente carregado. A Beretta foi arma com que aprendeu a atirar. Uma delas, pelo menos. Enrosca e desenrosca o silenciador. Sim, tudo em ordem. É raro que usem silenciadores, ela e o pai, ela ou o pai. Em geral, a ideia é fazer barulho. Ou, na verdade, dada a natureza da maioria dos serviços executados, o barulho é irrelevante. Como na birosca horas antes. Poeira. Fumaça. Uma prega inflamada dos cus de Goiás. Ou naquele posto em Frutal. Três e pouco da manhã. Noite feia. Chuva forte a caminho. Respira fundo e coloca tudo na mochila, inclusive a SIG que a acompanha desde cedo. Não esperar. A gente ou outra pessoa vai ficar de sobreaviso. Grandes bosta. Boa sorte, então.
Fica com Deus é o caralho, diz antes de sair.
Onze e cinquenta e dois quando dirige pela Anhanguera. O ideal seria apenas fazer um reconhecimento. Sacar o lugar. Dar uma boa olhada.
Foda-se.
Agora, pensa não em Gordon ou no pai, mas na menina que só chega ou devia chegar por volta da meia-noite. Eu sou essa menina. Hoje, agora. Acelera para cruzar a Goiás. Deserto. Uma rua após a outra. Lá está. Teatro Goiânia. Dobra à esquerda, cortando transversalmente a Araguaia (o lado direito do manto da Santa) (supostamente), e estaciona na rua 23. Desliga o carro. O teatro às escuras. Onze e cinquenta e cinco. Imóvel por alguns segundos, as duas mãos no volante. Ninguém por perto. O centro, esse ermo. Deserto em expansão, o fora pulsando no escuro — aqui.
Agora, porra.
Alcança a mochila que está no banco ao lado, pega o boné (não aquele com que foi presenteada), coloca, pega a Taurus, checa outra vez, enrosca o silenciador, recoloca na mochila e sai do carro.
Vento frio. Cidade morta.
Segue pela calçada. O prédio logo após a esquina. Consultório odontológico. Uma loja de colchões.
Aqui.
Olha para a direita, depois para a esquerda: ninguém, nada. Cidade morta. Pega a chave no bolso da jaqueta. Será que era a tal menina? Destranca a porta. Na chácara, de topless, jogando conversa fora com a mulher do Velho? Entra. A menina que não vai aparecer mais. Uma lâmpada falha no teto, prestes a queimar. Provável que sim, mas.
(Presta atenção.)
Pega a arma, respira fundo outra vez, ajeita a mochila nas costas e sobe até o segundo andar.
(Presta atenção no que tem que fazer, caralho.)
Tudo escuro, tudo silencioso, exceto pelo zumbido baixo de uma ou outra televisão ligada, poucas.
(Aqui.)
Para diante da porta. Música em volume baixo rolando lá dentro.

I know it’s late, I know you’re weary
I know your plans don’t include me.

Sorri ao tocar a campainha. Passado um instantezinho, o som da chave girando na fechadura.

Why should we worry?…

O sorridente homem de meia-idade que surge à porta segura um copo americano com cerveja pela metade e ostenta uma cueca amarela e um princípio de ereção, botas de couro preto, um chapéu marrom enfiado na cabeça, a pança inchada como a de uma criança com esquistossomose e uma grossa corrente (com o indefectível crucifixo de ouro) pendurada no pescoço. Um feixe de luz vem de um cômodo próximo, à esquerda dele; o quarto, provavelmente.
Opaaaa, estala a língua, depois tenta firmar as vistas. Uai, menina, cê veio disfarçada, e esse bonezim, quê q
O primeiro tiro acerta bem no meio da arcada superior, o quadro (Sagrado Coração de Jesus) pendurado atrás dele e a parede tingidos de vermelho por um borrifo grosso e escuro em que se misturam massa encefálica e lascas de crânio e estilhaços de dentes.
O copo se quebra ao cair: ploft.
Cheiro de cerveja.
Ela atira outras três vezes, no rosto e na testa e no alto da cabeça, acompanhando a descida do corpo, costas contra a parede.

We’ve got tonight
Who needs tomorrow?

Antes que a bunda dele chegue ao chão, Isabel levanta a cabeça, dá meia-volta e desce as escadas com rapidez, mas sem correr, guardando a arma na mochila. Quando está prestes a ganhar a rua, ouve um berro ecoando desde o segundo andar. Estridente. Essa também não vai aparecer nunca mais, pensa.

 

Limpeza e sujidade

Artigo publicado n’O Popular em 07.03.2023.

Que tal essa ideia de “editar” A Fantástica Fábrica de Chocolate e outros livros de Roald Dahl e os romances de Ian Fleming protagonizados por James Bond. Os editores estão limpando os textos de quaisquer termos e expressões ofensivos. No caso de Dahl, por exemplo, também serão extirpadas referências desairosas à aparência e ao peso de alguns personagens. Sobre Fleming, a piada que circulava nas redes sociais é que, se forem mesmo eliminar tudo o que há de malsoante neles, os romances de Bond serão transformados em contos.

Brincadeiras à parte, o precedente aberto por esse tipo de decisão editorial é o pior possível. Existem várias maneiras de lidar com os pendores racistas, misóginos, homofóbicos e/ou gordofóbicos dos autores e autoras de antanho. Retocar ou “editar” os textos não deveria ser uma delas. Não se mexe em texto de ninguém dessa forma, ainda mais em se tratando de gente morta. Para contextualizar, informar, preparar e alertar os leitores contemporâneos sobre quaisquer ruídos e potenciais ofensas, os editores têm à sua disposição ferramentas como prefácios, introduções, notas de rodapé, posfácios e o diabo a quatro.

Contextualizar não é o mesmo que relevar ou desculpar o que há de inaceitável em determinadas obras e pessoas. Muitos autores geniais também foram seres humanos detestáveis. Submetê-los a um banho forçado nessa espécie de lava-rápido moralizador é falseá-los, transformá-los em algo diferente do que foram, em artistas mais palatáveis para a sensibilidade contemporânea. É criar uma mentira em vez de encarar e discutir todos esses problemas.

Acredito que o contato com as obras clássicas tais como elas são auxilia no desenvolvimento de uma relação crítica com a literatura, com o mundo e consigo mesmo. A ideia de alterá-las é condescendente e paternalista, pois impede que os novos leitores lidem com conflitos e contradições vitais ao desenvolvimento daquela relação crítica. Ler Os Cantos sabendo que Ezra Pound, além de antissemita, foi um militante fascista e apoiador de Mussolini. Estudar Heidegger ciente de seu apoio pontual ao regime hitlerista e do quanto isso contaminou ou não sua filosofia. Ver O Nascimento de uma Nação sabendo que D. W. Griffith criou a gramática do cinema moderno, mas também foi um racista que encarou (e filmou) os animais terroristas da Ku Klux Klan como heróis.

Aos que não conseguem fazer tal esforço, há outras coisas a serem lidas, estudadas e vistas. Mas é preciso ter consciência da importância dessas obras, por piores que tenham sido seus criadores. O cancelamento e a faxina stalinista não são o caminho.

Em uma entrevista ao podcast Foro de Teresina, o escritor Marcelo Rubens Paiva contou ter feito esse serviço de desbaste para a nova edição de Feliz Ano Velho. Não sei o que resultou, mas, em princípio, acho terrível, mesmo que seja o próprio autor a manusear a tesoura. O romance é um registro vívido de uma época, quando as pessoas agiam de tais e tais formas e se expressavam de tais e tais maneiras. Temo que, em sua nova roupagem, Feliz Ano Velho tenha se tornado o registro de um autor sessentão com cagaço de ser cancelado. Espero que não seja o caso. Mas não custa lembrar que: 1) o autor sempre está nu; 2) cedo ou tarde, todos seremos cancelados — ajamos de acordo.

 

A primeira estrela paira entre seus pés

Hoje, 28 de fevereiro de 2023, O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, completa cinquenta anos de sua publicação. Eu me lembro do dia em que nos conhecemos.

Em 27 de dezembro de 2004, uma segunda-feira, eu estava em Goiânia. Escrevia sobre as estreias de cinema para um site local e, como morasse no interior, ia à capital uma vez por semana assistir aos filmes recém-lançados. Não recebia nada para fazer isso. Ganhava alguns trocados lecionando na rede pública, mas era dezembro e eu estava de férias. Na mochila, um caderno repleto de rascunhos do que viria a ser Hoje está um dia morto.

Não lembro quais filmes vi naquela semana. Poderia pesquisar, descobrir o que estreara por aqueles dias, escrever um relato detalhado, mas a verdade é que isso não importa. O que importa é que, na rodoviária de Goiânia, naquela segunda-feira abafada, mormacenta, eu me deparei com uma liquidação na Livraria Nobel e com um exemplar d’O Arco-Íris da Gravidade com 50% de desconto.

Eu nunca ouvira falar de Thomas Pynchon, mas apreciava calhamaços. Questões financeiras. Como ganhasse pouco, não podia comprar muitos livros. Volumes longos são mais caros, mas duram mais, por assim dizer. Isso sempre facilitava as minhas escolhas nas livrarias e sebos. Ulisses em vez d’O Túnel. Os Buddenbrook em vez de Timbuktu. Os Versos Satânicos em vez d’O Buda do Subúrbio. Glamorama em vez de Rituais. Claro que jamais me esquecia dos deixados para trás. No decorrer da vida, segui o exemplo de John Rambo e voltei para resgatá-los sempre que possível.

A edição brasileira d’O Arco-Íris da Gravidade é muito bonita. Olhei para aquele livro de quase oitocentas páginas. O nome do autor soava bem demais. Paulo Henriques Britto, tradução. Que avião fantasmagórico é esse na capa? “Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compare com essa vez.” Folheei. “Norte é morte.” “Pökler era uma extensão do foguete, muito antes de ele ser construído.” “Num Estado corporativista, é necessário haver um lugar para a inocência e suas inúmeras utilidades.” “As Nacionalidades estão em movimento. É uma grande correnteza sem fronteiras a fluir.” “A estrada forma uma curva pela abertura em ogiva, e perde-se nos prados escuros.” “(…) ainda que às vezes ele pareça estar indo para o lado errado, essa rede de todas as tramas talvez termine por levá-lo à liberdade.” “Onde não há comida, levam-se armas. As armas e a comida estão firmemente associadas na mente governamental desde que existem armas e comida no mundo.” “‘Existem coisas a que se apegar, sim. Ainda que possa parecer o contrário, há algumas coisas que são reais. Realmente.'” “A primeira estrela paira entre seus pés.”

Uau.

Comprei e saí correndo para pegar o ônibus. Os dias seguintes se confundem em minha cabeça. Sei que quase não saí de casa. Comecei a ler e não consegui parar. Queria o livro ao meu lado o tempo inteiro, mesmo quando descansava os olhos e a cabeça. Sonhava com os fantasmas amontoados nos beirais. Sonhava com o esgarçamento do mundo. Ouvia as bombas, sentia o cheiro da carne queimada. Tive um pesadelo em que trepava com uma enfermeira e o meu esperma era Imipolex G. Ela se levantava, limpando a porra que escorria pelas coxas, aquela porra-polímero, e olhava ao redor. Estávamos em um prédio bombardeado, ruínas, sem telhado. Ela roubava a minha mochila e saía correndo pela noite afora. E o livro estava dentro da minha mochila. Eu gritava, desesperado. Acordei gritando. Não. Sim, ufa!: o livro na mesinha de cabeceira. Ali, comigo. No meu quarto. Era como se aquele fosse o último exemplar do mundo, perdê-lo seria insuportável. Precisava cuidar dele.

Paralelamente, impressionado com a voz, as situações, o humor e a obscuridade do livro, comecei a reescrever os meus próprios rascunhos. Acho que não teria terminado Hoje está um dia morto sem ler O Arco-Íris da Gravidade. Acho que não teria me tornado escritor sem ler O Arco-Íris da Gravidade. Pynchon me ofereceu uma noção claríssima de estruturação e sentido. E mostrou que eu podia escrever o que quisesse e como quisesse, desde que fosse consequente, desde que soubesse para onde estava indo, desde que dominasse os elementos com os quais lidava, desde que lançasse mão de cada um deles no momento oportuno e com essa clareza de propósito.

Ao ler as páginas finais, eu sentia como se o romance esfarelasse em minhas mãos. “Tantas coisas têm de ser deixadas para trás agora, tão depressa.” Uma experiência leitora de quase-morte, de Ascensão e Queda, de uma Queda que culmina numa explosão irredentora — mas, antes do fogo, do fim, talvez possamos tocar a pessoa ao lado, ou colocar a mão entre as nossas “próprias pernas frias”, ou ainda cantar uma canção. O narrador pede que acompanhemos a bolinha, e termina o romance com um convite: “Agora todo mundo —”.

Uma experiência leitora de quase-morte, sim, mas também de renascimento.

Aquela época (2004, 2005) trouxe alguns desses momentos definidores, e eu tive muita sorte por encontrar Pynchon e William Faulkner (e reencontrar James Joyce) nesse eterno piquenique à beira da estrada que é a vida de um leitor. Dez anos depois, William Gaddis viria se juntar a nós — o choque necessário em uma encruzilhada barulhenta, enevoada e repleta de acidentes. A gente escolhe as nossas companhias para a vida e somos meio que definidos por elas e pelo que elas também nos trazem. Não me refiro àquela idiotice “inspiracional” das “referências”. É algo muito mais sério, tangível e amoroso. São a ideia e o consolo de ter sempre com quem conversar, mesmo que os caminhos se distanciem ou divirjam, mesmo que as estradas se bifurquem de novo e de novo e de novo, enquanto tudo (não) vai pelos ares.

E assim encontramos “uma Alma em cada pedra da estrada”.

******

Reli O Arco-Íris da Gravidade duas vezes nos últimos dezenove anos. Na segunda dessas oportunidades, escrevi três pequenos ensaios sobre certos aspectos e passagens do romance, AQUI, AQUI (meu predileto) e AQUI.

O hóspede caminha pela casa

Texto publicado n’O Popular em 07.02.2023.

Foram trinta dias de hospedagem. Um mês. Imagino o clima na casa do lutador durante esse período. Imagino o hóspede circulando por ali. Sobrevivendo, ou quase. Exibindo as fraturas expostas. Lambendo as feridas purulentas. Reclamando dos cortes e escoriações. Comendo as próprias entranhas. Trinta dias. Alguns momentos de euforia obliterados por dias e noites intermináveis de medo e torpor. As dezenas de carpideiras lá fora, delirantemente firmes derrota após derrota após derrota. Um mês. Dez vezes setenta e duas horas. Presos naquela escatologia obscena. Na Segunda Vinda abortada de novo e de novo e de novo. Na promessa não cumprida do Retorno.

Trinta dias de hospedagem. Imagino as perorações, a choradeira, os acessos de raiva, as ideias tresloucadas, as piadas de mau gosto, as dores de barriga, a espuma nos cantos da boca, a mitomania, as dores de barriga, o bodum, a gritaria com o mundo, as dores de barriga, a esperança do Retorno, a histeria, as dores de barriga, os tiros pela culatra, as notícias do fracasso, a culpabilização dos comparsas, o medo da cadeia e, claro, as dores de barriga.

Imagino o hóspede no sofá, alta noite, rindo a bandeiras despregadas de um vídeo qualquer, um quadro de programa humorístico a que assiste no celular enquanto o resto da casa tenta, sem sucesso, dormir. Ele gargalha, ele se debate, ele vê e revê o mesmo vídeo até para se certificar de que entendeu mesmo a piada. Quanto mais óbvia, melhor. Quanto mais abjeta, melhor. Ninguém ri como ele. Não àquela hora, pelo menos. E, por certo, não daquelas coisas.

No inverno de seu descontentamento, o comportamento do hóspede é ainda mais errático do que o habitual. Ele é visto diante do espelho, apalpando as bochechas macilentas. Ele é visto no gramado, observando uma fileira de formigas. Ele é visto no quarto, sentado na beirada da cama enquanto a noite cai. Ele é visto a uma janela, mãozinhas para trás, os olhos vazios fitando o muro defronte. Ele é visto diante da geladeira aberta, às três da manhã, comendo os restos frios de uma pizza de pepperoni. Ele é visto lá fora, choramingando com as carpideiras e prometendo uma reação. Ele é visto devorando frango frito em uma lanchonete, cotovelos sobre a mesa, as mãos emporcalhadas de gordura e os lábios finos trabalhando em desacordo com os dentes.

À mesa do desjejum, certa manhã, o hóspede reclama das dores de barriga e afirma sentir saudades de passear de moto com o pessoal. Ninguém diz nada. Ele conta que teve um sonho no qual ascendia aos céus. Como?, alguém pergunta. Montado em uma motocicleta, claro. E sem usar capacete. Ele diz isso e gargalha. Alguém esbarra em uma xícara, que se espatifa no chão. Ainda rindo, o hóspede desvia os olhos para fora. Há nuvens no céu, enrugadas e dispersas. Ele tem a impressão de que o firmamento adquiriu uma coloração esquisita, adoentada, como se fosse muito velho e estivesse prestes a despencar. O sorriso desaparece do rosto do hóspede. Usando termos chulos, ele diz que precisa ir ao banheiro e, com movimentos bruscos, levanta-se da mesa e desaparece casa adentro. Olhando para a cadeira vazia, recém-abandonada, o lutador respira fundo. Está exausto.

“Vento de queimada” – orelhas

 

VENTO DE QUEIMADA, meu novo romance, está chegando às livrarias. Aí vai o texto das orelhas assinado por ninguém menos que Luisa Geisler.

******

“Goiás, DF: nosso velho (centro-)oeste”, isso define Vento de queimada. Um Tarantino tropical, mas não tanto, já que é seco. Seco em linguagem, seco em personagens. Enquanto nos movemos, vamos nos aprofundando no que parece ser um grude, Brasília, Goiânia, a estrada, Silvânia, Santos, o bordel Abaporu. Descobrimos que esse grude é na verdade merda. Como já nos diz Isabel, quanto mais perto da merda melhor. Vento de queimada é a história dessa merda toda.

Acompanhamos Isabel, formada em História e portadora de uma história tão traumática quanto. Transforma outros em história. Acompanhamos o pai, capangas que mijam de porta aberta, o chefe, o meio-que-namorado de Isabel e o outro meio-que-namorado de Isabel. Ao redor deles, na poeira do Goiás e de Brasília, a terra sem lei. Desvendamos o que move os personagens de pouco em pouco. Uma humilhação num filme que envolve um cavalo. Uma vingança. Um desejo de poder, de dinheiro. Um passado obscuro. Uma gravidez indesejada. Uma vontade humana de salvar a própria pele antes de tudo. É difícil saber o que nos salva, Isabel conta. Nada.

Nessa história de personagens que precisam se virar no escuro, nos atemos ao que podemos. A Isabel. A Garcia. A Gordon. Ao velho. A Emanuel. A Clara. Mas a gente sabe que não deveria. Os fragmentos da história começam a se armar num nó que sufoca mais e mais e, na linguagem justa de André de Leones, apertam onde dói de verdade — os testículos.

A violência se monta numa linguagem tão precisa que se sente o fedor, se ouve em cada fala. A violência existe na leitura de um Brasil que é um amontoado de países estrangeiros, uns entrelugares. A violência existe nas pessoas, entrepessoas, não só em suas intenções. Os danos colaterais se abrem mais e mais em diversas direções. Entrelugares, entrepessoas, entreviolências. Os mortos na beira de estrada, as testemunhas indesejadas se centralizam, a ponto de não sabermos como chegamos ao trevo de Silvânia. Mas chegamos.

Luisa Geisler

Chineses e ruínas

 

DA AUTOSSUPRESSÃO DA TEORIA DO CONHECIMENTO
À METAFÍSICA DESCRITIVA DE STRAWSON

Intro.

O percurso a ser percorrido neste texto será dividido em dois movimentos. No primeiro deles, discorrerei sobre a crítica feita por Friedrich Nietzsche à metafísica dogmática e ao projeto kantiano no primeiro capítulo de Para Além de Bem e Mal. A ideia é explicitar como se deu a implosão da teoria do conhecimento naquele contexto histórico-filosófico, ocasionando, dentre outras coisas, o surgimento e o recrudescimento do positivismo e do cientificismo. Em vista dos efeitos de tal implosão (ou “autossupressão”, como afirma Jürgen Habermas em Conhecimento e Interesse), sentidos ainda hoje, tentarei arrastar a discussão pelos cabelos até o século XX, expondo que o abismo aberto pela modernidade nunca foi colmatado, e que, dado o desenrolar das próprias discussões filosóficas, ele talvez seja incontornável. Tal contatação, no entanto, não significa necessariamente a débâcle da filosofia enquanto tal, mas, pelo contrário, talvez possa ser encarada como um indício de sua sobrevivência. Para calçar essa hipótese, usarei como exemplo o projeto de metafísica descritiva concebido pelo filósofo britânico Peter F. Strawson na obra Indivíduos.

Talvez inadvertidamente, e segundo o entendimento supracitado, a ânsia delimitadora kantiana teria resultado no estrangulamento das pretensões filosóficas “maiores”, por assim dizer. As “grandes questões” ainda pairam sobre as cabeças de alguns pensadores, mas não passariam de fantasmagorias desligadas de qualquer possibilidade efetiva de (re)apresentação ou reformulação. O vocabulário metafísico restaria esvaziado, e todas as tentativas de reconstituí-lo esbarrariam nos rumos da filosofia contemporânea, por um lado, e nos limites da linguagem humana, de outro. Tropeçaríamos na intraduzibilidade e/ou inacessibilidade daquelas questões, como que alijados do núcleo inquiridor da filosofia tal como ela era ou foi encarada e exercitada até a modernidade. Nesse contexto, a abordagem de Strawson só seria metafísica (se tanto) em um sentido fraco, restrito, castrado.

A argumentação que procuro desenvolver vai, contudo, em outra direção: de que, não obstante a incontornabilidade do abismo (ou mesmo por causa dela), os esforços de Strawson e de outros pensadores nada têm de “menores” ou vazios; de que também incontornável é o impulso para perseguir tais e tais questões fundamentais, ainda que em registros mais pontuais (ligados à filosofia da linguagem, por exemplo) e/ou modestos (relativamente aos grandes edifícios teóricos outrora erigidos e posteriormente bombardeados); e, por fim, de que a insistência e a sustentação desses esforços acabam por salvaguardar a própria dignidade filosófica.

 

1.Nietzsche contra Kant.

A julgar pelo aforismo 11 de Para Além de Bem e Mal, o despertar do sono dogmático referido por Immanuel Kant[1] foi algo buñueliano. Refiro-me aqui, a título de ilustração, a uma sequência do filme O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972), em que um dos personagens desperta de um sonho para se ver dentro de outro sonho. Haveria, por assim dizer, um encadeamento “dormitivo”, no qual o despertar jamais é alcançado, jamais se efetiva. Ou, nas palavras de Rubens Rodrigues Torres Filho em “A virtus dormitiva de Kant”, “a suspeita de que este despertar é uma ilusão, de que com ele se passa um sono mais profundo, ou se começa a sonhar” (TORRES FILHO, 1987, p. 34). Portanto, o filósofo de Königsberg jamais teria se libertado da modorra que o acometia e à filosofia.

Em seu projeto de reelaboração e radicalização do projeto kantiano operado no livro supracitado, Nietzsche enxerga na resposta à questão “como são possíveis juízos sintéticos a priori?” uma tautologia: “Em virtude de uma faculdade”. Para ele, isso não passaria de “niaiserie allemande”, de uma falsa resposta na qual encontramos uma mera “repetição da pergunta”. Em sendo assim, ele propõe a substituição da inquirição por outra: “por que é preciso a crença em tais juízos?”. No entender de Nietzsche, cujo aforismo é traduzido na íntegra por Torres Filho em “A virtus dormitiva de Kant”, trata-se de

conceber que para fins de conservação da essência de nossa espécie tais juízos têm de ser acreditados como verdadeiros; com o que naturalmente poderiam ainda ser juízos falsos! Ou, para dizê-lo mais claramente, e de modo mais grosseiro e radical: juízos sintéticos a priori não deveriam de modo algum “ser possíveis”, não temos nenhum direito a eles, em nossa boca são puros juízos falsos. Só que, por certo, é preciso a crença em sua verdade, como uma crença de fachada e uma aparência, que faz parte da ótica-de-perspectivas da vida. (Ibid., p. 32-33).

Retomando a citação do primeiro parágrafo, Torres Filho fala em “despertar do sono dogmático para cair no sono tautológico”. Eis aí o enredamento buñueliano, tal como procurei descrevê-lo.

A circularidade da coisa diria respeito ao próprio caráter transcendental da filosofia crítica, pelo qual o sujeito cognoscente, “antes de confiar em seus conhecimentos adquiridos diretamente”, precisa se certificar “das condições do conhecimento que é em princípio possível para ele”; no entanto, de que maneira essa faculdade do conhecimento “poderia ser investigada criticamente, se também essa mesma crítica tem de pretender ser conhecimento?” (HABERMAS, 2011, p. 31)[2]. Hegel tampouco escapou da armadilha, tratando, na verdade, de “aprimorá-la”:

Com Hegel, surge o mal-entendido fatal de que a pretensão que a reflexão racional levanta contra o pensar abstrato do entendimento seria sinônima da usurpação do direito das ciências autônomas por parte de uma filosofia que entra em cena, tanto agora como antes, a título de ciência universal. Já o primeiro golpe de vista sobre o progresso científico, realizado independentemente da filosofia, iria desmascarar essa pretensão, como sempre mal-entendida, considerando-a mera ficção. É sobre isso que se ergue o positivismo. (Ibid., p. 55-56.)

Para Nietzsche, e recorro agora à leitura de Scarlett Marton, o que faltou a Kant foi radicalidade: “Ao impor limites ao conhecimento humano, o ‘chinês de Königsberg’ tornou a moralidade indiscutível, restaurou o mundo suprassensível e reintroduziu sub-repticiamente os objetos da metafísica dogmática” (MARTON, 1990, p. 161). O esforço de extirpar o suprassensível da teoria do conhecimento foi comprometido ou anulado na medida em que o mesmo foi eventualmente readmitido na ética por meio da segunda Crítica. Nesta, é como se o suprassensível entrasse por uma janela lateral do edifício kantiano, janela arrombada com um pé-de-cabra chamado imperativo categórico. E, “ao colocar Deus como objeto de crença, [Kant] abriu espaço para que fosse avaliado enquanto valor moral” (Ibid., p. 163). Em outras palavras, Kant teria substituído um dogmatismo por outro, o que justifica aquela imagem do despertar de um sono (ou de uma “modorra”[3]) para cair nos braços de outro(a).

A fim de ilustrar isso, lanço mão de uma das formulações do imperativo categórico: age apenas segundo a máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 2009, p. 215). Como, por exemplo, jamais mentir: “É, portanto, um mandamento sagrado da razão, que ordena incondicionalmente, não restringido por nenhuma conveniência: [deve-se] ser verídico (honesto) em todas as declarações” (KANT cit. in PUENTE, 2002, p. 73). Em outras palavras, o imperativo categórico comanda que sempre digamos a verdade porque é irracional pressupor que uma mentira qualquer, grande ou pequena, inofensiva[4] ou não, dita por conveniência, possa vir a ser encarada como uma lei universal.

Mais do que isso: na Metafísica dos Costumes, Kant afirma que mentir é uma “rejeição” e uma “destruição da própria dignidade do homem”, e que o mentiroso “tem um valor ainda menor do que se fosse simplesmente uma coisa” (KANT, 2011, p. 358-9). Ou seja, o indivíduo deprimido que, diante de estranhos, procura esconder sua condição (como no exemplo abaixo, na nota 4), ou um policial disfarçado que mente para o chefe de um cartel de drogas a fim de se proteger, armar um flagrante e prender o criminoso, bem, eles são ainda menores do que uma coisa, pois rejeitaram e destruíram a própria dignidade do ser humano enquanto tal.

O absolutismo dessa visão filosófica escancara o dogmatismo fundamental que a anima. Levando-se em conta esse escancaramento, talvez nem seja o caso de dizer, como Marton, que os objetos da metafísica dogmática foram reintroduzidos de forma sub-reptícia. A radicalização dessa proposta por Nietzsche, ainda que mire uma “superação”, uma “transvaloração”, é perpetrada mediante a utilização de um mesmo vocabulário, até porque não temos outro. Além disso, será que o uso de expressões e construções hipotéticas (“supondo que”, “parece-me”, “talvez” etc.) chega a camuflar o teor asseverativo de trechos como “Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força — a própria vida é vontade de poder”, “O que é chamado ‘livre-arbítrio’ é, essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer”, “A causa sui [causa de si mesmo] é a maior autocontradição até agora imaginada, uma espécie de violentação e desnatureza lógica” e “Toda a psicologia (…) tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas”?[5]. É difícil ignorar a certeza de alguém que argumenta com um martelo na mão.

Habermas (2011, p. 427) sublinha o fato de que a radicalização empreendida por Nietzsche psicologizou “o nexo de conhecimento e interesse”, convertendo-o “em fundamento de uma dissolução metacrítica do conhecimento em geral”. Com isso, ele concluiu a “autossupressão da teoria do conhecimento” iniciada pelos filósofos idealistas que o antecederam, identificando como inexequível a autorreflexão do sujeito cognoscente, presa na circularidade metacrítica que engendra. Homem de seu tempo, Nietzsche respirou os ares positivistas e também se contaminou.

Abrindo um pequeno parêntese, talvez seja interessante ressaltar a ironia relativa à acusação nietzschiana de falta de radicalidade no pensamento kantiano, pois, nos Prolegômenos, em passagem também referida por Torres Filho (op. cit., p. 37), é exatamente isso que Kant enxerga em Hume, o qual não teria “representado o problema em toda a sua amplidão”, mas “apenas por um lado”, sendo necessário “ir mais longe” do que aquele “a quem se deve a primeira centelha desta luz” (KANT, 2008, p. 17). Nietzsche não parece enxergar centelha alguma na investida kantiana, na tentativa (malograda?) de se firmar um compromisso entre empirismo e racionalismo, e na censura feita tanto ao dogmatismo quanto ao ceticismo — inclusive, como ressalta Torres Filho (op. cit., p. 40), no que percebe ou enxerga como dogmático no próprio ceticismo.

Em se tratando do esforço (de)limitador empreendido na primeira Crítica com relação ao estatuto e aos objetos da metafísica, e dado o recuo ou concessão já citado, procedido na Crítica da Razão Prática pela via da moralidade, talvez não seja exagerado enxergar em Kant aquele que, de fato, filosofou com o martelo: ao inadvertidamente quebrar os joelhos da teoria do conhecimento, o “chinês de Königsberg” abriu caminho para o “mal-entendido” hegeliano e, com isso, para o positivismo e o cientificismo. Mas, tendo em vista a inoperância dos sistemas propostos a seguir, tanto por partidários quanto por opositores do kantismo e do neokantismo, e seja ou não por “culpa” do próprio Kant, é forte a propensão para encarar boa parte dos filósofos surgidos desde então como uma sucessão de “chineses”[6]: o chinês de Rammenau, os chineses de Tübingen, o chinês de Röcken, o chinês da Floresta Negra, os chineses de Frankfurt, e assim por diante. O que uniria essa enorme China filosófica seria a incapacidade de colmatar o abismo aberto nos estertores do século XVIII e ampliado no decorrer do XIX, de superar a deposição (definitiva?) da “rainha”[7].

Em se tratando do chinês de Röcken, dizer ou anunciar a morte de Deus (por exemplo) não leva, por si só, a qualquer superação ou transvaloração. A rigor, não leva sequer a um velório — acaso levasse, é provável que o caixão estivesse vazio.[8] Aqui, abrindo mais um parêntese, lembro do Pai Morto que é arrastado pelos filhos no romance homônimo de Donald Barthelme (itálico do autor):

Morto, mas ainda conosco, ainda conosco, mas morto.
(…)
Nós queremos que o Pai Morto esteja morto. Sentamo-nos com lágrimas nos olhos querendo que o Pai Morto esteja morto — enquanto fazemos coisas fantásticas com as mãos. (BARTHELME, 2015, p. 16-17.)

E mais:

Não gosto disso, disse o Pai Morto.
Do quê?, Julie perguntou. Do que você não gosta, meu querido idoso?
Você estão me matando.
Nós? Nós não. Nós, de maneira alguma. Processos estão matando você, não nós. Processos inexoráveis. (Ibid., p. 216.)

Palmilhando em meio aos estilhaços do idealismo alemão, à carnificina positivista, à subsunção da teoria do conhecimento ao cientificismo, à referida autossupressão da teoria do conhecimento, não é difícil perceber como o vazio deixado por aquela Morte, nos processos instaurados por meio e a partir dela, horrores inúmeros tiveram, têm e terão lugar. Há uma linha reta entre o correr desenfreado das ciências assim divorciadas da teoria do conhecimento, livres de quaisquer fundamentações e anteparos epistemológicos e éticos, e eventos como a Shoah.

Não se trata de lamentar o Falecimento, óbvio. Passado tanto tempo, e conforme demonstrado pelo andamento da própria história da filosofia, o problema que levou àquela autossupressão permanece. Diversos pensadores, como Heidegger e Habermas, tentaram superá-lo com todas as suas forças, caindo em armadilhas outras e/ou esbarrando nos limites impostos pela própria linguagem para significar e ressignificar tais e tais coisas.

Assim, a insistência em se dirigir ao problema talvez seja tão incontornável quanto o abismo aberto por ele. Mas seria um erro encarar isso como uma paralisia. Pois, ainda que os objetivos últimos permaneçam inalcançados (e talvez sejam mesmo inalcançáveis), a filosofia segue lidando com aspectos inescapáveis da vida e do pensamento humanos. A precarização e o eventual “fracasso” desses esforços não podem ser confundidos com uma indignidade, e é isso que tentarei demonstrar a seguir, usando Strawson à guisa de exemplo.

 

2. O chinês de Oxford circula pelas ruínas.

Peter Frederick Strawson (1919-2006) é um caso sui generis no âmbito da filosofia contemporânea. Embora seja identificado com o chamado “grupo de Oxford” e tenha publicado trabalhos importantes no campo da filosofia analítica, dentre os quais se destaca o clássico artigo “On referring” (1950)[9], ele também escreveu um autoproclamado “ensaio de metafísica descritiva” intitulado Indivíduos (1959).

A metafísica descritiva, conforme ele explica na introdução do livro, “contenta-se em descrever a estrutura real do nosso pensamento sobre o mundo”, ao passo que o que chama de “metafísica revisionista” tenta “produzir uma estrutura melhor”. Strawson salienta que nenhum metafísico foi, “tanto em intenção, como de fato, totalmente uma coisa ou a outra”, mas identifica Descartes, Leibniz e Berkeley como “revisionistas”, e Aristóteles e Kant como “descritivistas” (STRAWSON, 2019, p. 13). Em seguida, ele procura distinguir a metafísica descritiva da análise filosófica, lógica ou conceitual, e o faz ressaltando seus âmbito e generalidade, pois ela visa “revelar os aspectos mais gerais da nossa estrutura conceitual”. Tal estrutura não se mostra “na superfície da linguagem de imediato, mas jaz submersa” (Ibid., p. 14). Como se pode observar, Strawson advoga a existência de “um núcleo central maciço do pensamento humano”, o qual

não tem história — ou nenhuma história registrada nas histórias do pensamento; há categorias e conceitos que, no seu caráter mais fundamental, não mudam nada. Obviamente, eles não são as especialidades do pensamento mais refinado. São os lugares-comuns do pensamento menos refinado e são, contudo, o núcleo indispensável do equipamento conceitual dos seres humanos mais sofisticados. É com eles, suas interconexões e a estrutura que formam, que uma metafísica descritiva estará primariamente preocupada. (Ibid., p. 15.)

Essa concepção talvez possa ser identificada por alguns com aquilo que, no aforismo 354 d’A Gaia Ciência, Nietzsche chama de “metafísica do povo”, típica dos “teóricos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gramática” e ancorada em ficções tais como “a oposição entre sujeito e objeto”[10] (NIETZSCHE, 2012a, p. 223). No entanto, ao se concentrar nos pressupostos para a identificação dos particulares (sendo que os objetos materiais seriam os particulares básicos) e nas relações entre universais particulares, Strawson aponta para o mundo, procura dizer algo acerca dele e das maneiras como nos relacionamos com ele:

(…) Nós reinterpretamos a tarefa principal do filósofo (a tarefa metafísica) como a de responder à pergunta: quais são os conceitos e categorias mais gerais que organizam nosso pensamento, nossa experiência, acerca do mundo? E como se relacionam entre si dentro da estrutura total do pensamento? Ao responder a essa questão, respondemos incidentalmente à questão na sua forma mais geral, como realmente concebemos que o mundo é, ou qual é realmente a nossa ontologia básica (a ontologia em atividade). (STRAWSON, 2002, p. 54.)

Essa “ontologia em atividade” é algo que transcende as “malhas da gramática”. Strawson enxerga a ontologia, a epistemologia e a lógica como “três aspectos duma única investigação unificada” (Ibid., p.54).

Embora utilize termos e expressões como “tarefa metafísica” e “ontologia”, ele circula por um ambiente comparativamente bem mais modesto e aferrado à dimensão pragmática da linguagem do que, por exemplo, alguém como Descartes. São “chineses” com pretensões distintas: o francês se propõe a construir toda uma malha ferroviária, ao passo que o britânico se limita a mapear as ferrovias existentes e as paisagens que incidentalmente consegue observar. Enquanto “descritivista”, Strawson não intenta conceber um sistema que revise a nossa estrutura conceitual ou busque criar algo “novo”. Os trilhos já estão colocados.

Reitero: essa postura modesta talvez seja incontornável, dada a implosão da teoria do conhecimento e os rumos tomados pelas ciências não apenas destituídas de qualquer direcionamento filosoficamente consequente, mas, ao que tudo indica, até mesmo infensas a qualquer coisa do tipo. Em um certo sentido, a autossupressão da teoria do conhecimento teve como resultado não a saudável delimitação pretendida por Kant, mas o estrangulamento das pretensões “maiores” da filosofia. Não custa repisar que as tentativas posteriores a Kant de reformulação (por Hegel, Nietzsche, Heidegger e Habermas, por exemplo) não alcançaram o que pretendiam alcançar, mas, sim, ensejaram descarrilhamentos diversos.

No entanto, seria tolice deplorar essas e outras tentativas, bem como os esforços mais modestos (de novo: comparativamente) de “chineses” como Strawson. Há bastante tempo, os pensadores circulam, andrajosos, pelas ruínas dos grandes edifícios filosóficos, os quais eles mesmos, não raro de maneira inadvertida, trataram de implodir. Não há indignidade nisso, não há indignidade nesse palmilhar andrajoso. E temo que não haja como evitá-lo.

Talvez ele seja algo que poderíamos chamar de um impulso — no que o “chinês” de Röcken sorriria — ou, quem sabe, de um destino — no que o “chinês” da Floresta Negra se regozijaria. Aliás, em se tratando deste último, sua expectativa de ecos nietzschianos (na medida em que aponta para a superação das dicotomias) vem a calhar para os rumos da discussão, além de ser um tanto comovedora:

Talvez exista um pensamento fora da distinção entre racional e irracional, mais sóbrio ainda do que a técnica apoiada na ciência, mais sóbrio e por isso à parte, sem a eficácia e, contudo, constituindo uma urgente necessidade provinda dele mesmo. Se perguntarmos pela tarefa deste pensamento, então será questionado primeiro, não apenas este pensamento, mas também o próprio perguntar por ele. (…) (HEIDEGGER, 1979, p. 81.)

Visto por esse lado, isto é, pelo lado da “urgente necessidade provinda dele mesmo [pensamento]”, talvez não haja, afinal, nada de modesto nos esforços metafísico-descritivos de Strawson. Ao mesmo tempo em que sobrevive como pensador, ele não se deixa esmagar sob o peso das grandes questões e tampouco se ocupa de perquirições menores ou marginais. Por tudo isso, a insistência em referir-se a essa “estrutura submersa”, em procurar desvelar a nossa “ontologia básica”, é uma tarefa que nada tem de “grosseira”.

E, mesmo que não seja o caso, mesmo que Strawson não passe de mais um exemplo daquela “raça dura e laboriosa” referida por Nietzsche (2012b, p. 20), a verdade é que não chegaríamos a lugar algum sem “operários” como ele. Há, sim, muito o que ver e apreender por essa via que se coloca explícita e nomeadamente como descritiva, ou seja, não explicativa.

Em suma, ao sustentar o caráter descritivo de sua metafísica (e ao insistir em utilizar o termo em um momento que ele havia sido desterrado do vocabulário filosófico), Strawson acaba por justamente salvaguardar a dignidade filosófica. O que ele busca, na medida do possível e do factível, é a manutenção de uma discussão fundamental. Dada a precariedade do nosso tempo e, a rigor, de qualquer tempo, e não obstante os becos sem-saída com os quais os filósofos se depararam e continuam a se deparar[11], é possível que o sentido esteja em tal manutenção, esteja nesse esforço contínuo de adensamento e clarificação conceituais.

******

NOTAS

[1] No prefácio dos Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência, a célebre admissão de Kant: “Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa” (KANT, 2008, p. 17).

[2] Convém ressaltar que Habermas está, no trecho mencionado, ecoando um argumento sustentado por Hegel no início da Fenomenologia do Espirito. Não por acaso, a seção do livro Conhecimento e Interesse da qual foi retirada a citação se intitula “A crítica de Hegel a Kant: radicalização ou superação da teoria do conhecimento”.

[3] Conforme aponta Torres Filho, o termo usado por Kant na passagem mencionada dos Prolegômenos é “Schlummer”, que também pode ser traduzido como “sono pesado”, “letargia”, “modorra”.

[4] Um exemplo extremo: dois vizinhos se encontram no elevador. Não são amigos ou próximos. Por educação, quase como um reflexo social, um pergunta para o outro: “Tudo bem?”. E esse outro não está nada bem, passa por dificuldades pessoais e profissionais, mas responde: “Tudo ótimo. E com você?”.

[5] NIETZSCHE, 2012b, p. 19, 23, 25, 27.

[6] O teor racista da tirada nietzschiana soa inaceitável para a contemporaneidade, mas, por outro lado, a imagem é boa demais para não ser reaproveitada.

[7] Convém observar que, no prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant já se refere ao status majestático da metafísica como algo já superado (grifos meus): “Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada de rainha de todas as outras” (KANT, 2010, p. 3).

[8] E, mesmo que víssemos ali o tal Cadáver, Nietzsche talvez não pudesse ser chamado de deicida, da mesma forma como não é um homicida alguém que, passeando pela rua, tropeça em um defunto.

[9] O artigo é uma crítica da teoria das descrições definidas de Bertrand Russell. Nele, Strawson distingue entre pressuposição e implicação. Grosso modo, ele institui três dimensões expressivas: sintática (relativa à maneira como as expressões são formadas), semântica (relativa ao significado das expressões) e pragmática (relativa ao uso). O significado de uma expressão linguística é, portanto, representado pelos conjuntos de regras, convenções e hábitos que, por assim dizer, “disciplinam” o seu uso. Há, portanto, uma distinção entre uso e significado: este é algo que atribuímos à expressão de maneira intrínseca; aquele, algo que depende do falante e do contexto da enunciação. Com isso, Strawson afastou a filosofia da linguagem da filosofia da lógica.

[10] A identificação e reidentificação de particulares são cruciais na descrição de Strawson do nosso esquema conceitual. A condição de possibilidade para a identificação dos particulares espaço-temporais é o esquema conceitual, cujas unicidade e singularidade possibilitariam a comunicação, dada a já citada imutabilidade das categorias e conceitos em “seu caráter mais fundamental”.

[11] “Em que círculo movemo-nos e, na verdade, de maneira inevitável?”, pergunta o mesmo Heidegger (Ibid., p. 81).

******

BIBLIOGRAFIA

BARTHELME, Donald. O Pai Morto. Tradução: Daniel Pellizzari. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
HEIDEGGER, Martin. “O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento.” Em Conferências e Escritos Filosóficos. Coleção Os Pensadores. Tradução e notas: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2010.
_______________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Guido Antonio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial; Barcarolla, 2009.
_______________. A Metafísica dos Costumes. Tradução: José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2011.
_______________. Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008.
_______________. “Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens.” Tradução: Theresa Calvet de Magalhães e Fernando Rey Puente. Em PUENTE, Fernando Rey (org.). Os Filósofos e a Mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
MARTON, Scarlett. Nietzsche – Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras (edição de bolso), 2012a.
___________________. Além do Bem e do Mal. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras (edição de bolso), 2012b.
STRAWSON, Peter Frederick. Indivíduos – Um Ensaio de Metafísica Descritiva. Tradução: Plínio Junqueira Smith. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

 

[Imagem: Pablo Palazuelo – Omphale V.]