Canto IV

 

“Troia, só destroços de muralhas fumegantes”: referência às Troianas, de Eurípedes¹, quando, na primeira cena, Posêidon visita a cidade devastada —

Eu, Posêidon, chego após deixar o salgado Egeu,
o fundo do mar, onde coros de Nereidas
desenlaçam do pé o mais belo rastro.
Sim, desde que, ao redor desta terra troiana,
Febo e eu torres de pedra no perímetro
a reta régua erguemos, nunca de meu espírito,
contra a cidade, partiu o afeto por meus frígios;
ela agora fumega e por obra da lança argiva
está em ruínas, saqueada. (…)

ANAXIFORMINGES, “soberanos da lira”. Do início da Ode Olímpica II, de Píndaro²: “Hinos, soberanos da lira, / que deus, que herói, que homem celebraremos?”. “Aurunculeia” é a noiva no poema LXI de Catulo, um epithalamium (poema nupcial) feito a partir de outro, de Safo (tradução, citação, inspiração, talvez todas essas coisas ao mesmo, mas não temos como saber porque o poema de Safo se perdeu).

“Cadmo das Proas de Ouro”: já citado no Canto II, Cadmo é o fundador mítico de Tebas. Ver Ovídio, Metamorfoses III, 1-137.

“Choros nympharum”, “coro de ninfas”; “patas de cabra”, dos faunos dançando com as ninfas (eles também aparecem no Canto II).

“Um galo negro canta lá na escuma”: premonição relativa às paixões destrutivas associadas a Afrodite, como a que será rememorada a seguir.

O “velho sentado” é Pândion I, rei mitológico de Atenas, pai de Procne e Filomela. Ityn (ou Ítis) é o filho de Tereu, rei da Trácia, e Procne. Em visita à irmã, Filomela é estuprada por Tereu; para que ela não denuncie o crime, ele corta a língua de Filomela ( a “língua jaz por terra e murmura / sobre a terra negra enquanto estremece”) e a aprisiona num estábulo na floresta (onde continua a estuprá-la no decorrer do ano seguinte), dizendo a Procne que sua irmã está morta; Filomela tece um tapete no qual denuncia o crime e faz com que seja entregue a Procne; esta, aproveitando as festas de Baco, resgata Filomela e, juntas, partem para a vingança: matam e esquartejam Ítis, cozinham uma parte, assam outra, e servem a Tereu, que enche “o estômago com sua própria carne”. Quando Tereu descobre o que houve e tenta matá-las, Procne se transforma em andorinha e Filomela, em rouxinol, as “marcas do assassinato não lhe desapareceram / do peito”, pois “sua plumagem ostenta sinais de sangue”. Tereu, por fim, transforma-se em poupa. Ver Ovídio, Metamorfoses VI, 412-674.

“Et ter flebiliter, Ityn”, “E três vezes, lamentavelmente, Ítis”. Pound revolve Horácio, “Ityn flebiliter gemens” — “Em pranto gemendo por Ítis faz o ninho / a infeliz ave que, por ter se vingado em funesta hora / da bárbara devassidão de um rei, a eterna vergonha / da casa de Cécrops se tornou” (grifo meu). É a segunda estrofe da Ode IV, 12.³

Cabestan: Guillem de Cabestany (1162-1212) foi um trovador provençal. Apaixonado por Seremonda, esposa de Raimond, Conde de Roussilon, foi assassinado por este, que lhe arrancou o coração e obrigou Seremonda a comer. O “velho sentado” também pode se referir ao Conde de Roussilon, portanto, e não apenas a Pândion.

Actéon, neto de Cadmo, acidentalmente viu Diana (Ártemis) se banhando em Gargáfia e foi por ela transformado em veado. V. Metamorfoses III, 138-250. Pound sugere que Actéon sequer viu o corpo nu da deusa, mas apenas a cabeça: “Ninfas em branco cerco à volta dela”, “Ouro, ouro, um feixa de cabelos”. Actéon ainda foi perseguido pelos próprios cachorros.

Peire Vidal de Toulouse (c.1175-1215) foi outro trovador provençal. Apaixonado pela Loba de Penautier (uma lobanil), vestiu-se com pele de lobo e passou a vagar pelas florestas. Quase foi morto por caçadores, salvo pela própria Loba e seu marido, que cuidaram dele e passaram a recebê-lo em sua corte. V. Piere Vidal Old, do próprio Pound.

Pergusa é o lago siciliano em cujas proximidades Hades sequestrou Perséfone (v. Canto III). Sálmacis é uma ninfa que, tentando seduzir o filho de Hermes e Afrodite (Hermafrodito) enquanto ele se banhava em sua fonte, fez com que ele se transformasse em hermafrodita. V. Metamorfoses IV, 285-388.

A “armadura vazia” e “o pequeno cisne” também remetem a Ovídio. Nas Metamorfoses (XII, 64-145), narra-se o encontro entre Aquiles e Cicno, filho de Posêidon, em lados opostos na Guerra de Troia. Aquiles estrangula Cicno, mas, ao retirar o capacete, vê que a armadura está vazia — Posêidon transformara o filho em um cisne.

“… e lo soleils plovil“, “o sol chove”. Verso de “Lancan son passat li giure”, poema de Arnaut Daniel.

A passagem seguinte contém referências às peças Tamura Takasago. O verso “sob os joelhos dos deuses” sugere um templo sob o qual corre um riacho que transforma a luz do sol em meio à chuva (“o sol chove”, “tênue luzir da água”) em “cristal líquido”. Em Tamura, há um templo dedicado a Kuanon, a deusa budista da misericórdia, e o zelador varre as folhas de cerejeira que caíram no jardim; esta cena remete a Takasago, em que um sacerdote errante se depara com duas pessoas velhas e enigmáticas varrendo agulhas de pinheiro sob uma antiga árvore sagrada. Leia Tamura (em inglês) clicando AQUI, e Takasago, AQUI.

Os “pinheiros de Isé” (outra referência a Tamura) estão repletos de espíritos malignos, os quais são destruídos pelas flechas luminosas de Kuanon: “Pontas de galhos fendidos, / Flamejando como lótus, / Camada sobre camada / O ralo fluindo em redemunho / sob os joelhos dos deuses”. Há um paralelo com a Guerra de Troia, e encontraremos outra menção aos pinheiros de Isé no Canto XXI.

Pound visitou Rhodez e Gourdon, cidades no sul da França, em 1912.

“Sândalo de açafrão” é uma referência do já citado epithalamium de Catulo (LXI). “Hymenaeus Io!…” é a invocação de Himeneu, deus do casamento, feita por Catulo no casamento de Manlius e Aurunculeia.

Sô-Gioku é o nome japonês do poeta Song Yu (c.319-298 a.C.), chinês, que trabalhou na corte do rei Xiang (Hsiang), de Chu. Yu escrevia em um gênero chamado fu, que misturava verso e prosa na forma de diálogos, e é atribuída a ele uma composição intitulada Feng Fu, “Rapsódia sobre o vento”. Pound inverte as coisas nesse trecho (“Nenhum vento é o vento do monarca”), pois, no original, o poeta não tem dificuldades para convencer o rei de que o vento pertence a ele. Note-se que, não obstante o tom lisonjeiro da “Rapsódia”, Yu nunca foi valorizado pelo rei, que o menosprezava.

Heródoto nos conta que Ecbátana foi uma cidade fundada pelo medo Deioces no século VII a.C. (o paralelo é com a Tebas de Cadmo). Há quem afirme que Ecbátana seja a atual Hamadan, no Irã.

Danaë (ou Dânae), filha de Acrísio, rei de Argos, e Eurídice. Acrísio, ao ouvir do Oráculo de Delfos que seria assassinado pelo próprio neto, aprisionou a filha em uma câmara de bronze. Zeus, assumindo a forma de uma chuva de ouro, penetrou no lugar e engravidou Danaë, cujo filho, Perseu, viria mesmo a matar o avô, cumprindo o vaticínio oracular.

“A fumaça adere ao rio (…) / Postes de pedra cinza conduzindo…”: esses versos ecoam os de um poema de Wang Wei, “A jornada das flores de pessegueiro”. Neste, inspirado em um antigo conto folclórico, um pescador encontra um reino mágico no qual as pessoas vivem despreocupadas, ignorando a política e a guerra. Mas, depois, o pescador não consegue voltar para casa, pois a paisagem está inteiramente modificada. Wang se refere aos habitantes desse reino oculto como “sennin”, “imortais”. Por meio desse termo, na estrofe seguinte, Pound conecta o poema de Wei com a sua já citada viagem a Rhodez, em 1912.

O Conde de Polhonac cantou uma canção do trovador Guillaume de St. Leidier para a esposa e, assim, inadvertidamente, ajudou o poeta a seduzi-la. Essa história se liga à da ascensão de Gyges ao poder na Lídia: amigo do então monarca Candaules, assistiu (depois de muita insistência do próprio rei) à rainha se despindo antes de dormir. Depois, ela o forçou a escolher entre matar o rei e tomar seu lugar, tomando-a como esposa, ou morrer. Gyges, claro, optou pela primeira opção.

Garona (Garonne) é um rio que corta a cidade de Toulouse. Pound ficou no sul da França entre abril e agosto de 1919. A procissão de salve Regina foi acompanhada por ele em Toulouse. Ádige é o rio que corta Verona, e assim passamos ao cenário seguinte.

“Stefano, Madonna in hortulo”: no caso, Pound gostava de associar a Madonna de Orsanmichele (Florença) com a tela Madonna in Hortulo, ou Madonna del Roseto, de Stefano da Verona (c.1379-c.1438), que ilustra esta página. Guido Cavalcanti contemplava a Madonna de Orsanmichele porque ela o remetia ao rosto de sua amada (essa pintura foi destruída em um incêndio em 1304 e substituída por outra, de Bernardo Daddi).

“A poesia é um Centauro”, teria dito Pound.

“E nós sentamos aqui… / lá na arena…”: esse desfecho foi acrescentado por Pound em 1923, e é uma alusão ao encontro dele com Eliot em Verona no ano anterior. A Arena de Verona se tornará um leitmotiv n’Os Cantos (XII, XXI, LXXVIII, LXXX e XCI), e o encontro com Eliot será referido explicitamente no XXIX.

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¹ Em Duas Tragédias Gregas: ‘Hécuba’ e ‘Troianas’. Tradução: Christian Werner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
² Na tradução de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. As Odes Olímpicas de Píndaro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
³ Horácio, Odes. Tradução: Pedro Braga Falcão. São Paulo: Editora 34, 2021.