Limpeza e sujidade

Artigo publicado n’O Popular em 07.03.2023.

Que tal essa ideia de “editar” A Fantástica Fábrica de Chocolate e outros livros de Roald Dahl e os romances de Ian Fleming protagonizados por James Bond. Os editores estão limpando os textos de quaisquer termos e expressões ofensivos. No caso de Dahl, por exemplo, também serão extirpadas referências desairosas à aparência e ao peso de alguns personagens. Sobre Fleming, a piada que circulava nas redes sociais é que, se forem mesmo eliminar tudo o que há de malsoante neles, os romances de Bond serão transformados em contos.

Brincadeiras à parte, o precedente aberto por esse tipo de decisão editorial é o pior possível. Existem várias maneiras de lidar com os pendores racistas, misóginos, homofóbicos e/ou gordofóbicos dos autores e autoras de antanho. Retocar ou “editar” os textos não deveria ser uma delas. Não se mexe em texto de ninguém dessa forma, ainda mais em se tratando de gente morta. Para contextualizar, informar, preparar e alertar os leitores contemporâneos sobre quaisquer ruídos e potenciais ofensas, os editores têm à sua disposição ferramentas como prefácios, introduções, notas de rodapé, posfácios e o diabo a quatro.

Contextualizar não é o mesmo que relevar ou desculpar o que há de inaceitável em determinadas obras e pessoas. Muitos autores geniais também foram seres humanos detestáveis. Submetê-los a um banho forçado nessa espécie de lava-rápido moralizador é falseá-los, transformá-los em algo diferente do que foram, em artistas mais palatáveis para a sensibilidade contemporânea. É criar uma mentira em vez de encarar e discutir todos esses problemas.

Acredito que o contato com as obras clássicas tais como elas são auxilia no desenvolvimento de uma relação crítica com a literatura, com o mundo e consigo mesmo. A ideia de alterá-las é condescendente e paternalista, pois impede que os novos leitores lidem com conflitos e contradições vitais ao desenvolvimento daquela relação crítica. Ler Os Cantos sabendo que Ezra Pound, além de antissemita, foi um militante fascista e apoiador de Mussolini. Estudar Heidegger ciente de seu apoio pontual ao regime hitlerista e do quanto isso contaminou ou não sua filosofia. Ver O Nascimento de uma Nação sabendo que D. W. Griffith criou a gramática do cinema moderno, mas também foi um racista que encarou (e filmou) os animais terroristas da Ku Klux Klan como heróis.

Aos que não conseguem fazer tal esforço, há outras coisas a serem lidas, estudadas e vistas. Mas é preciso ter consciência da importância dessas obras, por piores que tenham sido seus criadores. O cancelamento e a faxina stalinista não são o caminho.

Em uma entrevista ao podcast Foro de Teresina, o escritor Marcelo Rubens Paiva contou ter feito esse serviço de desbaste para a nova edição de Feliz Ano Velho. Não sei o que resultou, mas, em princípio, acho terrível, mesmo que seja o próprio autor a manusear a tesoura. O romance é um registro vívido de uma época, quando as pessoas agiam de tais e tais formas e se expressavam de tais e tais maneiras. Temo que, em sua nova roupagem, Feliz Ano Velho tenha se tornado o registro de um autor sessentão com cagaço de ser cancelado. Espero que não seja o caso. Mas não custa lembrar que: 1) o autor sempre está nu; 2) cedo ou tarde, todos seremos cancelados — ajamos de acordo.