Canto LI

Canto LI

“Quinto elemento: lama”: observação que Napoleão teria feito na Polônia, ao retornar da campanha na Rússia — “Dieu, outre l’eau, l’air, la terre et le feu a crée une cinquième element, la boue”.

“Com usura (…) rebanho”: variação dos versos do Canto XLV, usando uma dicção moderna.

Para escrever os versos seguintes, com as referências às aves, Pound usou o catálogo The Art of Angling, de Charles Bowlker (daí o “número 2”, por exemplo).

“Quem tinha a luz de quem faz”: verso inspirado na filosofia do inglês Robert Grosseteste (1175-1253), cujo De luce é ancorado na ideia de que o primeiro “fazedor”, Deus, criou as formas materiais a partir da luz. No entender de Pound, a luz de quem faz é a inteligência da personalidade ativa, cujas ideias não são simplesmente teóricas, mas moldadas de tal maneira que se tornam aplicáveis ​​ao mundo real.

“deo similis quodam modo / hic intellectus adeptus”, “de certa forma similar a Deus / este intelecto adquirido”: Pound cita “Cavalcanti”, de Alberto Mangnus, via Avérroes et l’averroïsme, de Ernest Renan.

“Relva: nunca fora do lugar”: referência ao banco Monte dei Paschi, de Siena. Pound interpretou o sucesso do banco como resultado do uso das pastagens fora da cidade como garantia para os empréstimos. A base de sua própria segurança era, portanto, um recurso natural que se renovava a cada ano e crescia em todos os lugares.

“Assim falando em Königsberg”: Königsberg, à época da escrita desse Canto, era uma cidade prussiana, terra natal de Immanuel Kant. Muito bombardeada por aliados e soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial, ela foi reconstruída, fagocitada pela União Soviética e, em 1946, rebatizada como Kaliningrado.

“Zwischen die Völkern erzielt wird”, “ser alcançado entre as nações”: citação abreviada de comentário de Rudolf Hess publicado no Völkischer Beobachter em 10 de julho de 1934. A citação completa: “Es is höchste Zeit daß endlich eine wirkliche Verständigung zwischen den Völkern erzielt wird” (“Já é hora de um acordo genuíno ser finalmente alcançado entre as nações”).

“modus vivendi”: Hess usa o termo alemão Verständigung, que Pound latiniza.

“girando em ar agitado”: referência ao Inferno XVII, 97-136. O voo de Gerião, um monstro mítico reimaginado por Dante para representar a fraude e ser o guardião do oitavo círculo infernal.

“os 12 (…) regentes”: os doze presidentes do Banco Central francês, todos financistas e industriais.

“Sou a ajuda dos velhos”: uma das estratégias dos fabricantes de armas era comprar jornais e angariar apoio político a fim de defender as armas como salvaguardas da paz. Além disso, arregimentavam apoio popular construindo hospitais e escolas.

“Liga de Cambrai”: liga criada pelo papa e pelo rei francês no começo do século XVI a fim de enfraquecer o poderio de Veneza. Foi por essa época que Vasco da Gama descobriu uma nova rota para a Índia, o que foi desastroso para Veneza.

Os caracteres chineses que encerram o Canto dizem respeito ao “cheng ming”, conceito político confuciano também conhecido como “retificação dos nomes”. É provável que Pound tenha encontrado os caracteres na edição bilíngue dos Quatro Livros por James Legge. A ideia é que, se a terminologia estiver incorreta, as instruções do governante não serão claras. E, caso as instruções não sejam claras, é impossível conduzir os assuntos do estado de forma apropriada.

Canto L

“‘A revolução’ disse o Sr. Adams ‘ocorreu nas / cabeças do povo'”: este Canto remete ao XXXII, no qual essa mesma citação (uma ideia recorrente de Adams, expressa em diversas cartas nos seus últimos anos de vida) aparece.

“… antes de Lexington”: em 19 de abril de 1775, a primeira batalha da Guerra de Independência ocorreu nessa cidadezinha próxima de Boston.

“… na época de Pedro Leopoldo”: Pietro Leopoldo (1747-92), filho de Francisco I, sucedeu seu irmão, José II, como imperador romano-germânico (1790-92), quando passou a se chamar Leopoldo II. Antes, foi Grão-Duque da Toscana (1765-90), a quem Adams procurou a fim de angariar ajuda financeira para a Guerra de Independência. No Canto XXXIII, Pound cita uma carta de Jefferson para Adams na qual o primeiro sugere que busquem a ajuda de Leopoldo. No Canto XLIV, Pound remete às reformas econômicas feitas por Leopoldo como Grão-Duque.

“Conde Orso”: também mencionado no Canto XLIII, a exemplo da “dívida quando os Médici tomaram o trono”. A jurisdição de Orso, concedida pelos Médici, limitava-se à cidadezinha de Monte Pescali, perto de Grosseto. Ele foi orientado a cobrar o imposto do sal, mas sem inflacionar do preço, a não proteger criminosos e a não inventar nada que criasse desaprovação popular. O controle dos Médici sobre a Toscana cessou em 1737.

“a primeira loucura”: Pound encontrou essas informações na Storia civile della Toscana, de Antonio Zorbi (1808-1879), um historiador anticlerical, contrário aos Médici e apoiador dos Habsburgo. A decadência da indústria têxtil de Florença se deu porque os florentinos importavam lã crua da Inglaterra e estabeleceram manufaturas no exterior, a fim de poupar os custos com o transporte. Isso fez com que Flandres e a Inglaterra desenvolvessem suas próprias indústrias e, eventualmente, parassem de trabalhar com Florença.

“as artes foram abaixo”: segundo Zorbi, houve uma decadência generalizada das artes e ciências sob o domínio dos Médici.

“Un’ abbondanza che affamava”, “uma abundância que enfaimava”: criado por Cosimo I no século XVI, o escritório da “Abbondanza” era responsável por supervisionar a importação e a distribuição de grãos na Toscana. Em certas épocas de crise e/ou escassez, o “Abbondanza” não conseguia fazer seu trabalho direito — daí a ideia da “abundância que enfaimava”.

“… o ensaio do Sr. Locke”: no caso, Several Papers Relating to Money, Interest and Trade.

“mas Gênova (…) para o prejuízo de Livorno”: na época da Guerra de Independência, o Sacro Império Romano assinou o tratado de neutralidade com a Inglaterra. Com isso, não obstante as vantagens de fazer comércio com os Estados Unidos, Leopoldo manteve a Toscana fiel a o tratado, e os norte-americanos firmaram uma parceria com Gênova. Ao final da guerra, em 1783, os EUA e Gênova já tinham uma relação comercial estabelecida, ao contrário da Toscana e de seu porto em Livorno. Os toscanos tiveram de recorrer a embarcações genovesas para transportar seus produtos para os EUA.

“Te, admirabile, O VashinnnTTonn!”, “Voi, popoli trasatlantici admirabili”: Zorbi louvando Washington e os EUA.

“e então enviaram-no para ser imperador”: no caso, Leopoldo após a morte do irmão.

“Francisco José”: a exemplo do que faz nos Cantos XVI, XXXV e XXXVIII, Pound expressa seu desprezo pelo imperador austríaco Francisco José (1830-1916).

“na merda de Metternich na podridão absoluta”: Klemens von Metternich (1773-1859) foi um político austríaco. Foi nomeado ministro das relações exteriores em 1809 e chanceler em 1821. Ele é considerado o arquiteto da restauração conservadora na Europa pós-Napoleão. Caiu por conta dos levantes revolucionários de 1848.

“Mas Ferdinando protelou um Anschluss”: Fernando III, filho de Leopoldo, tornou-se Grão-Duque da Toscana em 1790, depois da renúncia de seu pai em 29 de julho. A ideia era preservar a separação das coroas toscana e austríaca, bem como a independência da Toscana. Em 1799, Napoleão forçou Ferdinando a deixar o trono, o qual ele retomou em 1814. Reinou até morrer, em 1824.

“‘certas práticas denominadas religiosas’ disse Zorbi” / “‘falta de experiência em assuntos econômicos'”: Zorbi digressiona acerca das razões pelas quais o fulgor revolucionário foi bem-sucedido nos EUA, mas não na Toscana. Uma das razões seria a influência do clero sobre o povo. A incompetência toscana na administração econômica também é mencionada.

“Pio sexto, vigário da loucura”: o conde Giovanni Angelo Braschi (1717-1799) se tornou o papa Pio VI em 1775. Ele condenou a Revolução Francesa por razões óbvias. Em 1796, Napoleão derrotou as tropas papais em sua primeira campanha italiana. Dois anos depois, quando se recusou a renunciar ao poder temporal, Pio VI foi capturado e levado para a França, onde morreu meses depois.

“MARENGO”: a vitória contra os austríacos na Batalha de Marengo, em 14 de junho de 1800, assegurou o controle napoleônico sobre toda a Itália.

“Primeiro Cônsul”: Napoleão foi “Primeiro Cônsul” durante o período do “Consulado” (1799-1804), inaugurado pelo golpe do 18 de Brumário de 1799. Em 2 de dezembro de 1804, quando Napoleão foi coroado imperador, o Consulado chegou ao fim.

“Deixei paz. Encontrei guerra.”: impressões de Napoleão ao retornar do Egito, em outubro de 1799.

“1791”: erro. O correto é 1799.

“Marte significando, no caso, ordem / Aquele dia era o Direito junto ao vitorioso”: Pound liga o deus grego da guerra à figura de Napoleão, que instituiu uma ditadura com o golpe e consolidou seu poder após Marengo, após o que implementou (entre outras coisas) o seu código legal.

“juros de 24 por cento”: após a vitória de Napoleão em Marengo, houve um aumento da atividade dos usurários na Toscana, segundo Zorbi, o que contribuiu para o definhamento do comércio.

“1801 os triúnvirus…”: sob o domínio francês, houve diversas trocas de governantes na Toscana. Em 1801, ela chegou a ser administrada por três homens, Chiarenti, Pontelli e De-Ghores, os “triúnviros”. A desordem econômica e política era constante.

“Portoferraio”: cidade na ilha de Elba, na costa da Toscana, onde Napoleão foi exilado em maio de 1814, após sua derrota na Batalha de Leipzig (também chamada de Batalha das Nações), em 16-19 de outubro de 1813. Dois milhões (de francos) era a pensão que Napoleão recebia no exílio, metade dos quais ele repassava à esposa, Maria Luísa (1791-1847), filha do imperador Francisco I.

“recebeu um estado livre de dívidas”: referência à restauração das antigas monarquias europeias via Congresso de Viena (1814-15).

“reconduzir o Papa, mas / não reinstalar qualquer república”: o papa reconduzido foi Pio VII (1742-1823), que, eleito após a morte de Pio VI, também foi capturado por Napoleão. Pio VII permaneceu preso na França por catorze anos, só retornando a Roma após a derrota de Napoleão em 1813. Por sua vez, as repúblicas de Veneza e Gênova foram incorporadas aos reinos da Áustria e da Sardenha, respectivamente. Lucca foi dada a Maria Ana Elisa, irmã de Napoleão.

“ao dividir a Polônia”: no caso, entre Rússia, Áustria e Prússia.

“e aquele filho de uma cadela, Rospigliosi”: Giuseppe Rospigliosi (1755-1833) foi comissário especial para a Toscana, onde liderou um governo provisório entre maio e setembro de 1814, até o retorno de Ferdinando III.

“M… a no trono da Inglaterra, m…a no sofá austríaco”: “Merda” e “merda”, claro. No caso, George III (o louco), e Francisco I, além (provavelmente) de Metternich.

“… os quatro Jorges”: os “Jorges” da dinastia de Hanover, que governaram a Grã-Bretanha entre 1714 e 1830. O “pus” na Espanha são os Bourbon.

“… Wellington era um proxeneta de judeus (…) fazia”: Pound parece usar Wellington para xingar os Rothschild aqui, cuja ascensão se deu durante as Guerras Napoleônicas. Arthur Colley Wellesley, 1.º Duque de Wellington (1769-1852), foi um marechal e político britânico, e primeiro-ministro do Reino Unido por duas vezes. No entanto, a julgar por decisões tomadas em sua carreira política, é possível afirmar que Wellington não tivesse qualquer apreço pelos judeus.

“‘Deixe o Duque! Vá pro ouro!'”: durante o primeiro mandato de Wellington como primeiro-ministro (1828-1830) pelo Partido Conservador, houve uma campanha por reformas políticas que permitissem à classe média votar para o parlamento. Francis Place, um agitador radical, celebrizou os dizeres “Pare o Duque! Vá atrás do ouro!”. Com isso, ele queria dizer que uma corrida ao Banco da Inglaterra desestabilizaria a Câmara dos Lordes, forçando os conservadores a apoiar a reforma. Em junho de 1832, Wellington cedeu à pressão pública e desistiu de se opor à Lei de Reforma, permitindo que os Whigs (que chegaram ao poder em 1831) passassem seu projeto pelas duas casas e implementassem a lei (diluída) em 1833. Pound mudou os dizeres de Place, trocando “Stop” por “Leave”.

“‘Da brigantine Incostante'”: Napoleão deixou Elba no bergantim (“brigantine”) Inconstante e desembarcou em Cannes no dia 1º de março de 1815.

“Ney fora de sua sela / Grouchy demorou”: dentre os fatores que contribuíram para a derrota de Napoleão em Waterloo, estão a queda do Marechal Ney de seu cavalo e o fracasso do Marquês de Grouchy em impedir o exército prussiano de unir forças com Wellington.

“A palavra de Bentinck”: em 26 de abril de 1814, quando da capitulação de Gênova, o lorde William Bentinck, comandante militar das tropas britânicas, leu uma proclamação na qual reconhecia o desejo dos genoveses de voltar ao governo republicano. Mas, depois, o Congresso de Viena decidiu que Gênova seria incorporada ao Reino da Sardenha.

“ÓBITO, aetatis 57, quinhentos anos após D. Alighieri”: Napoleão morreu em 5 de maio de 1821 (Dante, em 1321), mas tinha 51 anos de idade (completaria 52 em 15 de agosto).

“Marie de Parma”: Maria Luísa, viúva de Napoleão.

“Mastai, Pio Nono”: Giovanni-Maria Mastai-Ferretti (1792-1878) foi eleito papa e se tornou Pio IX em 1846.

“D’Azeglio”: Massimo Taparelli, Marquês D’Azeglio (1798-1866), estadista, escritor e pintor piemontês.

“Lord Minto”: Gilbert Elliot (1782-1859), segundo Conde de Minto, foi um diplomata britânico e político do partido Whig. Em 1847, ele foi enviado à Itália para incentivar reformas políticas e relatar as condições reinantes no país.

“Bowring”: John Bowring (1792-1872), político britânico, economista e defensor do livre comércio. Ele visitou a Itália em 1836 e escreveu um relatório para a Câmara dos Comuns.

“o novo Leopoldo”: Leopoldo II (1797-1870), filho de Ferdinando III e neto de Pedro Leopoldo.

“Lalage”: provável referência ao epigrama II.66, de Marcial, no qual uma senhora romana, Lalage, golpeia uma escrava com o espelho por causa de uma mecha solta de cabelos.

“… pela base do afresco”: possível referência a um afresco encontrado em Pompéia na chamada Casa do Grão-Duque da Toscana (é a imagem que ilustra o post). Representa Dirce sendo amarrada ao touro como punição pela perseguição de Antíope. A “sombra” pode se referir à cor mais escura entre as pernas do touro atrás de Dirce, ou talvez seja uma metáfora sobre como a crueldade de Lalage para com a escrava é apagada pela crueldade maior de Dirce para com Antíope. Lalage, um nome romano, é encontrado em algumas inscrições em Pompeia.

“Dirce”: rainha mítica de Tebas, Dirce perseguiu e torturou sua escrava Antíope, forçando-a a expor seus gêmeos recém-nascidos. Dirce tentou matá-la amarrando-a a um touro, mas, em vez disso, foram os filhos de Antíope que amarraram Dirce ao touro e a fizeram experimentar a morte que queria infligir à outra.

Le Carré em campo

Artigo publicado hoje n’O Popular.

“Putin sempre foi um espião de quinta categoria”, escreve John Le Carré em Agente em Campo. “Agora era um espião transformado em autocrata que interpretava toda a vida nos termos de konspiratsia. Graças a Putin e sua gangue de stalinistas irrecuperáveis, a Rússia não avançava para um futuro brilhante, mas para trás, de volta para seu passado obscuro e delirante.” O livro (ed. Record, tradução de Marta Chiarelli) foi o último publicado por Le Carré em vida. Morto em 2020, o ex-espião que se reinventou como romancista para escrever algumas das obras fundamentais da literatura contemporânea, como O Espião que Saiu do Frio e A Garota do Tambor, ainda estava afiadíssimo aos quase 90 anos de idade.

Ao lado do também excelente Len Deighton, Le Carré retirou dos livros de espionagem a pegada aventuresca à James Bond, dando-lhes densidade, realismo, ambiguidade, ironia e tragicidade. Como diria Ivan Lessa, as histórias são simples e as tramas, complicadas. Bem e mal deixam de ser facilmente identificáveis e, em muitos casos, constituem uma categoria que não é sequer aplicável. Não há um mundo a ser “salvo” (não no sentido Marvel do termo, pelo menos), mas um jogo a ser jogado. Todos têm seus momentos de vilania, e o “heroísmo” só aparece como piada ou como um respiro antes do desastre. Em resumo, Le Carré escrevia para adultos inteligentes.

Em A Guerra no Espelho, por exemplo, o teor satírico explicita a falta de sentido de certas “missões”. Há um esforço notável e muito bem-sucedido para desmistificar a coisa. Trata-se, afinal, de uma sucessão de guerras sujas, travadas nas sombras e protagonizadas por seres humanos comuns, isto é, falhos, confusos e nada confiáveis. Aliás, essa é uma das razões pelas quais os livros de Le Carré não envelhecem (ou envelhecem muito bem): as questões geopolíticas mudam a todo momento, mas o caráter humano (e todas as desgraças que lhe são inerentes) permanece constante.

Uma das melhores passagens de Agente em Campo não diz respeito a nenhuma escaramuça ou intriga de espiões, mas, sim, ao momento em que o protagonista conta à filha o que faz para ganhar a vida: “Então é isso, Steff, agora você já sabe. Tenho vivido uma mentira necessária, e é só isso que tenho permissão para lhe contar”. A reação da filha, uma millennial típica, é espernear.

Não é simples escrever para adultos, quanto mais para adultos inteligentes. Na medida em que o mundo se infantiliza, as expectativas são frustradas continuamente, alimentando uma massa raivosa na qual cegos guiam outros cegos. Descarrilhamentos autoritários se tornam frequentes. Movimentos autocráticos e messiânicos sempre resultam em desastres. Vimos isso muitas vezes no decorrer da história. Estamos vendo agora, no Brasil e em outros lugares. A ânsia por clareza tropeça na opacidade do mundo. E é essa opacidade que Le Carré descreve tão bem.

Trabalhando com os elementos de um gênero literário que ajudou a estabelecer, Le Carré sempre remou contra as simplificações, fossem elas políticas ou literárias. O mundo é um lugar cruel e complicado. Não existem soluções fáceis. Não existem desfechos redentores. É preciso abraçar a incerteza e compreender que, nesse mundo, nessa vida, todo salto é um salto no escuro. Procure saltar bem acompanhado.

Canto XLIX

“Para os sete lagos”: “Sete Lagos” (七澤) é uma expressão típica da tradição poética chinesa para se referir aos lagos das regiões de Hunan e Hubei, que em tempos antigos pertenciam ao reino de Chou ou Zhou.

“Chuva; rio vazio”: os versos de 2 a 31 são baseados em uma sucessão de oito pinturas e poemas chineses que constavam de um livro pertencente à família de Pound: The Eight Views of Xiao Xiang (As Oito Paisagens (ou Vistas) do Xiao-Xiang; em japonês: Sho-Sho Hakkei). Geograficamente, Xiao-Xiang é uma região em Hunan onde o rio Xiang, alargado pelas águas do Xiao, deságua no lago Dongting ao norte da cidade de Changsha. O livro foi produzido no Japão como uma série de trípticos. Estes consistiam em um poema chinês, uma pintura paisagística e um poema original japonês sobre o mesmo tema. Os poemas chineses foram livremente traduzidos pela missionária chinesa Pao Swen Tseng quando ela visitou Pound, em maio de 1928. A primeira cena das Oito Paisagens é “Chuva noturna no Xiao e no Xiang” (瀟湘夜雨):

“e falam os bambus em tom de choro”: na China antiga, as filhas do imperador Yao, Ehuang e Nuying, choraram por dias em luto por seu falecido marido, o imperador Shun, e suas lágrimas mancharam os bambus da região. Incapaz de conter a dor, elas se mataram pulando no Xiang. As narrativas estão documentadas na antologia de Qu Yuan, Chuci (Canções do Sul), no capítulo “As Nove Canções”. Este contém as seções “Ao Senhor do Rio Xiang” e “A Senhora do Xiang”.

“Lua outonal (…) juncais”: a segunda cena das Oito Paisagens é “Lua outonal sobre o lago Dongting” (洞庭秋月):

“Atrás do monte (…) vento”: a terceira cena das Oito Paisagens é “Sino vesperal do templo encoberto pela névoa” (煙寺晚鐘):

“Uma vela (…) rio”: a quarta cena das Oito Paisagens é “Veleiros retornando de uma paragem distante” (遠浦歸帆):

“Quando a flâmula vinho (…) sopram”: a quinta cena das Oito Paisagens é “Névoa sobre a cidade na montanha” (山市晴嵐):

“Vem a crosta da neve (…) frio”: a sexta cena das Oito Paisagens é “Rio e céu na neve vesperal” (江天暮雪):

“qual lanterna”: no original, “like a lanthorn”, termo mais arcaico e sonoro.

“E em San Yin (…) lazer”: nome derivado de dois caracteres não traduzidos da fonte chinesa. No quinto verso do poema, “san yin” (山陰) significa “atrás da montanha”. Na paráfrase da tradução de Pao Swen Tseng, eles não foram traduzidos, e Pound os reaproveitou como se fossem o nome de um local. Sanehide Kodama sugere como essa mudança de significado pode ter ocorrido, referindo-se a uma anedota que Tseng talvez conhecesse: “O último verso alude a um episódio de O-Kishi [chinês: Wang Huizhi]. Certa noite, depois que parou de nevar, ele viu a lua, começou a beber e escreveu um poema. Então, sentiu vontade de visitar seu amigo Tai-Ando [chinês: Dai-Andao]. Ele remou seu barco desde San In e depois caminhou até o portão da casa de seu amigo, mas voltou para casa sem vê-lo. Quando perguntado a respeito, respondeu: ‘Venho quando me sinto interessado e vou embora quando perco o interesse. Por que eu deveria necessariamente ver Ando?’!” (Kodama 136n.6). A anedota está em A New Account of the Tales of the World (世說新語), que consiste em observações concisas sobre diferentes pessoas que viveram entre 150 e 420 d.C. O livro foi traduzido e editado em inglês por R. B. Mather. Tanto “San Yin” quanto “Ten-Shi” podem ser encarados como elementos da mítica contrageografia do Canto. Pound tem o cuidado de evitar nomes reais ou apontar para uma região específica no mundo real. Ele usou estratégias semelhantes nos cantos XVII, XXI e XXXIX.

“Gansos selvagens (…) janela”: a sétima cena das Oito Paisagens é “Gansos selvagens descendo para o banco de areia” (平沙雁落):

“Move-se luz na linha norte ao céu; (…) na linha sul do céu”: a oitava e última cena das Oito Paisagens é “Crepúsculo sobre a pequena vila de pescadores” (漁村夕照):

“Nos mil e setecentos veio Tsing…”: “Tsing” pode se referir a Qing (1644-1912), a última dinastia imperial chinesa. Pound talvez evoque o imperador Kangxi (governou entre 1661 e 1722), que teria feito visitas de inspeção ao sul, na região desses “lagos da colina”. Kodama apontou que o verso liga a primeira seção do poema, baseada nas Oito Paisagens, à segunda parte, baseada em dois antigos poemas chineses que Pound encontrou nos manuscritos de Fenollosa.

“Criando riquezas (…) endividar-se”: expressão da crença de Pound no Crédito Social, na ideia de que o Estado não deve se endividar com bancos privados a fim de tocar quaisquer projetos e obras. Tinha em mente o exemplo do “dinheiro estatal” de Kublai Khan, que o imperador usava como inesgotável recurso financeiro.

“Geryon”: v. Dante, Inferno XVII, 1-3 e 7-12. Trata-se de um monstro dantesco que personifica a fraude.

“TenShi”: segundo R. Taylor, embora usado como o nome de um lugar, “TenShi” é a combinação de duas palavras japonesas, significando “Filho de Deus”. Para A. Vantaggi, “Ten-Shi” seria o equivalente japonês do chinês “T’ien-tzu”, “Filho do Céu” — uma designação do imperador. O canal “segue suave” até o assento do Filho do Céu, isto é, até a capital do império.

“velho rei”: o imperador Sui Yangdi (569–618) continuou o trabalho de seu pai, Yang Jian, e construiu o Grande Canal (cerca de 1800 km) a fim de abastecer a capital, Luoyang, e os exércitos da fronteira norte. O Grande Canal foi concluído entre 604 e 609, primeiro ligando Luoyang a Yangzhou, e depois estendendo-o até Pequim, ao Norte, e Hangzhou, ao Sul.

“KEI MEN RAN KEI / KIU MAN MAN KEI / JITSU GETSU KO KWA / TAN FUKU TAN KAI”: transliteração japonesa de um clássico poema chinês em escrita romanizada, conforme Ernest Fenollosa legou a Pound em suas notas sobre o “Curso de História da Poesia Chinesa”, do professor Mori, em 4 de junho de 1901. O poema também é conhecido como “Canção das Nuvens Auspiciosas” (卿雲; Ch’ing-yun ko). As sílabas são lidas do modo ocidental, transversalmente, da esquerda para a direita, da forma como estão nas notas de Fenollosa. O original chinês (ao qual Pound não teve acesso) é escrito da seguinte forma:

卿雲爛兮,
糺縵縵兮
日月光華,
旦復旦兮

Em tradução livre, a partir da versão em inglês: “As nuvens auspiciosas são vívidas / Juntas elas circulam ao redor. / O sol e a lua têm brilho e esplendor, / Retornando aurora após aurora”. O original chinês está incluído em Shangshu dazhuan (尚書大傳; comentário ao Livro dos Documentos, de Fu Sheng (200-100 a.C.)). O autor imagina o poema como sendo cantado pelo imperador Shun (2294-2184 a.C.) ao anunciar que seu sucessor não seria o filho, mas o homem que resolvera o problema das inundações no país: Yu, o Grande (2123–2025 a.C.). Os versos celebram alguém que voluntariamente passou o controle do governo para a pessoa que considerou mais qualificada, sentimento que inspirou a República da China a usá-lo como hino nacional de 1913 a 1915, e, depois, de 1921 a 1928. O hino foi novamente usado por colaboracionistas durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa.

“Sol subiu (…) e para nós o que é?”: Pound encontrou esse poema nas notas de Fenollosa sobre o “Curso de História da Poesia Chinesa”, realizado em 28 de maio de 1901. O título original é “Canção da Batida do Torrão” (擊壤歌; Chi-yang ko). Nele, elogia-se a ordem harmoniosa durante o reinado do imperador Yao (2356–2255 a.C.), antecessor de Shun. Pound também não teve acesso à versão chinesa.

日出而作,
日入而息。
鑿井而飲,
耕田而食,
帝力於我何有哉

Em tradução livre, a partir da versão em inglês: “O nascer do sol significa trabalho, / O crepúsculo significa voltar para casa. / Cavando o poço para beber, / Lavrando o trigo para comer. / A autoridade está muito longe de mim”.

“A quarta: (…) feras”: essa elevada “dimensão do sossego” (ou da “quietude”) é um lugar sem caos e desordem, conforme é sugerido na referência às “feras”, do nosso mundo tridimensional. O verso derradeiro final também serve como um colofão e ecoa o final do Canto XLVII, quando Pound evoca o poder órfico sobre os animais indomados e todos os outros seres vivos (ver a derradeira nota lá).

Canto XLVIII

“E se o dinheiro fosse arrendado”: v. Canto XLVII e a forma como o Bank of England cobrava juros do governo inglês para emitir moeda. No verso seguinte, uma referência ao “dinheiro que desaparece” (“Schwundgeld”) citado por Silvio Gesell. Em Wörgl, uma cidadezinha austríaca, entre 1932 e 33, Gesell observou que era preciso colar um selo a cada semana em cada nota para preservar o valor desta. Quando não havia mais lugar para colar os selos, a nota era jogada fora e substituída. O selo poderia ser considerado um “imposto sobre o dinheiro” ou “arrendamento” (ou “aluguel”).

“Mahomet VIº Yahid Eddin Han”: Mehmet VI Vahideddin (1861-1926) foi o último sultão (1918-1922) do Império Otomano, o qual foi dissolvido após a derrota na Primeira Guerra Mundial e substituído, em 1922, pela República da Turquia, tendo Mustafá Kemal como primeiro presidente (outubro de 1923). Mehmet era filho de Abdul Mejid (1823-1861, reinou entre 1839 e 61), morto quando o filho tinha apenas seis meses de idade. Mejid fez diversas reformas e aproximou o império das potências ocidentais, em especial da Inglaterra e da França.

A “beatificação” referida é de Paula Frassinetti (1809-1882), em 8 de junho de 1930. Ela era uma freira que dedicou a vida a ajudar os mais necessitados. Foi canonizada em 1984.

“Guerra da Turquia”: a Grande Guerra Turca (1677-83) entre o Império Otomano e a Liga Santa (Áustria, Polônia, Veneza e Rússia). Culminou no Cerco de Viena, no qual os otomanos foram derrotados pelo rei polonês Jan III Sobiesk.

“Sr. Kolschitzky”: Jerzy Franciszek Kulczycki (1640-1694), nobre polonês que estabeleceu uma empresa de comércio em Viena e que, durante o cerco, ajudou a resistência contra os otomanos. Chegou, inclusive, a se disfarçar de soldado otomano, passar pelas linhas inimigas e pedir ajuda a Charles V, duque de Lorraine (1643-90), o que se revelou indispensável para a vitória final.

“de Banchiis cambi tenendi”, “banco de câmbio”: Pound não aprovava Kulczycki, por assim dizer, independentemente de seu papel heroico contra os otomanos.

“mil e seiscentos”: em 1683, o Império Otomano chegou ao ápice territorial. A derrota no cerco de Viena (12 de setembro de 1683) e a Paz de Karlowitz interromperam a expansão turca na Europa central, provocando uma política de contenção e declínio que levaria, por fim, à malfadada aliança com a Áustria na Primeira Guerra Mundial.

“Von Unruh”: Fritz von Unruh (1885-1970), escritor alemão que vivia em Zoagli, perto de Rapallo, e amigo de Pound, já citado no Canto XLI.

“Kaiser”: o imperador alemão Guilherme II (1859-1941), chamado por Pound de “aquele nojento em Berlim” no verso 47 do Canto XXXVIII.

“Verdun”: a mais longa batalha da Primeira Guerra, travada entre 21 de fevereiro e 18 de dezembro de 1916. Estima-se que mais 700 mil perderam a vida por lá.

“e o que escreveu”: Fritz von Unruh escreveu sobre suas experiências na guerra no romance Opfergang (1918). A anedota sobre o sargento não aparece no livro.

“Sr. Charles Francis Adams”: Pound retorna ao papel de Adams em Londres durante a Guerra Civil, já referido no Canto XLII. Como os britânicos importavam algodão dos estados sulistas, temia-se que eles se posicionassem contra a União e a favor dos Confederados. Assim, durante a Guerra Civil, Adams atuou como enviado dos EUA na Inglaterra e conseguiu assegurar a neutralidade inglesa.

“Van Buren havendo registrado”: referência à autobiografia do presidente norte-americano.

“John Adams”: possível referência a uma carta de Adams para Jefferson datada de 9 de julho de 1813, em que o missivista comenta sobre a obliteração de registros históricos. Essa carta será novamente mencionada no Canto LXXI.

“tornem-se pais…”: d’O Capital, quando Marx se refere à exploração do trabalho infantil na Inglaterra vitoriana.

“Bismarck”: Otto von Bismarck (1815-1898), estadista alemão. Bismarck é tido como o responsável pela vitória alemã na Guerra Franco-Prussiana (1870-71) e a unificação da Alemanha. Da unificação, em 1871, até 1890, ele foi o primeiro chanceler do país.

“culpava”: do artigo “The Mystery of the Civil War and Lincoln’s Death”, de Dudley Pelley, no jornal Liberation (10 de fevereiro de 1934). O antissemitismo de Pound volta a marcar presença, em especial aqui e nos versos seguintes, quando se ocupa de desancar os Rothschild e Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro inglês (1874-1880) de ascendência judia. A suposta fala de Lionel de Rothschild (1808-1879) para Disraeli é citada no livro Money: Questions and Answers, do padre Charles Coughlin (1891-1979), célebre propagandista do nazismo.

“Δίγονος”, “digonos”, “nascido duas vezes”: Dionísio.

“Cawdor, 23 de set.”: carta de A. E. Evans para o príncipe de Mônaco. Diferentemente do cachorro Dhu Achil (“Aquiles Negro”, em gaélico), o “Sr. Rhumby”, Bainbridge Colby (1869-1950), secretário de estado no governo de Woodrow Wilson, não tinha “pedigree” e foi escolhido para o cargo em meio a uma bebedeira.

“err’ un’ imbecile (…) mondo”, “era um imbecil e emburreceu o mundo” (no caso, Galileu).

“12% de rendimentos na Bitínia”: a província da Bitínia localizava-se no noroeste da Turquia, nas margens do Mar de Mármara (Propontis) e do Mar Negro (Pontus Euxinus), a leste de Tróia. Fez parte do Império Romano e Bizantino de 74 a.C. até ser conquistada pelos otomanos em 1333. A informação sobre os rendimentos está em Claudius Salmasius, De Modo Usurarum.

“Athelstan”: neto de Alfredo, o Grande, Athelstan viveu entre 894 e 939 e foi um rei anglo-saxão (924-39). Graças aos sucessos militares contra os vikings, Athelstan unificou os reinos de Mércia, Wessex, Nortúmbria e York, e é considerado o primeiro a governar todos os ingleses em um reino unido (Rex totius Britanniae). Pound o apresenta como um governante que entendeu a natureza da soberania inglesa como algo baseado no poder marítimo e comercial.

“aqui”: Gais, no Tirol do Sul, onde a filha de Pound, Mary Rudge (depois Mary de Rachewiltz), foi criada por uma família local. Pound e Olga visitavam-na ocasionalmente.

“nuova messa”, “nova missa”.

“dodicesimo anno E.F.”, “o décimo segundo ano da Era Fascista”: entre 28 de outubro de 1933 e 27 de outubro de 1934, segundo o calendário fascista.

“Posso retornar ali”: em Discretions, suas memórias, Mary conta que, em uma viagem ao Lido com seu pai, ela disse que queria ir para “casa”, isto é, Veneza, mas Pound entendeu que ela queria voltar para Gais. Os “sapatos de domingo”, por sua vez, referem-se a um momento de ternura vivido com o pai.

“Veludo (…) orquídea”: metáfora enigmática inspirada em uma tradução de Remy de Gourmont feita por Pound.

“… escada ainda rachada”: Pound visitou Montségur em 23 de junho de 1919. A visita também é mencionada no Canto XXIII (74-81).

“Val Cabrere”: entre Valcabrère e San Bertrand, são pouco mais de dois quilômetros. Pound e Dorothy passaram por ali naquela viagem, e é possível que tenham ido a pé de uma cidade à outra.

“Savairic”: Savari de Mauléon (c.1181-1233), soldado francês, senhor de Mauléon, senescal de Poitou, poeta e patrono de Gaubertz de Poicebot. V. Canto V.

“… não estariam sob Paris”: referência ao Tratado de Paris-Meaus (1229), que pôs fim à Cruzada Albigense e à autonomia política da Occitânia. O protetor militar dos cátaros, Raimundo VII de Toulouse, admitiu a derrota e tornou-se vassalo do rei da França, Luís IX. Suas terras foram transferidas para a coroa francesa após sua morte. Pound gostava de pensar que cavaleiros e trovadores provençais como Savari de Mauléon, Gaubertz de Poicebot e Peire de Maensac não se submeteram à nova situação: ele os imagina indo a Montségur para continuar sua resistência ao poder da Igreja.

“Tombando Marte”: referência a um assassinato brutal no mundo dos insetos que Pound testemunhou em Excideuil, em agosto de 1919, referido por ele em J/M: uma vespa despedaçando uma aranha.

“… ao nível do topo da torre…”: Pound revisita a cena em Excideuil, onde Eliot lhe contou um segredo. Isso já foi referido antes, no Canto XXIX (136-42). As duas cenas, da confissão do poeta e da vespa matando a aranha, são complementares. Elas levam o leitor àquele momento em agosto de 1919, quando dois homens e poetas muito diferentes “se abriram”, por assim dizer. Pound admirava a vespa e se identificava com os trovadores-soldados que resistiram à Igreja; Eliot estava mais preocupado com o problema cristão do pecado e com a própria salvação.

“cesta de pedras”: na praia do Lido, a tarefa desse velho era colocar pedras nas roupas para que não fossem levadas pelo vento.

Péricles está morto

Artigo publicado n’O Popular em 02.08.2022.

De todas as expressões sedimentadas em nosso desgraçamento antirrepublicano, “cidadão de bem” é uma das piores. Quando ainda possuía perfis nas redes sociais, eu procurava bloquear todo e qualquer novo seguidor que, em sua minibio, declarasse ser um “cidadão de bem”. Em geral, a expressão vem acompanhada de símbolos variados, como a bandeira nacional, imagens religiosas e arminhas. No inexorável processo de milicianização do Brasil, as ideias de “cidadão” e de “bem” foram as primeiras que corromperam.
Vivemos em uma espiral de corrupções. Tempos atrás, um “cidadão de bem” invadiu uma festa e matou o aniversariante por se sentir ofendido com a decoração ambiente, dedicada a Lula e ao PT. Pessoalmente, acho ridícula e não raro doentia qualquer tipo de adoração a figuras políticas. Mas ninguém merece ser abatido a tiros por ser ridículo.
Animada por anos de discursos extremistas, mentiras, apologias da violência e legislação irresponsável, uma parcela da população anda armada por aí, pronta para matar, morrer e/ou ceder — inadvertidamente ou não — as armas para o crime organizado. No entanto, a maior parte dos brasileiros quer distância de pistolas e pistoleiros. Somos 69%, segundo pesquisa recente do Datafolha.
A conflagração está na ordem do dia. Em vez de uma corrida eleitoral, teremos uma confrontação marcada por atos violentos, ameaças e tentativas de golpe, tudo embalado por um messianismo constrangedor. É verdade que, à esquerda, os lulistas têm a sua cota de fanatismo, mas quaisquer equiparações com a insanidade bolsonarista seriam impróprias ou mesmo absurdas. Nos governos do PT, a corrupção era material e sustentada por quase todo o sistema político. No governo Bolsonaro, além de material e sustentada por quase todo o sistema político, a corrupção também é anímica. Eis um outro nível (subterrâneo) de perversão nacional, mais generalizado e profundo.
Em 2006, a pior “violência” que sofri por declarar meu voto em Alckmin foi ser chamado de “fascista” por esquerdistas partidários do que o jornalista Jerônimo Teixeira definiu como “stalinismo odara”. Em 2022, declarar que nunca votei e jamais votaria em Bolsonaro pode me render um tiro na cara.
Para concluir, penso em Atenas. Sócrates circulava por lá com a intenção de ser a “parteira” da verdade inerente à opinião (fundamentada) de cada um, o que, para ele, seria imprescindível para a reconstituição de uma comunidade. Tal postura era uma forma de distanciar os cidadãos da animosidade que grassava entre eles, uma das razões pelas quais a cidade decaíra tanto desde a morte de Péricles. Recorrendo a Aristóteles, temos um espírito de comunidade desde que os cidadãos, por mais diferentes que sejam entre si, consigam se igualar politicamente por meio da amizade. É o oposto de matar todos que pareçam dissonantes, com vistas a promover uma “uniformidade” impossível. O que acontece entre amigos é que um procura compreender a verdade do outro, isto é, enxergar o mundo pelos olhos alheios. Tal esforço compreensivo não tinha lugar naquela Atenas decadente (não por acaso, Sócrates foi condenado à morte), e por certo não tem lugar nesse Brasil arruinado. Péricles morreu há muito tempo.

Canto XLVII

“Que, morto…”: a referência, aqui, é a Odisseu em seu cativeiro na ilha de Circe, o momento em que ele implora à deusa que o deixe retomar sua viagem de volta para Ítaca. Ela concorda, mas diz que ele deve primeiro invocar as ânimas dos mortos, em especial a de Tirésias, que lhe apontará o caminho de casa. A fala é de Circe: “‘(…) Outra viagem haverás / de executar primeiramente, à residência / do Hades e da terribilíssima Perséfone, / a fim de consultar a psique do tebano / Tirésias, vate cego de epigástrio sólido: só a ele, mesmo morto, concedeu Perséfone / o sopro da sapiência. Os outros vagam: sombras'” (Odisseia X, 489-495, na tradução de Trajano Vieira, ed. 34).

“Este som veio no escuro”: Circe e Odisseu estão na cama, deitados lado a lado, quando ele faz o pedido e ela indica o que ele precisa fazer. Aqui, é uma paráfrase de Pound (no Canto XXXIX, ele recorreu à passagem homérica).

“Primeiro deves…”: o uso do “deves” (“thou”) sublinha a oscilação entre as linguagens arcaica e moderna do início do Canto.

“Cego que era”: Ovídio conta nas Metamorfoses (III, 314-36) como Tirésias perdeu a visão, mas ganhou o dom da profecia. Hera e Zeus chamaram-no para arbitrar uma discussão: quem tem mais prazer no sexo? Hera acreditava que era o homem, ao passo que Zeus afirmava que era a mulher. Tirésias, que havia sido homem e mulher em sua vida, concordou com Zeus. Furiosa, Hera o cegou. Zeus não conseguiu desfazer o ato de Hera, mas deu a Tirésias o dom da profecia, a capacidade de ver o que não é visível aos olhos.

“bestas entorpecidas”, e depois “phtheggometha thasson”, “φθεγγώμεθα θασσον” (na tradução de Trajano Vieira, “Chamemo-la, soerguendo a voz”): da Odisseia X, 208-44, quando os companheiros de Odisseu são recebidos por Circe, drogados e transformados em porcos.

“Lâmpadas apinhadas na enseada”: celebrações da Madonna di Montallegro, em Rapallo.

“Tamuz!”: ou Dumuzid, antigo deus mesopotâmio, principal consorte da deusa Inanna (Ishtar). Ele morre e é ressuscitado todos os anos para incorporar o ciclo sazonal e de fertilidade da natureza. Na Síria, Tamuz passou a ser chamado de Adonis, e seu relacionamento com Ishtar foi adaptado em uma história de amor entre Adonis e Afrodite. A morte de Tamuz/Adonis é lamentada no verão, na época da colheita.

“Por este portão…”: o portão da morte.

“Os cães de Scilla”: as ondas batendo nos recifes do Estreito de Messina, onde Cila e Caribde estariam. Pound utiliza a grafia italiana do nome. Homero descreve ambas na Odisseia XII, 79-110. Ovídio fala de Cila nas Metamorfoses XIV, 1-74).

“τὺ Διώνα / TU DIONA”, “você, Diona”: Diona é um dos nomes de Afrodite, usado no poema “Lamento por Adonis”, de Bíon de Esmirna. O verso seguinte, “Kai MOIRAI’ ADOÑIN”, “E as Moiras… Adonis”, é do poema de Bíon: “Não, até as Moiras choram e choram por Adônis, invocando seu nome”. “Adônis” é o nome fenício do deus babilônico Tamuz, derivado da palavra semítica “Adon” (“Senhor”). (A imagem que ilustra o post é a tela Despertando Adônis, de John William Waterhouse.) Do Dicionário Mítico-Etimológico, de Junito de Souza Brandão (ed. Vozes): “O mito de Adônis está ligado à ‘deusa oriental’ Afrodite, transposição evidente, embora bastante retocada, de Ishtar-Astarté (…). De qualquer forma, a morte de Adônis, deus oriental da vegetação, do ciclo da semente, que morre e ressuscita, daí sua katábasis para junto de Perséfone e a consequente anabasis em busca de Afrodite, era solenemente comemorada no Ocidente e no Oriente”.

“Rebentos de trigo”: referência aos jardins de Adônis.

“naturans”, “obedecendo à sua natureza”.

“Molü”: erva mágica que Hermes dá a Ulisses para protegê-lo da magia de Circe, de tal forma que ela não consiga transformá-lo em porco, como fez com seus companheiros (v. Odisseia X, 275-301; Trajano Vieira traduz o nome da erva como “moly”).

“Principia teu lavrar”: d’Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo. Este transmite o conhecimento sagrado da natureza, da fertilidade e da vida.

“Tellus”, “terra” (latim): deusa romana da terra.

“Io”: grito extático de um homem iniciando o ato sexual.

“Adônis tomba”: a morte de Adônis, a hora da colheita (meados de julho).

“que tem o domínio das feras”: verso que também é encontrado no Canto XLIX. Para Demetres Tryphonopoulos, o iniciado no mistério em Elêusis, depois de descer à escuridão (katábasis), de vagar e lutar (dromena), e de ser transformado pela iluminação extática religiosa (epopteia) compreende a misteriosa relação entre o processo natural e o coito e adquire poderes mágicos de cura e de controle sobre as feras.