Canto XXXVIII

Canto XXXVIII

“Il duol (…) moneta”: Dante, Paraíso XIX, 118-20. Na tradução de Italo Eugenio Mauro (ed. 34): “Lá será visto o mal que sobre o Sena / causa, falsificando a sua moeda, / quem sofrerá na caça a última pena”. A referência de Dante é o rei Filipe IV (1268–1314), ou Filipe, o Belo. Ele governou a França de 1285 até sua morte, e foi também rei de Navarra (como Filipe I, 1284-1305) por conta de seu casamento com Joana I. Em dificuldades fiscais por conta das guerras frequentes, Filipe desvalorizou a moeda francesa, reduzindo a proporção de prata em cada moeda. Em 1306, com o país acossado pela inflação, tentou restituir a proporção de prata anterior. A recessão levou à revolta popular e caos nas ruas. A fim de levantar a quantidade de prata necessária, o rei exilou alguns e executou outros de seus credores (os judeus e a Ordem dos Templários) recorrendo a acusações infundadas. A estupidez de Filipe se contrapõe à inteligência de Kublai Khan (como vimos no Canto XVIII). Pound inicia o Canto com a desastrosa política de Filipe, conforme observada por um poeta que lhe era contemporâneo, e o termina com a situação da França no período entreguerras. A estratégia francesa de “defesa em primeiro lugar” levou à construção da Linha Maginot e ao desenvolvimento da marinha, em consonância com a indústria armamentista coordenada pelo Comité des Forges. Não obstante todas os preparativos, a França foi derrotada em um mês pelos alemães, em maio-junho de 1940.

“Metevsky”: pseudônimo do negociante de armas Basil Zaharoff (v. Canto XVIII). Com a retração pós-Primeira Guerra Mundial, os negociantes de armas procuraram clientes no extremo oriente e na América do Sul. Note-se que China e Japão compravam armas dos mesmos fabricantes (de forma similar, Zaharoff vendeu armas para Grécia e Turquia em 1887).

“e as maneiras do Papa eram tão parecidas com as do Sr. Joyce”: Ambrogio Damiano Achille Ratti (1857-1939), papa Pio XI 1922-39), foi o primeiro a se instalar no recém-criado estado do Vaticano. Ele também foi o primeiro a fazer transmissões radiofônicas (em latim). Pound conheceu Ratti quando ele era diretor da Biblioteca Ambrosiana, em Milão. Nas cartas que enviou a Pound, James Joyce era polido e convencional.

“Marconi”: Guglielmo Marconi (1874-1937), engenheiro italiano tido como o inventor do rádio. Ele instalou uma estação de rádio no Vaticano, e Pio XI fez sua primeira transmissão no dia 12 de fevereiro de 1931.

“Jimmy Walker”: James Walker (1881-1946) foi prefeito de Nova York (1926-1932) durante a Lei Seca, em uma administração repleta de escândalos de corrupção. Roosevelt, governador do estado, tendo assegurado sua candidatura à presidência, forçou Walker a renunciar em 1932.

Dexter Kimball (1865-1952) foi um engenheiro norte-americano, professor em Cornell e autor de Industrial Economics (1929), citado por Pound no Canto.

“Akers”: pseudônimo da Vickers, empresa armamentista britânica na qual Basil Zaharoff trabalhou entre 1897 e 1927.

“Sr. Whitney”: Richard Whitney (1888-1974), corretor de ações novaiorquino, presidente da bolsa de valores da cidade entre 1930 e 35. Em meio à Depressão, Whitney desviou fundos a fim de salvar suas ações e manter o alto padrão de vida. Seus crimes foram descobertos em 1938. Condenado, passou três anos preso em Sing Sing e foi proibido de voltar a trabalhar no mercado financeiro.

“venda a futuro” (no original, “shortselling”): talvez a tradução mais correta seria “venda a descoberto”. Trata-se de uma prática financeira especulativa que consiste na venda de um ativo ou derivativo, esperando que o preço caia para então comprá-lo de volta e lucrar com a diferença.

“Genebra”: onde ficava a sede da malfadada Liga das Nações (1920-1946).

“Sr. D’Arcy”: William Knox D’Arcy (1849-1917), empresário britânico. Em 1901, adquiriu uma concessão do Xá da Pérsia para prospectar petróleo no Irã. Em 1908, descobriu o primeiro poço de petróleo comercialmente viável no país, fundou a Anglo-Persian Oil Company (APOC), que prometia pagar royalties de 16% para o governo local pelos próximos sessenta anos (porcentagem inferior aos impostos pagos pela APOC na Inglaterra). Em 1914, o governo britânico se tornou o maior acionista da empresa. Ao citar D’Arcy, Pound explcita a relação entre petróleo, intervenção estrangeira, colonialismo e guerra. O Irã só passaria a controlar suas reservas de petróleo com a Revolução Iraniana, em 1979.

“Sr. Melon”: Andrew Mellon (1855-1937), empresário norte-americano, foi Secretário do Tesouro (1921-32) durante o período que Pound considerava a “era da vergonha”: os mandatos dos republicanos de Warren G. Harding (1921-23), Calvin Coolidge (1923-29) e Herbert Hoover (1929-32). Em 1932, para evitar o impeachment, Mellon foi apontado embaixador dos EUA no Reino Unido, mas retornou à vida privada em 1933, quando Franklin Delano Roosevelt foi eleito presidente.

“Sr. Wilson”: Woodrow Wilson (1856-1924) foi presidente dos EUA (1913-1921). Queria concorrer a um terceiro mandato, mas estava muito doente (por conta de um derrame, não de prostatite).

“Sua Senhoria”: Maud Cunard (1872-1948), socialite norte-americana, esposa de Bache Cunard, neto de Samuel Cunard, fundador da empresa de transportes marítimos que leva o nome da família. Certa vez, Maud ouviu de uma rival, a condessa Margot Asquith (1864-1945), que sua filha, a escritora, mecenas e musa modernista Nancy Cunard (1896–1965; referida no Canto como “Jenny”), mantinha um relacionamento amoroso com Henry Crowder (1890–1955), um jazzista negro. Maud fez de tudo para separar o casal: tentou deportar Crowder, contratou detetives para espionar o casal, efetuou ligações ameaçadoras e cortou a mesada de Maud. O racismo de Maud é um dos sintomas de decadência cultural abordados no Canto. Asquith é referida no poema como “Agot Ipswitch”; ela era a esposa de Herbert Asquith (1852-1928), primeiro-ministro britânico (1908-1916).

O “nojento em Berlim” é Guilherme II (1859-1941), último imperador da Alemanha (1888-1918). Foi responsável pela instituição de uma política belicosa e confusa, culminando na garantia de apoio militar ao Império Austro-Húngaro (uma das causas para a eclosão da Primeira Guerra Mundial).

“François Giuseppe”: afrancesamento do nome de Francisco José (1830-1916), imperador austro-húngaro. O assassinato em Sarajevo de seu sobrinho e herdeiro presuntivo do trono, Francisco Ferdinando, em 28 de junho de 1914, foi um dos fatos que levaram ao início da Primeira Guerra.

“Mitsul”: o correto é “Mitsui”. Trata-se de um conglomerado japonês de bancos e holdings industriais.

“‘A madeira (…) coronhas'”: John Quincy Adams, em seu diário.

“… pântanos italianos (…) Tibério”: a bonifica (1930-39) foi um dos projetos mais importantes de Mussolini, e consistia na drenagem dos pântanos localizados nos arredores de Lazio. No entender de Pound, projetos desse tipo (a exemplo dos de Gandhi e Douglas) eram construtivos e visavam a paz, em oposição à escalada armamentista e belicosa verificada ne época. Tibério (42 a.C.-37 d.C.) foi um imperador romano.

“Beebe”: Charles William Beebe (1877-1962), naturalista, explorador e biólogo marinho norte-americano, autor de Beneath Tropic Seas.

“Rivera”: Miguel Primo de Rivera (1870-1930), aristocrata e general espanhol, primeiro-ministro do país entre 1920 e 30. O “infante” referido era Afonso, filho mais velho do rei Afonso XIII, e sofria de hemofilia.

“Schlossmann”: pseudônimo para Julius Sachs, repórter do Neues Wiener Journal que entrevistou Pound em maio de 1928, em Viena.

“Anschluss”, “unificação”, “anexação”: a anexação da Áustria pela Alemanha foi proibida pelo Tratado de Versalhes, mas levada a cabo pelos nazistas em 12 de março de 1938.

“Der im Baluba das Gewitter gemacht hat”, “que fez a tempestade em Baluba”: Pound reconta a seu modo um episódio de Erlebte Erdteile, do antropólogo alemão Leo Frobenius (1873-1938). A anedota original é de que Frobenius e seu time adentraram uma zona de guerra na África e usaram os tambores para sinalizar suas intenções pacíficas. Os tambores também anunciaram a participação de todas as vilas da região em uma batalha na manhã seguinte, mas uma tempestade caiu por volta da meia-noite e, por isso, não houve nenhuma batalha. Os locais acharam que o homem branco “fizera” a tempestade a fim de evitar a guerra. Pound conheceu Frobenius em Frankfurt, em maio de 1930.

“nobre húngaro”: Lajos Hatvany (v. Canto XXXV).

“Kosouth”: Ferenc Kossuth (1841-1914), engenheiro civil e político húngaro. Após viver na Itália por alguns anos, ele retornou para a Hungria e iniciou uma carreira política. Em 1889, era presidente do Partido da Independência, que aboliu a monarquia e separou a Hungria da Áustria.

“1927”: na verdade, Pound esteve em Viena em 1928.

“Bruhl”: Lucien Lévy Bruhl (1857-1939), filósofo e sociólogo francês. É é citado no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Pound ligava o trabalho de Bruhl ao de Fenollosa como impulso e modelo para a poesia.

“Romeu e Julieta”: o caso dos amantes vienenses está mais para um sintoma de exaustão anímica e cultural, e ecoa o possível pacto suicida entre o príncipe austríaco Rudolf e a baronesa Maria Vetsera, encontrados mortos em Meyerling no dia 30 de janeiro de 1889. Rudolf era o único filho varão do imperador Francisco José, e sua morte criou uma instabilidade sucessória que comprometeu a reconciliação entre a Áustria e facções húngaras do império, culminando no assassinato daquele apontado como o herdeiro presuntivo, o arquiduque Francisco Ferdinando (sobrinho de Francisco José).

“Sr. Blodgett”: Sherburne C. Blodgett, um dos inventores de um protótipo da máquina de costura, que Isaac Singer viria a aperfeiçoar e comercializar a partir de 1850.

“Eu evidentemente jamais disse que o dinheiro em caixa…”: citação de The New and Old Economics, ensaio em cinco partes que C.H. Douglas publicou na New English Weekly em 1932.

“Douglas”: Clifford Hugh Douglas (1879-1952), economista, engenheiro de formação, criador da teoria econômica chamada de Crédito Social. No Canto XXII, Pound narra um encontro dele com John Maynard Keynes (1883-1946), lá identificado como “Mr. Bukos”.

“Uma fábrica…”: nos versos 107-25 (até “preços de um modo geral”), Pound apresenta o Teorema A + B, conforme explicado no livro Credit Power and Democracy, de Douglas.

“Herr Krupp”: Alfred Krupp (1812-1887), fabricante de armas de Essen. Sua fábrica ficou célebre por fabricar canhões de alta qualidade. Seu primeiro grande negócio se deu em 1847, quando vendeu armas para a França e o Egito. Ele foi um pioneiro nesse mercado, e um dos primeiros a não levar em consideração quaisquer interesses nacionais.

“Encomenda de Pedro o Grande”: no original, “Order of Pietro il Grande”. Desliza na tradução brasileira. “Order”, no original, refere-se não a uma “encomenda” de Pedro (até porque esse czar morreu em 1725), mas à Ordem de Pedro, o Grande, condecoração com a qual Krupp foi agraciado depois de vender canhões para a Rússia. Pound escreveu o nome em italiano como um aceno para a fonte que utilizou ao pesquisar sobre Krupp: I Mercanti di Cannoni (1932), do jornalista Paolo Zappa.

“Napoleon Barbiche”: no original, “Napoléon Barbiche”. Trata-se de Napoleão III (1808-1873), sobrinho de Bonaparte.

“Creusot”: a companhia de armamentos Schneider era a concorrente francesa de Krupp. A empresa foi fundada pelos irmãos Adolphe e Eugène Schneider (mencionado alguns versos depois, foi ta) em 1848, e sua sede se localizava em Creusot, no nordeste da França. Após a Segunda Guerra, a empresa passou por várias mudanças, e hoje é a multinacional Schneider Electric, especializada em automação digital e energia. Conforme mencionado alguns versos depois, Eugène foi também membro do parlamento francês, ministro da agricultura e presidente da câmara dos deputados. Adolphe, por sua vez, dedicou-se à administração financeira do negócio.

“(’68)”: em abril de 1868, Krupp enviou a Napoleão III um catálogo ilustrado com os canhões que fabricava. A resposta do imperador, assinada pelo general Edmond Leboeuf (1809-1888), data de 29 de abril de 1868 e não se comprometia a comprar nada. Lebouef, depois, tornou-se Marechal de França e teve um papel importante na Guerra Franco-Prussiana (1870-71). Após a derrota francesa, retirou-se da vida pública.

“operai”, trabalhadores (números que Pound encontrou no livro de Zappa).

“53 mil”: número de canhões produzidos pela Krupp às vésperas da Primeira Guerra.

“Bohlem e Halbach”: no original, “Bohlem und Halbach”. Gustav von Bohlen und Halbach (1870-1950) havia assumido a empresa após a morte do sogro (casara-se com a única filha de Krupp, Bertha). “Bohlem” é um erro tipográfico que também consta do original. Por fim, escrever “Bohlem e Halbach” é outro deslize da tradução brasileira, pois sugere aos desavisados que se trata de duas pessoas. Nos versos seguintes, Pound afirma e reafirma as similaridades entre Krupp e Schneider, que vendiam armas de forma indiscriminada. O filho e o neto de Eugène, Henri (1840-1898) e Eugène II, foram membros conservadores do parlamento.

“Chantiers de la Gironde”: estaleiro em Bordeaux que pertencia, em parte, aos Schneider. Eles também controlavam o “Banco do Paris Union” e o “banco franco-japonês”.

François de Wendel (1874-1949) foi um industrial e político de Hayange, na Lorena. Presidiu o Comité des Forges (1918-1940). “Robert Protot”: provável que Pound esteja se referindo a Robert Pinot (1862-1926), secretário-geral do Comité des Forges e autor de Comité des Forges au service de la nation (Août 1914-Novembre 1918). O Comité des Forges foi um cartel das indústrias de aço e ferro na França, ativo entre 1846 e 1940, quando foi dissolvido pelo governo de Vichy. Eugène Schneider foi seu primeiro presidente, cargo que ocupou até morrer em 1875. Sob a presidência de François de Wendel, o Comité coordenou a produção francesa de armamentos durante a Primeira Guerra. Mais abaixo, Pound menciona as cifras que o Comité pagou a três jornais parisienses; no entanto, Zappa aponta 10 milhões para Le Temps, não 30, como escreve Pound. Journal de Débats era nacionalista; Écho de Paris fazia campanha contra o desarmamento.

“Hawkwood”: do romance Il Trecentonovelle (1399), de Franco Sachetti.

“Polloks”: gíria para “poloneses”, termo comum na Pensilvânia daqueles tempos. De fato, a Schneider ajudou os poloneses a construir bases navais e vendeu canhões, aviões e metralhadoras para eles, além de emprestar dinheiro.

“faire passer (…) nation, “faça com que seus interesses prevaleçam contra os interesses da nação”.

Canto XXXVII

 

Este Canto se ocupa de Martin van Buren (1782-1862), cofundador do Partido Democrata, senador por Nova York e 8º presidente dos EUA (1837-1841).

Durante seu mandato, van Buren lidou com o Pânico de 1837, crise financeira que causou uma recessão que se arrastaria até meados a década seguinte. Uma das causas da crise remonta ao mandato do antecessor de van Buren, Andrew Jackson: o veto, em 1832, à renovação da licença do Second Bank of the United States (BUS), que operava como uma espécie de banco central e agente fiscal público (o Federal Reserve só seria criado em 1913). Sem o BUS, bancos do Oeste e do Sul passaram a emprestar dinheiro sem maiores cuidados, comprometendo suas reservas. Jackson também promulgou a “Circular do Dinheiro em Espécie” (Specie Circular, 1836), obrigando que a compra e venda de terras do Oeste fossem feitas mediante o uso de moedas de ouro e prata. A ideia era conter a especulação e a inflação, mas a Circular teve efeito contrário. Por sua vez, a Lei do Depósito e Distribuição (1836) estabeleceu que bancos de todo o país fossem abastecidos com reservas federais, o que provocou um esvaziamento dos centros financeiros localizados na costa leste — sem lastro, os bancos cortaram os empréstimos. A posse de Martin van Buren ocorreu apenas cinco semanas antes do estouro da crise. Van Buren tentou substituir o BUS por um Independent Treasury, concebido como um banco que se limitaria a depositar os recursos da União, mas a lei proposta foi bloqueada pelo Partido Whig (favorável a um banco nacional). James K. Polk, sucessor de van Buren, reapresentou a proposta em 1846, conseguindo a aprovação. O Independent Treasury seria utilizado como instrumento de administração dos recursos governamentais até a criação do Federal Reserve.

Quando da escrita desse Canto (1933), o presidente Franklin Delano Roosevelt também procurava uma forma de reformar o sistema financeiro, que fora incapaz de evitar ou conter a Grande Depressão. Assim, ele lidava com problemas similares aos enfrentados por Jackson e van Buren: o Federal Reserve deveria ser fechado? O equilíbrio entre dólar e ouro precisava ser revisto? O padrão ouro deveria ser mantido? Como proteger os pequenos correntistas, ameaçados pelas falências bancárias? Entre 5 e 13 de março de 1933, após semanas de fuga dos bancos, com as pessoas sacando todo o seu dinheiro, FDR decretou um feriado bancário e fechou todo o sistema para melhor reavaliá-lo. No dia 12, ele assegurou os correntistas de todo o país que, quando os bancos reabrissem, o dinheiro estaria seguro. As pessoas confiaram em sua palavra e, quando os bancos reabriram, depositaram o dinheiro de volta.

“metê-los na cadeia por dívidas” / “que um imigrante…”: van Buren foi senador entre 1812 e 1821. Desde então, já vociferava a favor dos pequenos correntistas e contra os banqueiros, financistas e especuladores. Durante o breve período em que foi governador de NY (entre janeiro e março de 1829), ele também apoiou a criação de um Safety Fund para proteger os correntistas de eventuais falências bancárias. O valor do dinheiro de papel era extremamente volátil, prejudicando sobretudo os trabalhadores (incluindo os imigrantes) mais pobres.

“usuário rico” (no original, “rich patroon”): um grave problema na tradução de Grünewald aqui. Em primeiro lugar, conforme observado anteriormente, o termo correto é “usurário”, não “usuário”. Mas, aqui, ele também perverte completamente o sentido original ao não traduzir “patroon” como “senhorio” ou coisa similar. Explico: conforme a antiga lei holandesa, “patroons” eram os donos de vastas porções de terras coloniais, alguém que também gozava de privilégios sociais e políticos. No estado de Nova York, a maior propriedade pertencia à família van Rensselaer. O sistema de “patroons” deixou de existir por volta da década de 1840s, quando essas grandes propriedades de terras foram gradualmente vendidas e transformadas em propriedades menores. Em sua atividade como advogado (1803-11), van Buren defendeu e protegeu pequenos proprietários de terras contra as invasões dos “patroons”.

“esprit de corps”: de um discurso de van Buren, então senador, contra os juízes da Suprema Corte.

“Os Calhouns”: John Caldwell Calhoun (1782-1850), senador pela Carolina do Sul, foi também vice-presidente de John Quincy Adams e Andrew Jackson (no primeiro mandato deste, 1825-31). As posições políticas de Calhoun (favorável aos direitos dos estados e à escravidão, contrário aos altos impostos etc.) favoreciam os estados escravagistas do Sul em detrimento dos interesses econômicos dos Norte, criando e sedimentando divisões internas (que culminariam na Guerra da Secessão). As posições de Jackson e van Buren eram mais unionistas. Foi a esposa de Calhoun, Floride, a responsável por ostracizar Peggy Eaton (Margaret O’Neill (ou O’Neale) Timberlake Eaton, esposa do Secretário da Guerra no governo Jackson, John Eaton) por questões “morais” (Peggy não teria respeitado o período convencional de luto, casando-se com Eaton nove meses após a morte do primeiro marido), escândalo que ficou conhecido como “The Petticoat Affair” (v. Canto XXXIV; “Petticoats”, “anáguas”, “combinações”). Como as discussões políticas dos membros do gabinete não raro ocorriam nas soirées das esposas (controladas por Floride), Calhoun foi capaz de criar enormes dificuldades para o governo Jackson em seus primeiros anos. Ele bloqueou a chamada “Tarifa das Abominações” (1828), tida como prejudicial para os estados do Sul. Jackson tentou, sem sucesso, convencer as esposas dos membros do gabinete a não ostracizar os Eaton. Por conseguinte, van Buren renunciou ao cargo de Secretário de Estado, forçando o restante dos membros do gabinete a fazer o mesmo. Jackson pôde, então, apontar um novo gabinete, excluindo Calhoun e seus correligionários, e governar com mais tranquilidade a partir de 1831.

O “Sr. Adams” citado é John Quincy. Pound, mais uma vez, recorre a uma entrada do diário dele, como fizera no Canto XXXIV.

“Ambrose (Sr.) Spencer”: Ambrose Spencer (1765-1848), figura política do Partido Republicano em Nova York, aliado do governador DeWitt Clinton (1769-1828). Membro da Suprema Corte de Nova York, era um adversário político de van Buren. “Sr. Van Renselaer”: Stephen van Rensselaer III (1764-1839), um “patrão” novaiorquino, republicano, um dos homens mais ricos dos EUA na época. Acreditava que o termo de residência dos contribuintes no estado deveria aumentar antes que eles pudessem votar (o cidadão precisava residir e pagar impostos no estado por um período mínimo antes de ter direito ao voto).

“extensão do direito ao voto”: discussão ocorrida em 19 de setembro de 1821 na Convenção Constituinte de Nova York. Na época, mais do que a metade dos homens estavam impedidos de votar por questões financeiras.

“Convenção Do Estado de 1821”: foram discutidas as questões da extensão do direito ao voto, o tempo dos mandatos e os poderes de veto do judiciário e do executivo. Van Buren apoiava uma maior democratização das estruturas políticas, liderando a facção dos “Bucktails” (contrários a DeWitt Clinton, Spencer e cia.).

“Dixit Spencer”, “Spencer disse”.

“Kent disse”: James Kent (1763-1847), jurista, Chief Justice (1804-1814) e chenceler de Nova York (1814-1823). Também se opunha à extensão do sufrágio.

“Tompkins”: Daniel D. Tompkins (1774-1825), governador de Nova York (1807-1817) e presidente da Convenção.

“Duas palavras”: taxação e representação. Trata-se do princípio democrático de que, se uma pessoa paga impostos, ela deve ter direito à representatividade.

“quando uma barreira…”: quando senador (1821-1829), van Buren se opunha à participação do governo federal em projetos como a construção de canais e estradas, que deveriam ser levados a cabo pelos governos locais.

“não submeter nossa conduta…”: de um discurso de van Buren quando senador, referindo-se à abolição do tráfico de escravos no Atlântico e objetando o direito dos ingleses de revistarem navios norte-americanos.

“as classes trabalhadoras (…) bancárias”: de um discurso de van Buren quando em campanha presidencial, referindo-se ao equilíbrio entre o ouro e o dinheiro de papel.

“os negociantes…”: agora, o Canto se ocupa da crise de 1837, pela qual muitos historiadores culpam as medidas fiscais tomadas por Andrew Jackson quando presidente (a não renovação do BUS, a exigência de que terras só fossem negociadas mediante pagamento em prata ou ouro (Specie Circular) e o Distribution Act, pelo qual a renda dos impostos era distribuída por 23 bancos dos estados) .

“renda para as carências do governo”: a principal preocupação de van Buren era proteger o dinheiro público, evitando que ficasse à mercê da especulação e do risco ao ser depositado nos bancos dos estados. Essa é a razão pela qual ele criou o Independent Treasury, que funcionava como um banco para depositar o dinheiro do governo, separando-o das transações ordinárias.

“… diminuir o patrocínio governamental…”: ao instituir o Independent Treasury, van Buren fez com que o governo deixasse de ter “bancos de estimação” nos estados.

“… o marinheiro / não deve ser açoitado a não ser por ordem da corte”: ordem presidencial de março de 1839.

“terra / para o colono”: van Buren era a favor de que as terras no Oeste fossem compradas a um preço menor por aqueles que a ocupassem, contrariando a política de Henry Clay (que defendia o “Sistema Americano”: terras vendidas paulatinamente para aqueles que tivessem dinheiro para comprar, aplicando os lucros em obras pelo país). Clay (1777-1852), político do Kentucky, cabeça do partido Whig, foi um adversário político de van Buren. Ele também defendia o Second Bank of the United States e, após o veto de Jackson, a criação de um novo banco nacional. Clay impediu a implementação do Independent Treasury Act durante o governo van Buren.

“Sr. Eaton”: quando Peggy ainda estava casada com seu primeiro marido, Timberlake, o pai dela faliu e teve de vender a casa em que vivia. Eaton comprou a casa em um leilão e a devolveu ao pai de Peggy.

“desregramento moral”: de um comentário de John Quincy Adams em seu diário (11 de janeiro de 1831), após ler 50 páginas da Autobiography de Jefferson.

“Servilismo”: de outra entrada no diário de John Quincy Adams (9 de setembro de 1837), após visitar o então recém-eleito van Buren.

“‘Em nenhum lugar…'”: do segundo discurso anual de Jackson perante o congresso, em 1830. Andrew Jackson (1767-1845), advogado e general do Tennessee, o 7º presidente dos EUA (1829-1837), admirado em todo o país por conta de sua vitória contra os britânicos na Batalha de Nova Orleans (1815), era tido como um representante das pessoas comuns. Van Buren foi Secretário de Estado no primeiro mandato de Jackson, e vice-presidente no segundo.

“Deram cinco anos à União”: em seu diário, John Quincy Adams discorre sobre duas conversas que teve com Henry Clay e James C. Calhoun em fevereiro de 1820. Clay previu que, em cinco anos, os EUA se fragmentariam em três confederações. Calhoun disse que, caso a União se dissolvesse, os estados do Sul deveriam se aliar à Inglaterra.

“moeda uniforme”: dito por Jackson em seu primeiro discurso anual para o congresso, referindo-se ao Second Bank.

“importariam cereais”: observado por van Buren quando do início da crise de 1837. A referência ao Banco da Inglaterra se deu quando van Buren foi pressionado para restabelecer um banco nacional.

“Sr. Webster”: Daniel Webster (1782-1852), senador por Massachusetts e membro do partido Whig. Webster fui um grande oponente das políticas de Jackson e van Buren quanto ao Second Bank. Pound cita um discurso feito não por Webster, mas por Henry Clay em 25 de setembro de 1837.

“Maccoboy”: anedota reiterada sobre certo dia no senado, em 1833, quando Daniel Webster e Henry Clay tentavam persuadir o senado dos problemas econômicos causados pela remoção dos depósitos governamentais no BUS, em setembro daquele ano. A anedota é de que Clay, dirigindo-se a van Buren, implorou que este dissesse ao presidente qual era a verdadeira situação dos norte-americanos, as “lágrimas de viúvas indefesas que não podem mais ganhar seu pão, e dos órfãos desnudos e não alimentados”. Van Buren teria ouvido o discurso com toda a atenção e, quando Clay terminou, aproximou-se deste, pediu um pouco de tabaco Maccoboy e foi embora.

“pela diminuição da dívida”: van Buren, em consonância com Jefferson, discordava da ideia de Hamilton, de que a dívida nacional seria uma “benção”.

“Marshall”: John Marshall (1755-1835), presidente da Suprema Corte (1801-35). Pound reitera o que Jefferson disse acerca dele no Canto XXXII.

“Tip an’ Tyler”: “Tip” era o General Benjamin Harrison (1773-1841), famoso pela Batalha de Tippecanoe (1811), candidato Whig, venceu van Buren na eleição de 1840; John Tyler (1790-1862) era o candidato a vice de “Tip”. Harrison morreu em abril de 1841, logo após ser empossado.

“sed aureis furculis”, “luxo, mas com garfos dourados”.

“O homem é um mau-caráter”: no original, “dough-face”. Na gíria da época, um “doughface” era um político do Norte que simpatizava com a escravidão e as políticas econômicas do Sul.

“(do banco) presidente”: Nicholas Biddle (1785-1844), financista e presidente do Second Bank of the United States (BUS).

“poder de veto”: embora a renovação do BUS tivesse sido aprovada pelas duas casas do congresso, Jackson a vetou em 10 de julho de 1832, pouco antes de disputar a reeleição. Como Jackson venceu as eleições contra o candidato do banco, Henry Clay, isso fez parecer que o povo apoiava o fechamento do banco.

“Lennox”: Robert Lennox (1759-1839), Presidente da Câmara de Comércio de Nova York.

“Hamilton”: James A. Hamilton (1788-1878), procurador novaiorquino. Filho de Alexander Hamilton, era contrário à existência do BUS.

“linha de descontos (…) Maio de 1837”: a data está incorreta; o correto é maio de 1832. Trata-se de linhas de créditos. Entre outubro de 1930 e maio de 1932, Biddle e o BUS aumentaram seus empréstimos aos estados do Oeste, julgando que os problemas causados pelo encerramento das atividades do banco (forçando, desse modo, o pagamento dos empréstimos) colocariam uma enorme pressão sobre o governo.

“Sorrento”: van Buren estava em Sorrento quando, em 1854, escreveu suas memórias.

“eu hessito”: no dia seguinte ao veto, em 11 de julho de 1832, Daniel Webster, eloquente senador por Massachusetts, fez um discurso para desacreditá-lo.

“Balanço de 4 a 5 milhões”: van Buren comenta acerca da enorme disparidade entre a renda do governo e o poder do presidente para fazer uso dela.

“verdadeiro comitê”: as atividades do BUS eram dirigidas por um comitê selecionado por Biddle, excluindo representantes do governo.

“Sr. Taney”: Roger B. Taney (1777-1864), jurista, membro da Suprema Corte, foi apontado Diretor do Tesouro por Andrew Jackson para supervisionar a remoção dos depósitos governamentais do segundo BUS. Apresentou dois relatórios sobre isso, o primeiro em dezembro de 1833, e o segundo em junho de 1834.

“Cambreling, Globe Extra 1834”: Churchill Caldom Cambreleng (1786-1862), empresário norte-americano e congressista democrata por Nova York. Em sua Autobiography, van Buren elogiou seu caráter, citando um discurso dele para jovens republicanos, publicado pelo Globe Extra.

“O Relato Pessoal de Peggy Eaton”: The Autobiography of Peggy Eaton foi publicada em 1832.

“Placuit oculis”, “agradável aos olhos”.

“Juiz Yeats”: Joseph Christopher Yates (1768-1837), jurista norte-americano e governador de Nova York

“Alex Hamilton”: já citado antes como “Sr. Hamilton”. Embora abominasse o fato de que Alexander Hamilton (1755-1804) tivesse criado o primeiro banco nacional (First Bank) dos EUA, em 1791, van Buren admirava sua coragem e sua integridade.

“compradores de lã”: reação a um célebre discurso de van Buren, “the Woollen Speech”, feito em Albany no dia 10 de julho de 1827.

“Sr. Knower”: empreendedor republicano, amigo de van Buren.

“Casa de Braintree”: embora fosse uma noção que circulasse na época, John Adams jamais foi monarquista. Braintree Massachusetts era a colônia onde os ancestrais dos Adams se estabeleceram por volta de 1632.

“procurando a luz das estrelas”: John Quincy Adams foi um grande apoiador dos projetos federais (incluindo grandes obras e construções) e instituições. Era favorável à criação de uma universidade nacional e do primeiro observatório astronômico dos EUA.

“Maldito biltre covarde”: segundo o boato, Clay teria se referido assim a Daniel Webster.

“decisão de Taney”: os meses entre o primeiro relatório de Roger Taney sobre a retirada dos depósitos governamentais do BUS, em dezembro de 1833, e a proposta de Clay para “restaurá-los” em maio de 1834.

“hic jacet fisci liberator”, “aqui jaz o libertador do tesouro”: referência à oposição de van Buren à ideia de criar um banco nacional durante a sua presidência.

Canto XXXVI

“Pede-me uma dama”: os versos 1-84 são uma tradução (ou reimaginação, como veremos) da canzone “Donna mi prega”, de Guido Cavalcanti. Canzone é um poema feito para ser cantado, com cinco estrofes de catorze versos e um envoi de cinco versos, totalizando setenta e cinco versos, todos hendecassílabos. Embora Cavalcanti inicie com a frase “Pede-me uma dama”, seu poema é uma resposta ao soneto do amigo Guido Orlandi, “Onde si muove and donde nasce l’Amore” (escrito “em nome de uma dama”). Pound traduziu o poema de Orlandi duas vezes, em Spirit of Romance e no ensaio “Cavalcanti”.

“Falar na hora azada”: um provável paralelo com o início do Canto XXXI, “Tempus loquendi / Tempus tacendi”.

“afeto” (no original, “affect”): tradução poundiana para “accidente”. Cavalcanti está respondendo a uma pergunta de Orlandi, sobre se o amor é substância, acidente (no sentido aristotélico dos termos) ou memória? A tradução de Pound não é gratuita, pois ele seguiu o “Comentário” de Dino Del Garbo, para quem “acidente” é uma “paixão”, um “apetite da alma”. Essa decisão também é coerente com a decisão de Pound de se distanciar do vocabulário filosófico usado por Cavalcanti, contaminado pelo aristotelismo e pelo averroísmo medievais, tornando o poema mais genérico e compreensível para os leitores contemporâneos.

“… de baixo cor” (no original, “low-hearted”): Cavalcanti acreditava que a capacidade de amar era algo que independia da riqueza e do berço. Assim, qualquer indivíduo podia ser superficial, desleal e inconstante, isto é, “de baixo cor“; o poema não se destina a esse tipo de gente.

“… trazer visor a tal razão”: no poema de Cavalcanti, “A tal ragione portj chonoscenza”. Ou seja, Pound passa a substituir substantivos e verbos relativos ao conhecimento por termos ligados à visão. A canzone afirma expressamente que o amor não pode ser visto.

“natural demonstração”: na época de Cavalcanti, a noção filosófica (ecoando Aristóteles via Averróis e Avicena) era de que, grosso modo, tudo o que existe no mundo natural poderia ser conhecido e demonstrado. Essa noção tinha conexões com a teologia, mas não era determinada por ela. Embora use esse vocabulário metafísico, Cavalcanti mantém uma distância subjetiva (“psicológica”) tanto da filosofia quanto da teologia então correntes. Ele nunca “engoliu” Aquino, como o próprio Pound afirma em seu ensaio “Cavalcanti”.

“Onde mora a memória”: tendo afirmado que o amor não é substância, mas acidente, Cavalcanti o localiza na memória, respondendo a outra pergunta de Orlandi, sobre onde “reside” o amor.

“diáfana”: do grego διαφανές, “transparente”. O termo aparece em uma passagem belíssima do De Anima, de Aristóteles, quando o filósofo se dispõe a explicar o que é a luz (418b3): “Existe, de fato, algo transparente, e chamo de transparente o que é visível, mas não visível por si mesmo, falando de maneira simples, mas por meio de cor alheia. Deste tipo são o ar, a água e muitos sólidos. Pois eles são transparentes não como água, nem como ar, mas porque existe neles uma certa natureza imanente que é em ambos a mesma, bem como no corpo superior eterno. Luz é a atividade disto, do transparente como transparente. E onde ele está em potência há também a treva. Luz é como que a cor do transparente, quando se torna transparente em atualidade pelo fogo ou por algo do tipo, como o corpo superior, pois nele subsiste algo que é uno e o mesmo” (tradução: Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006).

A “sombra” vinda de Marte diz respeito às influências que a astrologia associa ao planeta, tais como a impulsividade, o desejo, a violência etc.

“nome de bom senso”: no original, “sensate name”. Em Vita Nuova, Dante afirma que “os nomes são consequências das coisas” (“nomina sunt consequentia rerum”), isto é, o som de uma palavra expressa a qualidade do objeto real que lhe é correspondente.

“vertu”: “a potência, a propriedade eficiente de uma substância ou pessoa” (em Sonnets and Ballate of Guido Cavalcanti. Tradução e introdução: Ezra Pound. Londres: Stephen Swift, 1912).

“vestígio elaborado”: no original, “forméd trace”; em Cavalcanti, “formato locho”. Em uma perspectiva platônica, o “vestígio” seria da “forma vista” que tem lugar na mente do amante (na segunda estrofe: “Veio de forma vista que, entendida, / Fica e permanece / ao alcance do intelecto”).

“Nem é sabido (…) seu alvo”: aqui, Pound difere do original. Cavalcanti escreve que o amor “non si puo chonosciere per lo viso”, isto é, não é algo visível (daí a menção à cor branca, “biancho in tale obbietto chade”). Pound acrescenta a noção de luz, “branca luz”, expandindo a (ou criando outra) imagem. O amor não “é sabido pela sua face”, mas “divisado em branca luz”.

“projetado em cor”: no original, “set out from colour”. Um sumário da definição de amor oferecida por Cavalcanti na canzone: o amor é sem cor, “Fuor di cholore”, ou seja, sem forma, incorpóreo; “partido” (“essere diviso”), “dividido” a partir do ser, um acidente, não uma substância; está “em plena treva” e “[a]pascenta a luz”, é uma paixão da alma sensível e, portanto, algo diverso da (ou mesmo contrário à) razão. No entanto, é do amor que “provém mercê”.

“Apascenta a luz”: no original, “Grazeth the light”; em Cavalcanti, “Luce rade”. “Rade” é “eliminar”, “apagar”; Pound opta por “graze”, “roçar”, “arranhar”, e acrescenta a frase “um movendo-se pelo outro” (“one moving by other”) para ressaltar sua interpretação do amor como algo que se move com(o) a luz em meio à treva.

“Chamou tronos…”: Dante, Paraíso IX, 61 (fala Cunizza, amante de Sordello); “balascio”, rubi (v. Paraíso IX, 67-69).

“Eriugina”: João Escoto Erígena (ou Johannes Scotus Eriugena, c.810-877), teólogo, filósofo, poeta e tradutor irlandês, revitalizador do neoplatonismo, o qual procurou reconciliar com o cristianismo. Foi quem introduziu os “tronos” como uma ordem angelical. Autor de De Divisione Naturae.

“o que talvez explique…”: Pound cita sua fonte, o comentário de Francesco Fiorentino sobre Scotus em seu Manuale di storia della filosofia.

“maniqueus”: nova alusão à Cruzada Albigense (v. Canto XXIII), no século XIII. Os maniqueus eram seguidores do profeta iraniano Mani (216-274). O maniqueísmo foi uma religião gnóstica que se baseava na oposição de dois princípios (luz/escuridão, bem/mal). Seus adeptos foram perseguidos pelos católicos desde o século V e, à época da Cruzada Albigense, a religião já se encontrava extinta. No entanto, o papa declarou que os cátaros eram maniqueus.

“Assim desenterraram…”: de fato, De Divisione Naturae foi banido da Universidade de Paris em 1210, junto com os livros de Aristóteles. Para Pound, Scotus e Cavalcanti seriam parecidos, dois rebeldes intelectuais contrários à horrenda autoridade católica medieval.

“‘A autoridade vem da razão certa…'”: Scotus, De Divisione Naturae — “Auctoritas siqui ratione processit, ratio uero nequaquam ex auctoritate”.

“… Aquino com a cabeça mergulhada num vácuo”: se a Comédia era tida como a “Suma Teológica em versos” (dada a influência de Aquino sobre Dante), Pound ecoa o destino dos papas simoníacos no Inferno XIX, 43-120. Conforme já dito, Pound não via em Cavalcanti a mesma influência de Aquino.

“Sacrum, sacrum, inluminatio coitu”, “Sacra, sacra, a iluminação pelo coito”.

“Sua Santidade”: o papa Clemente IV (1190-1268). Com a ajuda de Carlos I, Conde de Anjou (1227-1285), Clemente conquistou a Sicília em fevereiro de 1266 (Batalha de Benevento). Em uma carta de 22 de setembro de 1266, ele lembrou o rei de seus deveres e mencionou Sordello.

“Dilectis mihi familiaris… castra Montis Odorisii / Montus Sancti Silvestri pallete et pile”, “Aos meus queridos soldados e familiares… os castelos do Monte Odorisio / Monte São Silvestre, Paglieta e Pila”: excerto do ato pelo qual Carlos I presenteou Sordello com cinco castelos nos Abruzos, em março de 1269. Alguns versos acima, o ato já é mencionado no poema, bem como (outra vez) o início da biografia medieval de Sordello (“Lo Sordels si fo di Mantovana”, “Sordello era de Mântua”).

“In partibus Thetis”, na região de Chieti, nos Abruzos; “Pratis nemoribus pascuis”, “Pradarias, florestas e pastagens”.

“… venderam o maldito lote…”: Carlos cedeu as terras em 5 de março de 1269, e Sordello as vendeu em 30 de agosto, quatro anos após Cunizza da Romano (primeiro amor de Sordello) libertar seus escravos em Florença, na casa de Cavalcante dei Cavalcanti, pai de Guido. V. Canto VI.

“Quan ben m’albir e mon ric pensamen”, “Quando penso profundamente em minhas ricas meditações”: verso do poema XXI de Sordello, “Atretan deu ben chantar finamen”.

Canto XXXV

“Mitteleuropa”: Europa Central, aqui subsumida ao Império Austro-Húngaro, cujos sinais de decadência Pound delineia no Canto. Importante ressaltar o grotesco tom antissemita de alguns trechos. Pound atribui a depauperação do referido império à presença dos judeus, e alude de forma similar à situação de Veneza pós-apogeu mais para o final do Canto (“Diga ao Vizir…”).

“Sr. Corles”: Alfred Perlès (1897-1990), judeu austríaco, poeta. Pound conheceu Perlès em Paris, em 1931. O apelido “Corles” pode ser lido como “core less”, ou seja, “sem centro”, “descentrado”. “Sr. Fidacz”: Tibor Serly (1900-78), compositor húngaro. “Nataanovitch”: Leopold Stokowski (1882-1977), maestro britânico de ascendência polonesa que Pound tomou como judeu (talvez fosse mesmo; Stokowski dava pistas confusas sobre a própria biografia como forma de se autopromover). “Fraulein Doktor”: Drª. Marie Franziska Stiasny (1887-1958), que Pound conheceu em Viena, em 1928. Segundo Terrell, ela trabalhava na livraria Wilhelm Braumüller. Também foi secretária do educador e filantropo austríaco Eugenie Schwarzwald. Sobre a menção ao Tirol, a Áustria perdeu parte dessa região para a Itália por ocasião do Tratado de Versalhes. “François Giuseppe” é, claro, o imperador austro-húngaro Franz Josef (1848-1916). “Sr. Lewinesholme”: Richard Lewinsohn (1884-1968), jornalista judeu-alemão, autor da biografia de Basil Zaharoff.

“… almoços com Dortmund”: no caso, regados a Dortmund Pils, uma cerveja alemã.

“Egéria”: conforme a mitologia, uma ninfa, consorte e conselheira de Numa Pompílio (753-673 a.C., segundo rei de Roma).

“Hall Caine”: Sir Thomas Henry Hall Caine (1853-1931), romancista inglês de grande sucesso em vida, hoje esquecido.

“dixit sic felix Elias”, “assim falou o alegre Elias”: nos versos seguintes, Pound ridiculariza um suposto sotaque judaico.

“Eljen”, “Ave” ou “Salve” (no sentido de “Ave, César” ou “Heil, Hitler”): Pound encontrou a expressão no livro Das verwundete Land (“A Pátria Ferida”), de Lajos Hatvany (1880-1961), judeu húngaro aristocrata, escritor e colecionador de arte. A história narrada a seguir também está no mesmo livro, e é recontada por Pound à sua maneira. Em todo caso, ela expõe a ideia de que um idealismo difuso e a ignorância da realidade levaram à ruína das elites políticas húngaras. A “conferência” mencionada foi uma tentativa malsucedida, realizada em Belgrado, em 7 de novembro de 1918, de se negociar um armistício entre a Hungria e a Entente. Sendo “sócia” da Áustria, a Hungria estava do lado perdedor na Primeira Guerra Mundial e, por isso, perdeu porções significativas de seu território (como a Eslováquia). Em outubro de 1918, a monarquia foi abolida no país por um golpe de estado, e Mihály Károlyi foi empossado como líder de uma república social-democrata de vida curtíssima, pois, em abril do ano seguinte, sob a liderança de Béla Kun, a Hungria se tornou uma nação comunista. Na supracitada conferência, Károlyi julgou que, ao abolir a monarquia e permitir a participação da classe trabalhadora no governo, isso estabeleceria uma base de confiança entre a Hungria e os países vencedores, ignorando (como aponta Hatvany) que a França não era pacifista, democrática e idealista, mas liderada por uma classe militarizada e aristocrática. O fracasso na conferência contribuiu para a ascensão de Béla Kun.

“Comment! Vous êtes tombé si bas?”, “O quê! Como vocês decaíram tanto?”

“General Franchet”: Louis Felix Franchet d’Espèrey (1856-1942), comandante das forças aliadas nos Balcãs. Nas negociações em novembro de 1918, disse aos húngaros que eles não seriam considerados “neutros”, mas derrotados pela Entente, e tratados dessa forma.

“VIRTUSH!”: Pound se volta para a Itália do século XV. A ideia é contrapor a desintegração dos austro-húngaros ao pragmatismo dos italianos renascentistas por meio de alguns exemplos (Mântua, 1401; Veneza, 1423; e, de passagem, Ferrara, 1502). O caso de Mântua foi descrito em um artigo de Alfonso Michielotto, publicado pela Rivista del diritto commerciale em 1931. Michielotto tentou elucidar as causas do declínio econômico da cidade ao final da Idade Média (escassez de capital e competição com outras cidades), e descreveu a tentativa de Francesco I Gonzaga de refrear a crise ouvindo sugestões dos cidadãos. Uma dessas soluções (descrita por Michielotto e abordada por Pound no Canto) foi proposta por Franciscus Abbatibus e envolvia a criação de uma câmara comercial (fontego) que emprestaria dinheiro aos fabricantes e seria paga em mercadorias (ou seja, não seria uma instituição usurária). Importante: o significado de “fontego” é explanado no Canto, embora Grünewald erre ao traduzir o original “chamber” como “sala”; trata-se, sim, da citada “câmara” (comercial). Não há registro da implementação (ou não) dessa sugestão.

“scavenzaria”: “scavezaria”, “loja”; “schavezo” (ou “scavezzo”) é relativo à venda no varejo; “inficit umbras” (Ovídio, Metamorfoses X, 596), “projeta sua sombra” (Pound associa a expressão ovidiana à prática, referida por Abbatibus, de tingir os tecidos a fim de torná-los mais atrativos aos consumidores); “una grida”, “uma proclamação”.

“Madame ὔλη”, “hilé”, “matéria”; “Madame la Porte Parure”, “de alto porte”: trata-se de apelidos poundianos para Lucrécia Borgia (v. Canto XXX).

“A Dominante”: Veneza. A referência a Vasco da Gama (1460-1524) não se dá por acaso, uma vez que a nova rota para a Índia empreendida por ele (em 1497-99), contornando a África, prejudicou Veneza (que utilizava rotas marítimas e terrestres via Mediterrâneo e Levante).

“omnes de partibus ultramarinis”, “tudo de regiões ultramarinas”. Veneza monopolizava o comércio de sal na Itália. A citação “quem comanda o mar…” é do britânico Walter Raleigh (1552-1818), explorador, corsário, espião, escritor. “Vitória”, claro, é a rainha britânica (1819-1901); Pound compara a situação dos venezianos com a da Grã-Bretanha no século XIX, cuja riqueza também dependia do comércio colonial. Foi em 1423 (não “b.c”, como coloca Grünewald, mas “d.C.”) que morreu o doge Tomasso Mocenigo (1343–1423), época em que Veneza chegou ao ápice (ele estendeu os domínios da cidade a Trentino, Friuli e Dalmácia). Em seu leito de morte, Mocenigo instou seus pares a não elegerem Francesco Foscari como o novo doge, afirmando que ele levaria Veneza a guerras dispendiosas e desnecessárias, que enfraqueceriam a cidade. Foscari foi eleito, e a previsão de Mocenigo se concretizou.

“Ragusa”: nome italiano de Dubrovnik, cidade croata às margens do Adriático.

“Tola”: tarifas sobre bens importados e exportados; “octroi”: tarifas relativas à circulação de bens produzidos e negociados internamente, isto é, dentro das fronteiras de um país; “decime”: imposto sobre a propriedade.

Canto XXXIV

O Canto XXXIV é estruturado a partir dos diários de John Quincy Adams (1767-1848), advogado, diplomata e estadista norte-americano, filho mais velho de John Adams e sexto presidente dos EUA (1825-1829).

A primeira entrada pinçada por Pound diz respeito a um jantar com Jefferson na Casa Branca, em 3 de novembro de 1807. Quincy Adams se refere a uma boa conversa que teve com o dr. Samuel Mitchell (1763-1831), referida de novo mais adiante no Canto. Na época do jantar, Quincy Adams era senador e membro do Partido Federalista, mas se aproximava de Jefferson e dos republicanos. Como resultado desse apoio, ele perderia a cadeira no senado nas eleições seguintes. Assim, a decisão de Madison de nomeá-lo embaixador dos EUA na Rússia, em 1809, talvez tenha sido uma espécie de compensação. A passagem ecoa a conversa entre Sigismundo Malatesta e Platina em Roma, na antecâmara papal, recriada no Canto XI.

“E um criado negro…”: em 5 de agosto de 1809, Quincy Adams embarcou com a família e um criado negro chamado Nelson para a Rússia, onde já estivera antes: entre os 14 e os 16 anos (1781-83), por ser fluente em francês, trabalhara como secretário de Francis Dana em São Petersburgo (note-se que Dana nunca foi reconhecido oficialmente como embaixador por Catarina, a Grande).

“Consistente com sua paz…”: Quincy Adams assegurou o czar Alexandre I que os EUA manteriam um política de neutralidade com relação à Europa, ecoando a postura de seu pai (entre os motivos pelos quais John Adams não fora reeleito presidente em 1800 está a recusa em guerrear contra a França). A ideia de não intervenção na política europeia (e, claro, da não intervenção dos europeus nas Américas, contrariando as possibilidades de recolonização e estabelecendo a noção de Destino Manifesto) seria formulada como a Doutrina Monroe em 1823.

“auf dem Wasser”, “na água”.

“En fait de commerce (…) étourdi”, “Em questões comerciais, esse (Bonaparte) é um tonto”.

“Romanzoff”: Nikolai Petrovich Rumyantsev (1754-1826), ministro russo das relações exteriores.

“São os únicos membros…”: o general espanhol Pardo e Joseph de Maistre.

“Abade Delile”: Jacques Delille (1738-1813), poeta e classicista francês.

“Monsieur Adams (…) vu”, “Senhor Adams, não vejo o senhor há um século”.

“un peu interessantes”, “de pouco interesse”.

Oranienbaum: residência imperial nos arredores de Petersburgo.

“Ld Cathcart”: William Shaw, 1º Lorde de Cathcart (1755-1843), embaixador britânico na Rússia. “Madame de Staël”: Germaine de Staël (1766-1817), intelectual francesa, filha de Jacques Necker, banqueiro suíço e ministro da economia de Luís XVI.

“Qu-il fit la sottise de Moscou”, “Que ele cometeu a tolice de Moscou”: no caso, a ideia desastrosa que teve Napoleão de tomar Moscou.

“Sr. Gallatin”: a Rússia se dispôs a mediar as negociações de paz entre os EUA e a Inglaterra, procurando encerrar a Guerra de 1812. Madison enviou Albert Gallatin e James Bayard para se juntar a Quincy Adams, mas os britânicos não quiseram iniciar as tratativas. A paz só seria selada em Ghent, na véspera do Natal de 1814. Como a notícia do tratado só chegou aos EUA semanas depois, ainda foi travada a Batalha de Nova Orleans (8 de janeiro de 1815), em que as forças norte-americanas, lideradas pelo Andrew Jackson, impediram que os britânicos invadissem a Louisiana. O Tratado de Ghent só seria ratificado pelo senado dos EUA em 16 de fevereiro.

“Na ópera”: Quincy Adams assistiu a Tamerlano, ópera de Peter von Winter, e ao balé Télémaque, de Boïeldieu, em 14 de março de 1815. Bonaparte havia fugido de Elba em 25 de fevereiro e “era esperado” em Paris. A entrada relativa à ida de Quincy Adams à ópera sugere que ele estava em Paris por esses dias.

“Ney”: Michel Ney (1769-1815), comandante militar francês, um dos dezoito ou Marechais do Império nomeados por Napoleão (a designação anterior, “Marechal de França”, fora abolida pela Revolução). Embora tivesse jurado proteger a Casa de Bourbon e Luís XVIII, ao reencontrar o velho comandante em Auxerre, Ney desertou e lutou ao lado de Bonaparte até o fim. Após a derrota em Waterloo, Ney foi executado como traidor por ordem de Luís XVIII.

“Rei de Roma”: François Charles Joseph Napoleon (1811-32), filho de Bonaparte com sua segunda esposa, Marie Louise.

“Vinte de março”: em 20 de março de 1815, Bonaparte chegou a Paris (Quincy Adams circulou pelas ruas da cidade para observar a reação das pessoas). No dia anterior, o exército real desertara em nome dele. A despeito de ter jurado na Séance royale (reunião com a Assembleia Nacional) que morreria defendendo a França, Luís XVIII fugiu para Ghent pela estrada de Beauvais, e lá ficou durante os cem dias de governo de Bonaparte.

“Ah vouis, vive le Roi”, “Ah, sim, vida longa ao Rei”.

“James Mackintosh”: Quincy Adams, Gallatin e outros chegaram a Londres para negociar um tratado com os britânicos em 25 de maio de 1815. Dias depois, em 2 de junho, em um jantar na Holland House com Sir James Mackintosh, membro do parlamento, este perguntou se era verdade que Benjamin Franklin fora sincero ao lamentar a revolução. A resposta de Quincy Adams está nos versos seguintes.

“(E no seu retorno…)”: Pound assume a narração nos versos entre parênteses para demonstrar que os comentários tolos feitos para Mackintosh não afetaram a reputação de Quincy Adams nos EUA. E, de fato, em 11 de agosto de 1817, ele foi recepcionado em Nova York com um jantar oferecido por Gouverneur Morris (Grünewald comete um erro aqui: “Gouverneur” era o nome desse que foi um dos Pais Fundadores, autor do preâmbulo de Constituição americana e, por isso, apelidado de “Penman of the Constitution”; Morris jamais foi governador de Nova York, mas, sim, senador por esse estado) e John Jacob Astor (1763-1848), homem de negócios que fez fortuna negociando peles e imóveis. Quincy Adams fora chamado de volta aos EUA para se tornar Secretário de Estado do presidente James Monroe (referido mais à frente apenas como “Presidente”).

“Sr. Onis”: Don Luis de Onís y González-Vera (1762-1827), diplomata espanhol, serviu como embaixador nos EUA entre 1809 e 1819.

“Sr. Madison”: voltamos à conversa entre Quincy Adams e o Dr. Mitchell. A convenção de (17)87 resultou na promulgação da constituição americana, tendo Madison (que ajudara a conceber a constituição da Virgínia onze anos antes) desempenhado um papel importantíssimo no processo.

“Sr. Bagot”: Charles Bagot (1781-1843), diplomata britânico, embaixador nos EUA, Rússia e Países Baixos. A verdadeira avaliação que Quincy Adams fazia dele não é tão sarcástica quanto sugere o trecho citado.

De Witt Clinton (1769-1828) foi senador, prefeito de Nova York e governador do estado de NY, sendo responsável pela construção do Canal de Erie. Candidatou-se a presidente em 1812, perdendo a eleição para o incumbente James Madison. Quincy Adams traça um retrato bastante desfavorável de Clinton em seus diários, como se vê nesse trecho do Canto.

“Coronel Johnson”: Richard Mentor Johnson (1780-1850), membro da Casa dos Representantes (1807-19) e do senado (1819-29), propôs a Quincy Adams que os EUA vendessem armas para o exército revolucionário de Simon Bolívar usando um amigo, o jornalista William Duane (1760-1835), como intermediário do negócio.

“secretissime”, “secretíssimo”: outra proposta feita ao governo dos EUA, de que cedessem soldados para Bolívar ao mesmo tempo em que alegassem neutralidade. Quincy Adams negou.

“à venda”: quando se tornou claro, na primavera de 1820, que Monroe seria reeleito, a única questão aberta dizia respeito à vice-presidência. Daniel D. Tomkins seria reeleito como tal, mas, antes, o “Sr. Clay” (Henry Clay, 1777-1852, presidente do congresso) tinha esperanças de ocupar o cargo.

“Sr. Calhoun”: John Caldwell Calhoun (1782-1850), senador pela Carolina do Sul, foi também vice-presidente de John Quincy Adams e Andrew Jackson no primeiro mandato deste, 1825-31 (sobre Calhoun, v. Canto XXXVII). “Sr. Noah”: Mordecai Noah (1785-1859), jornalista e diplomata, tentou estabelecer uma comunidade judaica perto de Buffalo, a cidade de Ararat (cuja pedra fundamental foi lançada em setembro de 1825). Eventualmente, abandonou o projeto. Há outra menção à Ararat e Noah na parte final do Canto.

“George”: o filho mais velho de Quincy Adams, George Washington Adams (1801-1829). George Clinton (1739-1812), soldado, advogado e estadista novaiorquino, republicano, governador de NY (1777-95) e vice-presidente de Thomas Jefferson e James Madison (1805-12). Elbridge Gerry (1744-1814), estadista de Massachusetts, vice-presidente de James Madison (1813-14) após a morte de George Clinton. Gerry participou da criação e da aprovação da Declaração dos Direitos dos Estados Unidos.

“Monumentos bem modestos”: Quincy Adams achava que os EUA deviam construir um memorial para enterrar os Pais Fundadores.

“semi-educado (…) interesses europeus”: resumo da crise internacional de 1823 que levou à criação da Doutrina Monroe.

“Interfere em seu encargo oficial?”: em 16 de junho de 1826, Quincy Adams foi chamado para decidir sobre as limitações da intervenção governamental.

“‘Sylva’, de Evelyn”: John Evelyn, Sylva, Or A Discourse on Forest Trees and the Propagation of Timber in His Majesty’s Dominions (1664).

“Algum sentimento ao partir”: Quincy Adams, a exemplo do pai, não conseguiu se reeleger. A entrada de 16 de março de 1829 narra esse encontro com Henry Clay.

“A Sra. Eaton”: o escândalo envolvendo membros do gabinete de Andrew Jackson e suas respectivas esposas, o “Petticoat Affair”, estourou em 1829, logo no começo do governo Jackson, e é abordado por Pound no Canto XXXVII. Em resumo: lideradas por Floride, esposa do vice-presidente John C. Calhoun, essas mulheres (as “Petticoats”, “anáguas”, “combinações”) ostracizaram John Eaton, então Secretário da Guerra, e sua esposa, Margaret O’Neill (ou O’Neale) Timberlake Eaton (Peggy Eaton), por desaprovarem as circunstâncias de seu casamento (ela não teria respeitado o período convencional de luto, casando-se com Eaton nove meses após a morte do primeiro marido). Para as “Petticoats”, Peggy Eaton não estava à altura dos “padrões morais” de uma esposa de membro de gabinete. Como as discussões políticas dos membros do gabinete não raro ocorriam nas soirées das esposas (controladas por Floride), Calhoun foi capaz de criar enormes dificuldades para o governo Jackson em seus primeiros anos. Ele bloqueou a chamada “Tarifa das Abominações” (1828), por exemplo, tida como prejudicial para os estados do Sul. Jackson tentou, sem sucesso, convencer as esposas dos membros do gabinete a não ostracizar os Eaton. Por conseguinte, van Buren renunciou ao cargo de Secretário de Estado, forçando o restante dos membros do gabinete a fazer o mesmo. Jackson pôde, então, apontar um novo gabinete, excluindo Calhoun e seus correligionários, e governar com mais tranquilidade a partir de 1831. No fim das contas, o escândalo facilitou a ascensão de Martin van Buren à presidência, além de arruinar as pretensões políticas de Calhoun.

Nicholas Biddle (1785-1844), presidente do Second Bank of the United States. Eleito para o congresso em 1831 (“assento Número 203”) por Massachusetts, Quincy Adams vendeu suas ações para evitar conflitos de interesses.

“Srta. Martineau”: Harriet Martineau (1802-76), escritora inglesa, autora de Illustrations of Political Economy (1832-4). Quincy Adams a visitou em 18 de janeiro de 1835. Em seu diário, errou o título do livro (erro reiterado por Pound).

“Os velhos estados…”: comentário de Quincy Adams sobre o célebre debate entre Daniel Webster, senador por Massachusetts, e Robert Y. Hayne, senador pela Carolina do Sul, ocorrido entre 19 e 27 de janeiro de 1830, acerca das tarifas protecionistas. A “Segunda Réplica de Webster para Hayne”, comentada por Quincy Adams, é tida como o discurso mais eloquente da história do congresso dos EUA. A descrição do governo como algo “feito pelo povo, para o povo etc.” foi parafraseada por Lincoln em Gettysburg.

“Legaré”: Hugh Swinton Legaré (1797-1843), advogado e político da Carolina do Sul. No entanto, isso que Pound atribui a ele foi dito pelo congressista Andrew Pickens (o que foi corretamente anotado no diário por Quincy Adams).

“Clubes de Tippecanoe”: criados para celebrar a vitória de William Henry Harrison (1773-1841) contra uma confederação de tribos nativas” em Tippecanoe Creek, no território de Indiana (1811). Esses clubes foram importantes para a eleição de Harrison (que morreria no 31º dia de seu mandato em função de uma pneumonia). Da janela de sua casa, Quincy Adams assistiu ao desfile no dia da posse de Harrison, conforme mencionado mais à frente (“Harrison sobre um cavalo de triste aspecto”).

“O mundo, a carne…”: entrada no diário de 29 de março de 1841, escrita após Quincy Adams defender os escravos do Amistad perante a Suprema Corte em 24 de fevereiro e 1º de março daquele ano. Steven Spielberg dirigiu um filme a respeito disso, homônimo do navio.

“haec sunt infamiae”, “essas são as infâmias”.

“Esses são os pecados da Georgia”: referência à maneira como a nação Cherokee, após ser distribuída pela Georgia conforme o Tratado de New Echota (1835), foi forçada a se realocar para o Território Indígena (hoje, Oklahoma) entre 1836 e 1839. Isso se deu durante a presidência de Van Buren, e o militar responsável pela realocação foi o General Wingfield Scott (referido como “Scott” no Canto). Os desrespeitos aos tratados e as realocações forçadas de nativos norte-americanos causaram diversos problemas e confrontos no século XIX, como a Guerra dos Nez Perce (magnificamente narrada por William T. Vollmann no romance The Dying Grass).

“Buchanan”: James Buchanan (1791-1869), presidente dos EUA entre 1857 e 1861.

“O Sr. Dan Webster parlapateando”: em uma entrada de 7 de junho de 1843, Quincy Adams comentou em seu diário sobre a inauguração de um monumento em Boston dedicado à Batalha de Bunker Hill (17 de junho de 1775).

“A procissão dos bombeiros…”: em julho de 1843, Quincy Adams fez duas viagens ao meio-oeste e foi recebido com discursos, festejos e procissões.

“Morse”: Samuel Finley Morse (1791-1872), norte-americano que inventou o telégrafo. Quincy Adams ficou maravilhado com a rapidez com que as mensagens passaram a ser transmitidas.

O ideograma ao lado, usado por Pound no encerramento do Canto, é o xin ou hsin e significa “integridade, confiança, sinceridade”.

“Constans proposito… / Justum et Tenacem”, “Firme no propósito… / Justo e tenaz”: Horácio, Odes III.3. Uma paráfrase desses versos estava inscrita em um anel com que Quincy Adams foi presenteado: “To John Quincy Adams, Justum et tenacem propositi virum” [homem de vontade correta e vigorosa]. Ele ficou até envergonhado pela grande alegria que sentiu ao receber esse presente. É a última entrada em seu diário, datada de 13 de março de 1845.

Canto XXXIII

“Quincey”: outrora ligada a Braintree (e identificada como tal), Quincy é a cidade natal de John Adams e está localizada a cerca de 13 quilômetros de Boston. Depois de apear da presidência, Adams se retirou para a sua fazenda na região. Entre 1812 e sua morte, ele se reaproximou de Thomas Jefferson e manteve com ele uma intensa correspondência. Ambos morreram no mesmo dia, 4 de julho de 1826.

“Se as tropas pudessem…”: carta de Jefferson para Patrick Henry (1736-99), então (março de 1779) governador da Virgínia, na qual tentava convencê-lo, por questões humanitárias e econômicas, a não transferir os prisioneiros de guerra britânicos capturados na Batalha de Saratoga (outubro de 1777) e mantidos no condado de Albemarle.

“cerca de vinte e cinco milhões de pessoas…”: de uma carta de Adams para Jefferson de setembro de 1813 (não 1815, como escreve Pound mais à frente). Nela, fica clara outra discordância entre os dois homens, acerca da possibilidade de se alcançar uma autêntica democracia republicana, escapando da corrupção do sistema e do despotismo aludido no início do Canto. Jefferson era contrário à concentração de poder nas mãos do poder executivo, coisa que Adams julgava necessária.

“garanhões de Teógnis”: alusão ao poeta grego Teógnis de Mégara (570-485 a.C.). Leia AQUI um bom texto sobre ele.

“Chanceler Livingston e o General Humphries”: Robert Livingston (1746-1813), advogado, político e diplomata novaiorquino, era chamado de “chanceler” por ter chefiado o escritório jurídico do estado de Nova York por um quarto de século. Ele integrou o comitê que escreveu a Declaração de Independência. David Humphreys (1752-1818), militar e empreendedor de Connecticut, foi coronel do exército durante a Revolução, ajudante de ordens de Washington e diplomata em Portugal e na Espanha. Em 1802, levou ovelhas da raça merino da Espanha para os EUA, sendo considerado o “pai” da indústria de lã norte-americana.

“kalos k’agathos”, “belo e bom”.

“diferença atribuída…”: de uma carta de Jefferson para Giovanni Fabbroni (v. Canto XXI). Em outra carta citada a seguir, Jefferson sugere a Adams procurar o Grão-Duque de Toscana (na época, Pietro Leopoldo, 1747-92) com vistas a conseguir ajuda financeira para a Guerra de Independência (Adams viajara à Europa com esse objetivo). A menção a Franklin não é por acaso, uma vez que ele gozava de excelente reputação na Europa.

“antes de Lexington”: em 19 abril de 1775, a primeira batalha da Guerra de Independência ocorreu nessa cidadezinha próxima de Boston.

“a remoção seria necessária…”: Pound retorna à carta de Jefferson para Henry.

“Bonaparte, Pobre Diabo!”: pouco antes de Adams escrever essa carta para Jefferson, Bonaparte perdeu a Batalha de Waterloo (18 de junho de 1815) para o general Wellington. A seguir, não se sabe a qual Cromwell o poema se refere: Oliver Cromwell (1599-1658) ou Thomas Cromwell (1485-1540)? Acerca deste último, sugiro a estupenda trilogia Wolf Hall, de Hilary Mantel. Escrevi sobre os dois primeiros volumes AQUI. Wat Tyler (1341-1381), líder da rebelião camponesa de 1381, foi apunhalado pelo prefeito de Londres ao se encontrar com Ricardo II (então com 14 anos) para negociar o fim da sublevação. Conseguiu fugir, mas foi capturado e decapitado. Jack Cade (?-1450) liderou uma rebelião contra Henrique VI em 1450. Ferido ao ser capturado, morreu antes de chegar a Londres para o julgamento. Sobre Arthur Wellesley, 1º Duque de Wellington (1769-1852), já citado anteriormente, e ao contrário do que diz Adams, não era “desprezado por todos os barões, condes” etc. por conta de sua origem irlandesa, tanto que foi considerado um herói nacional e chegou ao cargo de primeiro-ministro. O termo “parvenu” vem do francês “parvenue”, “arrivista”.

“Litterae nihil sanantes”, “a literatura não cura nada”: ao comentar sobre as pesquisas de Jefferson acerca dos povos originários, Adams explicita seu ceticismo para com esse tipo de construção teórica. A mesma atitude pode ser observada mais adiante no Canto, em sua avaliação (negativa) de Platão. Em seguida, ele remete à história de Cadmo e à fundação de Tebas, “se os dentes da serpente produziram homens” (Metamorfoses III, 1-130), referidas no Canto XXVII.

“… nessa violenta tempestade de neve”: no começo da carta para Jefferson (1813), Adams comenta sobre tropas norte-americanas que enfrentaram uma nevasca durante a guerra contra os britânicos (1812-15).

“os velhos Whigs”: referência ao partido britânico, pois, na época dessa carta de Adams (1816), o partido Whig ainda não existia nos EUA.

“pais desta geração”: Pound cita Karl Marx para se referir às consequências hediondas da escravidão para a Grã-Bretanha no século XIX. Em seguida, alude à desregulamentação do trabalho nas fábricas e à falta de pessoal para inspecionar as instalações e o uso de mão-de-obra (inclusive infantil) em condições subumanas.

“Rogier”: Charles Latour Rogier (1800-1885), estadista belga. Marx se refere à situação na Bélgica para corroborar a falta de regulamentação e o uso de mão-de-obra infantil nas fábricas britânicas. Charles Augustus Ellis, Barão Howard de Welden (1799-1868), foi um diplomata inglês.

“Factory Act”: uma das várias leis aprovadas pelo parlamento inglês no decorrer do século XIX para regulamentar as condições de trabalho fabril. No Capital, Marx demonstra como os industriais driblavam essas leis. John Cam Hobhouse (1786-1869), político liberal britânico, promoveu atos legislatórios em 1825 e 1831 destinados a controlar o trabalho infantil e impedir que donos de fábricas pudessem julgar os próprios casos nos tribunais. Leonard Horner (1785-1864) foi um reformador inglês e inspetor do Factory Act de 1848.

“avenement (…) (allemand)”, “a chegada da revolução alemã trouxe novos problemas, o comércio rotineiro [a] ser substituído pela criação de dois fundos, ouro e trigo, destinados ao vitorioso proletariado (alemão)”: o texto citado em francês tem alguns erros gramaticais. A passagem diz respeito à certeza de Stálin de que a revolução comunista na Alemanha era inevitável, e que a URSS devia estar pronta para enviar ajuda.

“bureaucrat paisible (…) sanguinaire”, “Van Tsin Vei, um burocrata pacífico, provou-se bastante incapaz de liderar uma revolução sangrenta”: Wang Jinwei (1883-1944), político chinês, líder do Kuomingtang, Partido Nacionalista Chinês, distanciou-se dos comunistas com o passar do tempo, a despeito de seu apreço pela influência soviética na década de 1920. Besedovsky o chamou de “burocrata pacífico” a fim de dissociá-lo de seu rival, Chiang Kai-Shek, responsável pela unificação da China por meio das armas. Chiang era totalmente imune à influência comunista reinante no partido, ao passo que os agentes de Stálin consideravam Wang muito influenciável. “Monsieur Bessedovsky”: Grigori Zinovyevich Besedovsky (1896-1963), diplomata soviético, serviu na Alemanha, na França e no Japão nos anos 1920. Desertou e fugiu para a França em 1930, ano em que publicou suas memórias, traduzidas para o francês com o título Oui, j’accuse!. Alguns pesquisadores afirmam que a deserção foi falsa, e que Besedovsky (por meio dos livros que publicou) era um agente da propaganda soviética. O retrato de Stálin nas memórias, contudo, não é simpático ao líder soviético.

“Faturas descontadas em taxas exorbitantes…”: com referência às relações comerciais entre a URSS e a Inglaterra, Besedovsky explica que Stálin optou por pagar as contas do país com juros extorsivos, em vez de negociar empréstimos maiores (e taxas menores) com o Midland Bank. Segundo Besedovsky, Stálin temia que relações comerciais mais profundas e harmoniosas poderiam levar à perda do vigor revolucionário. As consequências dessa postura para a população russa foram monstruosas, além de facilitar esquemas de corrupção entre os parceiros comerciais ingleses e os comissários soviéticos, que superfaturavam as transações. A política stalinista de promover revoluções na Alemanha, na China, na França e na Inglaterra também dificultou as relações comerciais da URSS, custo que foi pago pela população mais pobre. Por meio dessas citações, Pound cria um contraste enorme entre a cretinice de Stálin e a inteligência de Adams e Jefferson, evidenciada anteriormente.

“e ele até”: “ele” é William P. G. Harding, presidente do conselho do Federal Reserve em 1920. Pound, aqui, passa a outra fonte: o discurso de S. W. Brookhart (1869-1944) no senado dos EUA em 25 de fevereiro de 1931. Brookhart referiu-se a uma reunião do conselho do Federal Reserve em 1920 para argumentar que “a deflação é um crime” que não deveria ser repetido. Desse modo, ele se posicionou contrariamente à eleição de Eugene Meyer como novo presidente do conselho em 1931, entendendo que Meyer daria continuidade à política deflacionária instituída por Harding.

“Swiftarmoursinclair” Gustavus Franklin Swift (1839-1903) e Philip Danforth Armour (1832-1901) eram rivais na indústria da carne em Chicago. Swift foi o primeiro açougueiro a processar carne na cidade e distribuí-la para outras cidades usando vagões de trem refrigerados. Em 1931, suas empresas eram líderes na indústria. A Sinclair Oil Corporation foi fundada por Harry F. Sinclair em maio de 1916, em Nova York. Essas três empresas sobreviveram à Grande Depressão e ainda existem. A referência à superinflação diz respeito à reunião do conselho do Federal Reserve que decidiu subir os juros a fim de conter a inflação. Óbvio que os banqueiros presentes vazaram a informação aos seus maiores clientes, que puderem contrair empréstimos a juros mais baixos antes que a decisão do conselho fosse colocada em prática.

Canto XXXII

“… nas cabeças do povo”: lendo a correspondência de John Adams, Pound entendeu que ele acreditava que a verdadeira revolução se dá na mente do povo, o que já teria ocorrido quando a Revolução propriamente dita teve início.

“Amphitrite”: embarcação enviada em 1777 por Pierre Beaumarchais com armas, munições e mantimentos para os revolucionários norte-americanos.

“et des dettes des dites Echelles”, “e as dívidas das chamadas Echelles”: os portos na região do Mediterrâneo. Controlados na época pelo Império Otomano, cujo sultão abriu mão de algumas prerrogativas em favor da França (“Capitulações”). O domínio francês trouxe grande prosperidade ao país, mas terminou com a Revolução e a ascensão de Napoleão. Os britânicos, então, controlariam a região até meados do século XX.

“dans les arrêts principaux du Conseil, decembre ’soixante-six”, “nos principais decretos do Conselho, dezembro de [17]66”: na verdade, esses decretos (relativos a uma reforma administrativa nas Echelles) datam de 1776.

“armes et autre ustenciles qui ne peuvent être que pour/ le compte du gouvernement”, “armas e outros utensílios [que] só podem ser por conta do governo”: em 1776, com vistas a recuperar sua posição na Índia (perdida para a Grã-Bretanha na Guerra dos Sete Anos), a França enviou o diplomata Saint Lubin (citado a seguir como “Monsieur Saint-Libin”) para a Índia no navio Sartine (homônimo do então ministro responsável pela marinha do país), repleto de armas e munições para auxiliar os locais a guerrear contra os britânicos. A missão de Saint Lubin (armar e auxiliar os Marathas e restaurar as possessões coloniais francesas) fracassou desastrosamente. Ao retornar para a França, em 1780, ele foi encarcerado na Bastilha. Saint Lubin seria, então, uma espécie de Beaumarchais malsucedido — e possivelmente um traidor.

“très au fait des langues du Pays, connu des Nababs”, “muito bem informado acerca das línguas desse país, conhecido pelos nababos”: as “credenciais” de Saint Lubin; “nababos” eram os governantes indianos locais ou provinciais (depois, o termo passou a ser também usado para se referir a ocidentais que ocupavam posições importantes na Índia).

Hyder Ali (1722-82) foi um príncipe indiano do estado de Mysore. Lutou contra a Companhia Britânica das Índias Orientais em duas guerras (1767-69 e 1780-84). Seria, então, uma espécie de Washington indiano. Saint Lubin (à diferença de Beamarchais) traiu os indianos, recusando-se a vender munição para Ali (é possível, então, que o francês fosse um agente duplo).

“pour l’exciter et à tailler des croupières to the Anglois… / … peu délicat sur les moyens”, “para incitá-lo a seguir firme nos calcanhares dos ingleses… / … sem delicadeza quanto aos meios”.

“para romper nossos laços”: Pound muda a perspectiva narrativa para um espião inglês reportando as operações navais francesas na América do Norte e na Índia. A referência aos portugueses (“portuburros”) diz respeito à tentativa francesa de romper a aliança entre Portugal e Inglaterra, que colaboravam há séculos.

“Burr”: Aaron Burr (1756-1836), revolucionário e político, vice-presidente no primeiro mandato de Jefferson (1801-5). Acusado, em 1805, de conspirar para tomar territórios da Espanha além do Mississippi e constituir um novo estado no sudoeste, foi julgado e absolvido por falta de provas. No romance Burr, Gore Vidal oferece um relato contrário à iconografia tradicional do período, sobretudo em relação aos Pais Fundadores e ao próprio personagem-título. Ele não teria “interesse no canal de Ohio”, isto é, a expedição que ele organizou na região disfarçaria seus objetivos reais, segundo testemunhas. (A imagem que ilustra a postagem é de Burr.)

“coram non judice”, “não perante um juiz”: intimado, Jefferson se recusou a comparecer pessoalmente no julgamento de Burr (“privilégio executivo”), mas enviou os documentos que o juiz solicitou (embora editados).

“rectus in curia”, “correto do ponto de vista legal”: de uma carta de Jefferson para William Short, embaixador dos EUA na corte do czar Alexandre I (1777-1825). Ao final de seu último mandato, Jefferson tentou estender a permanência de Short na Rússia, mas sua decisão foi indeferida pelo Congresso e Short teve de retornar.

“Se retornar a nós…”: de uma carta de Jefferson para Pierre Dupont de Nemours, também ao final de sua presidência. Remete ao apelo similar de Sigismundo Malatesta a Pierfrancesco de Medici em 1463, citado no Canto XI.

“… muito se deseja que a guerra seja / evitada”: de uma carta de Jefferson para James Madison. O confronto a ser evitado seria contra a Inglaterra, que acossava o comércio marítimo dos EUA; isso não foi possível. A guerra se prolongou de 1812 a 1814, e foi encerrada com o Tratado de Ghent.

“fundição de tipos”: outra carta de Jefferson para Nemours, que providenciou o antimônio necessário. Anos depois, descobriu-se a substância em Vermont.

“para civilizar os índios”: carta de Jefferson para James Jay, na qual deplora a maneira como os povos originários eram “civilizados” (por meio do missionarismo religioso)

“… e como tantos”: alertado por um amigo acerca de um sermão agressivo feito por um clérigo, Jefferson respondeu que não se importava com esse tipo de ataque, e que o processo contra o agressor deveria ser extinto.

“quanto esse incansável trabalho…”: em carta para o juiz William Johnson, empenhado em escrever uma histórias dos partidos federalista e republicano, Jefferson delineia as diferenças entre esses partidos.

“seja num chiqueiro…”: de uma carta de Jefferson para John Langdon, que também será citada na parte final do Canto, sobre as visões do primeiro acerca da política externa. A frase “Os canibais da Europa estão de novo…” é de John Adams, e Pound também a usa para remeter à situação na Europa quando escrevia o Canto (início dos anos 1930). Em seguida, ele volta a citar Jefferson e sua visão das cabeças coroadas do Velho Continente, ressaltando o pacifismo do presidente norte-americano.

“Juiz Marshall”: John Marshall (1755-1835), jurista norte-americano e presidente da Suprema Corte (1801-1835), à qual foi indicado por John Adams. Jefferson teve uma relação problemática com Marshall, o juiz que o intimou a depor no julgamento de Burr e exigiu que apresentasse documentos particulares no processo.

“pelo qual permanecemos…”: após listar os monarcas europeus na carta para Langdon, Jefferson compara as monarquias hereditárias à criação de animais, afirmando que a endogamia leva à ruína.

“à guisa de leon (…) quando si posa”: Dante, Purgatório VI, 65-66. Refere-se ao encontro de Dante com Sordello, “sempre guardando / de leão pousado a figura altaneira”. Ao reconhecer Virgílio, outro mantuano, o patriota Sordello inspira esse mesmo sentimento em Dante, que se posiciona contra os imperadores e as rixas entre os italianos.

Onze novos Cantos (1934)

CANTO XXXI
Correspondências de Thomas Jefferson.
Nascimento e estabelecimento dos EUA.

CANTO XXXII
Mais correspondências de Jefferson.
Beaumarchais contraposto ao traidor Saint Lubin.
O julgamento de Aaron Burr.
Diatribe de Jefferson contra as monarquias.
No Purgatório, Dante encontra Sordello.

CANTO XXXIII
John Adams se corresponde com Jefferson:
humanidade e inteligência econômica.
“Bonaparte, Pobre Diabo!”
Consequências hediondas da escravidão e da desregulamentação
do trabalho fabril na Inglaterra (Marx).
Besedovsky sobre a burrice criminosa de Stálin.
A política de juros do Federal Reserve nos 1920s.

CANTO XXXIV
Os diários de John Quincy Adams:
toda uma vida e acontecimentos importantíssimos
da história dos EUA e da Europa
repassados a partir desses registros.

CANTO XXXV
Antissemitismo dando as caras.
A desintegração do império Austro-Húngaro
contraposta ao engenho italiano no século XV.
Veneza: Mocenigo.

CANTO XXXVI
Tradução de “Donna mi prega”, de Guido Cavalcanti.
Johannes Scotus Eriugena e Guido, rebeldes.
Sordello vende “o maldito lote”.

CANTO XXXVII
Martin van Buren.
Pânico de 1837.

CANTO XXXVIII
Exaustão europeia:
Filipe IV, Cunard, Guilherme II etc.
Indústria armamentista: Akers, Krupp, Schneider.
Negócios em primeiro lugar,
e as nações que se explodam.

CANTO XXXIX
Circe, mas também Olga Rudge.
Pound lê uma tradução latina da Odisseia.
Ele se rende a Circe/Olga, e com ela se deita.

CANTO XL
Da corrupção nos EUA da Gilded Age
ao Periplus Hannonis.

CANTO XLI
Mussolini se diverte com o antissemitismo de Pound.
Uzzano, Baur, Sarfatti.
Mais cartas de Jefferson.

Canto XXXI

Este e os três Cantos seguintes utilizam como base as cartas e outros escritos de Thomas Jefferson, John Adams, John Quincy Adams, Andrew Jackson, Martin Van Buren e outros políticos proeminentes para abordar o surgimento dos Estados Unidos e o desenvolvimento de seu sistema bancário. A citação do lema malatestiano (ver próximo parágrafo) serve para sublinhar Jefferson e Malatesta como indivíduos importantes nas histórias de seus respectivos países. Pound liga o “renascimento” italiano ao nascimento dos EUA, portanto.

“Tempus loquendi / Tempus tacendi”, “tempo para falar, tempo para calar”: o lema pessoal de Sigismundo Malatesta está gravado no Templo Malatestiano, sobre a tumba de Isotta degli Atti, e na Sala Malatestiana no castelo Gradara. A inspiração vem do Eclesiastes 3, 7: “tempo de calar, / e tempo de falar”.

“Sr. Jefferson”: Thomas Jefferson (1743-1826), autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos e terceiro presidente do país (1801-1809). Nesse Canto, Pound traça um retrato de Jefferson a partir de suas cartas, além de utilizar duas missivas de John Adams e uma breve citação de James Madison. Os períodos enfocados (sem ordem cronológica) são anteriores e posteriores ao exercício da presidência por ele: 1785-1801 e 1811-1824.

“traje moderno para a sua estátua”: a citação é de uma carta de Jefferson para George Washington, quando este era presidente dos EUA e o primeiro, embaixador (“ministro”) em Paris.

“…..nenhum escravo ao norte do distrito de Maryland”: a linha de demarcação dos estados de Maryland, Pennsylvania e Delaware foi feita por Charles Mason e Jeremiah Dixon em uma expedição ocorrida entre 1763 e 1767. A linha Mason-Dixon passou a separar os estados sulistas e escravistas dos estados ao norte, os quais não possuíam escravos. O romance Mason & Dixon, de Thomas Pynchon, aborda (à maneira de Pynchon, claro) a história dessa expedição.

“Sr. Bushnell”: David Bushnell (1740-1826), inventor de Connecticut. Ele, de fato, inventou uma espécie de submarino movido a propulsão por hélice (o “Turtle”) em 1775.

“Sr. Adams”: John Adams (1735-1826), um dos Pais Fundadores e segundo presidente dos EUA (1796-1800). Junto com Jefferson e Franklin, concebeu a Declaração de Independência apresentada ao Congresso em Filadélfia no dia 26 de junho de 1776. Teve uma importância enorme na Guerra Revolucionária (ou de Independência, 1775-1783) e no estabelecimento do país, conseguindo financiamento nos Países Baixos em 1781-83. A história de Adams é contada em uma bela minissérie da HBO.

“Dr. Franklin”: Benjamin Franklin (1706-1790), claro. Em 1783, como plenipotenciário na França, foi um dos negociadores do Tratado de Paris (1783), que encerrou a Guerra Revolucionária.

“Tom Paine”: Thomas Paine (1737-1809), filósofo político inglês, foi também um ativista revolucionário. Seu panfleto Senso Comum (publicado na Filadélfia em 1776) inspirou os norte-americanos a lutarem pela independência. “Você manifestou o desejo…”: após 1800, Paine se desiludiu com Napoleão e expressou o desejo de deixar a França (onde vivia), no que foi auxiliado por Jefferson.

“Sr. Dawson”: John Dawson (1762-1814), advogado da Virginia e membro da Câmara dos Representantes dos EUA (equivalente à nossa Câmara dos Deputados). Foi enviado à França para receber a ratificação da Convenção de 1800 (ou Tratado de Mortefontaine), que encerrou a chamada “quase guerra” entre EUA e França.

“Maison Quarée”: Jefferson sugeriu que se usasse o templo romano de Nimes como modelo para o capitólio em Richmond.

“Com respeito a seus motivos…”: de um memorando de James Madison sobre Robert Smith (1757-1842), seu Secretário de Estado, para Jefferson. O documento é de 1811 e atesta a influência de Jefferson sobre a administração do país mesmo após apear da presidência. Ele também teve bastante ascendência sobre o sucessor de Madison, James Monroe.

“… desse país”: a Holanda; “Este país”: França.

“Sr. Beaumarchais”: Pierre Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799), diplomata e dramaturgo francês, apoiador de primeira hora da Revolução Americana. Supervisionou a ajuda secreta que a França deu aos norte-americanos na Guerra de Independência.

“Lafayette”: Marie Joseph Paul Yves Roch Gilbert du Motier, Marquês de Lafayette (1757-1834), aristocrata, militar e estadista francês, lutou ao lado dos norte-americanos na Guerra de Independência, atuando com distinção nas batalhas de Brandywine (setembro de 1777), Rhode Island (agosto de 1778) e Yorktown (outubro de 1781). Após retornar à França, apoiou a Revolução Francesa e, com a ajuda de Jefferson, auxiliou na escrita da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789).

John Quincy Adams (1767-1848), advogado, diplomata e estadista norte-americano, filho mais velho de John Adams e sexto presidente dos EUA (1825-1829). Era levado pelo pai em suas viagens e missões diplomáticas (a primeira foi em 1777, quando John Quincy tinha dez anos) como parte de sua educação.

“Turgot”: Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), economista liberal francês. “La Rochefoucauld”: François Alexandre Frédéric, Duque de la Rochefoucauld (1747-1827), filósofo, político e filantropo francês. “Condorcet”: Marie Jean Antoine Nicholas de Caritat, Marquês de Condorcet (1743-1794), filósofo, matemático e político francês.

“Sr. Barlow”: Joel Barlow (1754-1812), diplomata norte-americano. Na época dessa carta, estava a caminho de Paris para negociar um tratado comercial com Napoleão.

“Gallatin”: Abraham Alfonse Albert Gallatin (1761-1849), economista norte-americano de ascendência suíça, foi Secretário do Tesouro nos governos Jefferson e Madison.

“Adair”: James Adair (1709-1783), negociante na Geórgia e nas Carolinas, autor de The History of the American Indians, orde argumentou que os indígenas descendiam dos judeus.

“Mas observe que o público…”: sumário das opiniões de Jefferson sobre a dívida pública em uma carta para John Wayne Eppes, de 6 de novembro de 1813. Eppes (1773-1823), congressista e depois senador norte-americano, era genro de Jefferson.

“Homem, uma criatura racional”: anedota contada por Franklin e relembrada por Adams em carta a Jefferson.

“Sintagma de Gosindi”: Pierre Gassendi (1592-1655), filósofo, teólogo e cientista francês, autor de Syntagma philosophiae Epicuri (“A constituição da filosofia de Epicuro”, 1649), uma tentativa de harmonizar as visões epicurista e cristã.

Patrick Henry (1736-1799), orador e patriota norte-americano. Frank Lee (1734-1797), estadista norte-americano, signatário de Declaração de Independência. Henry Lee (1756-1818), soldado e estadista da Virginia, lutou na Guerra de Independência, foi membro do Congresso Continental e da Casa dos Representantes. “D. Carr”: Daubney Carr (1773-1837), jurista, sobrinho de Jefferson.

“tiel leis”: discutindo o livro de John Cartwright sobre as relações entre as leis eclesiásticas e comuns, Jefferson chama a atenção para um erro de tradução do francês antigo para o inglês (“ancien scripture” como “Sagrada Escritura”).

“Hic Explicit Cantus”, “Aqui termina o Canto”.

Lançamento em São Paulo – “Movimento 78”, de Flávio Izhaki

Flávio Izhaki lançará o romance Movimento 78 em São Paulo daqui a uns dias. O convite vai abaixo. Essa livraria fica defronte ao Partisans. Ou seja, além do Flávio, que é muito gente boa (e ótimo escritor), há uma bela razão para ir ao lançamento. Ajudem a divulgar o evento, por favor.

(A propósito, resenhei o romance anterior do Flávio para o Estadão anos atrás. Leia AQUI.)