Canto XXXVI

“Pede-me uma dama”: os versos 1-84 são uma tradução (ou reimaginação, como veremos) da canzone “Donna mi prega”, de Guido Cavalcanti. Canzone é um poema feito para ser cantado, com cinco estrofes de catorze versos e um envoi de cinco versos, totalizando setenta e cinco versos, todos hendecassílabos. Embora Cavalcanti inicie com a frase “Pede-me uma dama”, seu poema é uma resposta ao soneto do amigo Guido Orlandi, “Onde si muove and donde nasce l’Amore” (escrito “em nome de uma dama”). Pound traduziu o poema de Orlandi duas vezes, em Spirit of Romance e no ensaio “Cavalcanti”.

“Falar na hora azada”: um provável paralelo com o início do Canto XXXI, “Tempus loquendi / Tempus tacendi”.

“afeto” (no original, “affect”): tradução poundiana para “accidente”. Cavalcanti está respondendo a uma pergunta de Orlandi, sobre se o amor é substância, acidente (no sentido aristotélico dos termos) ou memória? A tradução de Pound não é gratuita, pois ele seguiu o “Comentário” de Dino Del Garbo, para quem “acidente” é uma “paixão”, um “apetite da alma”. Essa decisão também é coerente com a decisão de Pound de se distanciar do vocabulário filosófico usado por Cavalcanti, contaminado pelo aristotelismo e pelo averroísmo medievais, tornando o poema mais genérico e compreensível para os leitores contemporâneos.

“… de baixo cor” (no original, “low-hearted”): Cavalcanti acreditava que a capacidade de amar era algo que independia da riqueza e do berço. Assim, qualquer indivíduo podia ser superficial, desleal e inconstante, isto é, “de baixo cor“; o poema não se destina a esse tipo de gente.

“… trazer visor a tal razão”: no poema de Cavalcanti, “A tal ragione portj chonoscenza”. Ou seja, Pound passa a substituir substantivos e verbos relativos ao conhecimento por termos ligados à visão. A canzone afirma expressamente que o amor não pode ser visto.

“natural demonstração”: na época de Cavalcanti, a noção filosófica (ecoando Aristóteles via Averróis e Avicena) era de que, grosso modo, tudo o que existe no mundo natural poderia ser conhecido e demonstrado. Essa noção tinha conexões com a teologia, mas não era determinada por ela. Embora use esse vocabulário metafísico, Cavalcanti mantém uma distância subjetiva (“psicológica”) tanto da filosofia quanto da teologia então correntes. Ele nunca “engoliu” Aquino, como o próprio Pound afirma em seu ensaio “Cavalcanti”.

“Onde mora a memória”: tendo afirmado que o amor não é substância, mas acidente, Cavalcanti o localiza na memória, respondendo a outra pergunta de Orlandi, sobre onde “reside” o amor.

“diáfana”: do grego διαφανές, “transparente”. O termo aparece em uma passagem belíssima do De Anima, de Aristóteles, quando o filósofo se dispõe a explicar o que é a luz (418b3): “Existe, de fato, algo transparente, e chamo de transparente o que é visível, mas não visível por si mesmo, falando de maneira simples, mas por meio de cor alheia. Deste tipo são o ar, a água e muitos sólidos. Pois eles são transparentes não como água, nem como ar, mas porque existe neles uma certa natureza imanente que é em ambos a mesma, bem como no corpo superior eterno. Luz é a atividade disto, do transparente como transparente. E onde ele está em potência há também a treva. Luz é como que a cor do transparente, quando se torna transparente em atualidade pelo fogo ou por algo do tipo, como o corpo superior, pois nele subsiste algo que é uno e o mesmo” (tradução: Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006).

A “sombra” vinda de Marte diz respeito às influências que a astrologia associa ao planeta, tais como a impulsividade, o desejo, a violência etc.

“nome de bom senso”: no original, “sensate name”. Em Vita Nuova, Dante afirma que “os nomes são consequências das coisas” (“nomina sunt consequentia rerum”), isto é, o som de uma palavra expressa a qualidade do objeto real que lhe é correspondente.

“vertu”: “a potência, a propriedade eficiente de uma substância ou pessoa” (em Sonnets and Ballate of Guido Cavalcanti. Tradução e introdução: Ezra Pound. Londres: Stephen Swift, 1912).

“vestígio elaborado”: no original, “forméd trace”; em Cavalcanti, “formato locho”. Em uma perspectiva platônica, o “vestígio” seria da “forma vista” que tem lugar na mente do amante (na segunda estrofe: “Veio de forma vista que, entendida, / Fica e permanece / ao alcance do intelecto”).

“Nem é sabido (…) seu alvo”: aqui, Pound difere do original. Cavalcanti escreve que o amor “non si puo chonosciere per lo viso”, isto é, não é algo visível (daí a menção à cor branca, “biancho in tale obbietto chade”). Pound acrescenta a noção de luz, “branca luz”, expandindo a (ou criando outra) imagem. O amor não “é sabido pela sua face”, mas “divisado em branca luz”.

“projetado em cor”: no original, “set out from colour”. Um sumário da definição de amor oferecida por Cavalcanti na canzone: o amor é sem cor, “Fuor di cholore”, ou seja, sem forma, incorpóreo; “partido” (“essere diviso”), “dividido” a partir do ser, um acidente, não uma substância; está “em plena treva” e “[a]pascenta a luz”, é uma paixão da alma sensível e, portanto, algo diverso da (ou mesmo contrário à) razão. No entanto, é do amor que “provém mercê”.

“Apascenta a luz”: no original, “Grazeth the light”; em Cavalcanti, “Luce rade”. “Rade” é “eliminar”, “apagar”; Pound opta por “graze”, “roçar”, “arranhar”, e acrescenta a frase “um movendo-se pelo outro” (“one moving by other”) para ressaltar sua interpretação do amor como algo que se move com(o) a luz em meio à treva.

“Chamou tronos…”: Dante, Paraíso IX, 61 (fala Cunizza, amante de Sordello); “balascio”, rubi (v. Paraíso IX, 67-69).

“Eriugina”: João Escoto Erígena (ou Johannes Scotus Eriugena, c.810-877), teólogo, filósofo, poeta e tradutor irlandês, revitalizador do neoplatonismo, o qual procurou reconciliar com o cristianismo. Foi quem introduziu os “tronos” como uma ordem angelical. Autor de De Divisione Naturae.

“o que talvez explique…”: Pound cita sua fonte, o comentário de Francesco Fiorentino sobre Scotus em seu Manuale di storia della filosofia.

“maniqueus”: nova alusão à Cruzada Albigense (v. Canto XXIII), no século XIII. Os maniqueus eram seguidores do profeta iraniano Mani (216-274). O maniqueísmo foi uma religião gnóstica que se baseava na oposição de dois princípios (luz/escuridão, bem/mal). Seus adeptos foram perseguidos pelos católicos desde o século V e, à época da Cruzada Albigense, a religião já se encontrava extinta. No entanto, o papa declarou que os cátaros eram maniqueus.

“Assim desenterraram…”: de fato, De Divisione Naturae foi banido da Universidade de Paris em 1210, junto com os livros de Aristóteles. Para Pound, Scotus e Cavalcanti seriam parecidos, dois rebeldes intelectuais contrários à horrenda autoridade católica medieval.

“‘A autoridade vem da razão certa…'”: Scotus, De Divisione Naturae — “Auctoritas siqui ratione processit, ratio uero nequaquam ex auctoritate”.

“… Aquino com a cabeça mergulhada num vácuo”: se a Comédia era tida como a “Suma Teológica em versos” (dada a influência de Aquino sobre Dante), Pound ecoa o destino dos papas simoníacos no Inferno XIX, 43-120. Conforme já dito, Pound não via em Cavalcanti a mesma influência de Aquino.

“Sacrum, sacrum, inluminatio coitu”, “Sacra, sacra, a iluminação pelo coito”.

“Sua Santidade”: o papa Clemente IV (1190-1268). Com a ajuda de Carlos I, Conde de Anjou (1227-1285), Clemente conquistou a Sicília em fevereiro de 1266 (Batalha de Benevento). Em uma carta de 22 de setembro de 1266, ele lembrou o rei de seus deveres e mencionou Sordello.

“Dilectis mihi familiaris… castra Montis Odorisii / Montus Sancti Silvestri pallete et pile”, “Aos meus queridos soldados e familiares… os castelos do Monte Odorisio / Monte São Silvestre, Paglieta e Pila”: excerto do ato pelo qual Carlos I presenteou Sordello com cinco castelos nos Abruzos, em março de 1269. Alguns versos acima, o ato já é mencionado no poema, bem como (outra vez) o início da biografia medieval de Sordello (“Lo Sordels si fo di Mantovana”, “Sordello era de Mântua”).

“In partibus Thetis”, na região de Chieti, nos Abruzos; “Pratis nemoribus pascuis”, “Pradarias, florestas e pastagens”.

“… venderam o maldito lote…”: Carlos cedeu as terras em 5 de março de 1269, e Sordello as vendeu em 30 de agosto, quatro anos após Cunizza da Romano (primeiro amor de Sordello) libertar seus escravos em Florença, na casa de Cavalcante dei Cavalcanti, pai de Guido. V. Canto VI.

“Quan ben m’albir e mon ric pensamen”, “Quando penso profundamente em minhas ricas meditações”: verso do poema XXI de Sordello, “Atretan deu ben chantar finamen”.