Canto XXXIX

“Na trilha da colina: ‘thkk, thgk'”: Pound alude à localização do palácio de Circe segundo Victor Bérard, em Les Phéniciens et l’Odyssée, sugerindo que se trate da casa da violinista Olga Rudge (foto) em San Ambrogio. Rudge (1885-1996) foi amante de Pound por mais de cinco décadas. Eles tiveram uma filha, Mary de Rachewiltz (1925). O “thkk, thgk” era o som dos ramos de oliveira no térreo da casa. Pound sugere que, a exemplo de Circe, a sedução de Olga se dava por meio da música.

“Quando na lareira de Circe…”: é Elpênor, um dos companheiros de Odisseu, quem fala. A morte de Elpênor (bêbado, caindo do telhado da casa de Circe) é referida no Canto I.

“obesos leopardos”: possível referência a Dionísio (o manto com o qual ele às vezes aparece é de pele de leão ou leopardo), sugerindo que o vinho era abundante. A “tisana” é a poção mágica de Circe.

“kακὰ φάρμακ’ ἔδωκεν”, “enfeitiçados por apavorantes fármacos”: Odisseia X, 213 (na tradução de Trajano Vieira. Ed. 34). Pound recorreu a uma edição bilíngue da Odisseia, com o texto em grego e latim: Homeri opera omnia: ex recensione et cum notis Samuelis Clarkii, S.T.P. Accessit varietas lectionum ms. lips. et edd. veterum, cura Jo. Augusti Ernesti: qui et suas notas adspersit. 5 volumes. Glasgow, Londres: Andrew Duncan, Richard Priestley, 1814.

“λύκοι (…) ὀρέστεροι ἠδὲ λέοντες”, “lobos monteses (…) e leões”: Odisseia X, 212 (na tradução de Trajano Vieira. Ed. 34). Pound omite uma palavra (ἦσαν) ao citar o verso: “(…) ἀμφὶ δέ μιν λύκοι ἦσαν ὀρέστεροι ἠδὲ λέοντες”.

“nascida de Helios (…) gêmea”: Circe, é claro.

“Venter venustus, cunni cultrix”, “barriga como a de Vênus, cuidadora da cona”; “Ver novum, canorum, ver novum”, “nova primavera, cantando, nova primavera”. Do poema Pervigilium Veneris (a “Vigília de Vénus”), poema provavelmente escrito no século IV. Há quem o atribua a Tiberiano, há quem diga que é obra de Publius Annius Florus.

“Καλὸν ἀοιδιάει”, “plenirressoando a voz sublime” (de Circe): Odisseia X, 227.

“θεòς, ήὲ γυνή…..φθεγγώμεθα θα̃σσον”, “‘(…) ou uma deusa / ou uma mulher. Chamemo-la, soerguendo a voz!'”: Odisseia X, 227-8. É Polites, outro companheiro de Odisseu, quem fala.

“illa dolore obmutuit pariter vocem”, “[Ela], com a dor, fica muda. / Esta afoga-lhe ao mesmo tempo a voz (…)”: Metamorfoses XIII, 538-39 (na tradução de Domingos Lucas Dias. Ed. 34). “Ela”, no caso, é Hécuba, rainha da Troia, ao contemplar o corpo de seu filho caçula, Polidoro, que julgava a salvo na Trácia. Na edição da Odisseia usada por Pound, esse trecho de Ovídio está em uma nota de rodapé relativa ao momento em que Euríloco retorna ao navio para contar a Odisseu e aos outros a recepção que tiveram na casa de Circe, que transformou os companheiros em suínos (Odisseia X, 246-8): “Falhava nas palavras, por mais que as buscasse, / que a dor profunda o solapava. Seu olhar / vidrava, o coração queria prantear”.

“Ἀλλ᾽ ἄλλην χρὴ πρώτον όδὸν τελέσαι, καὶ ἱκέσθαι 490/5 (…) Περσεφόνεια”: “Outra viagem haverás / de executar primeiramente, à residência / do Hades e da terribilíssima Perséfone, / a fim de consultar a psique do tebano / Tirésias, vate cego de epigástrio sólido: / só a ele, mesmo morto, concedeu Perséfone / o sopro da sapiência. Os outros vagam: sombras” (Odisseia X, 489-95).

“Hathor”, “Mava”: não se trata de Hathor, a deusa egípcia, mas de uma entidade masculina, “espécie de Adão ou homem prototípico cuja separação dos animais está apenas começando” (como escreve Richard Sawyer AQUI). Nos primeiros rascunhos do Canto, analisados por Sawyer, Elpênor (estendido “na lareira de Circe”) narrava uma série de fábulas bestiais envolvendo Hathor e outros seres. Mava é outra deidade inventada por Pound.

“Che mai da me non si parte il diletto”, “que nunca o deleite se afaste de mim”: variação de “che mai da me non si partì ‘l diletto” (Paraíso XXIII, 129), “tal que mais nunca esqueci sua querença” (trad.: Italo Eugenio Mauro. Ed. 34).

“Fulvida di folgore”, “de fulgores fulgindo”: do Paraíso XXX, 62.

“Vim aqui despercebida com Glaucus”: embora Grünewald opte por uma voz feminina, o mais provável é que seja Odisseu quem fale — o que é corroborado pelo trecho em latim “nec ivi in harum / Nec in harum ingressus sum”, “não fui ao chiqueiro / Nem entrei nele”, frase escrita por Pound com referência ao momento em que Odisseu resiste ao feitiço de Circe (Odisseia X, 315-45). A história envolvendo Glauco, Circe e Cila é narrada por Ovídio nas Metamorfoses XIV, 1-74.

“Discuta isso na cama disse a dama”: uma vez que não consegue enfeitiçar Odisseu, Circe se lembra da profecia de Hermes, de que ele (Odisseu) viria, e o convida para se deitar com ela; “Εὺνῆ καὶ φιλότητι, ἔφατα Κίρκη”, “nós dois ao tálamo! A união de nossos corpos / no amor”, Odisseia X, 335-36); “Ἐς θάλαμόν”, “ao próprio tálamo” (Odisseia X, 340).

“Eurilochus”: um dos companheiros de Odisseu, está no primeiro grupo que vai à casa de Circe, mas, “temendo o ardil”, não entra e não é enfeitiçado (transformado em suíno). Euríloco corre ao navio para contar a Odisseu que os companheiros não retornaram. Depois (Odisseia XI), é o mesmo Euríloco quem insta os companheiros a matar e comer os gados de Hélio-Sol, causando a morte de todos (exceto, claro, Odisseu).

“Macer”: Macareu é outro companheiro de Odisseu, que, nas Metamorfoses (XIV, 223-314), reconta a história envolvendo Circe, Odisseu e os demais. Sendo um dos transformados em porcos, afirma que Euríloco adentrou a casa, mas não bebeu a poção de Circe, e só então foi alertar Odisseu. Ou seja, Macareu deve sua vida a Euríloco (até porque deserta antes que cheguem à ilha de Hélio-Sol).

“… com boas escândeas”: Pound introduz, assim, a perspectiva dos desertores (Macareu) e traidores (Euríloco).

“Ad Orcum autem (…) pervenit”, “Para o Hades nenhum homem jamais foi em embarcação escura”: Pound parafraseia o verso da tradução latina da Odisseia (X, 502) que está lendo, “Ad Orcum autem nondum quisquam pervenit nave nigra”. No original, “Ἄϊδος δ᾽ οὔπώ τις ἀφίκετο νηὶ μελαίνῃ”, “Jamais / alguém desceu ao Hades num baixel escuro” (Trajano Vieira). Em seguida, volta a parafrasear/parodiar: “Já foi de bote para o inferno?”.

Os dois versos seguintes são de Catulo, 34 (“Hino a Diana”): “Sumus in fide”, “sob a tutela [de Diana]”; “Puellaeque canamus”, “puras cantaremos”. A seguir, uma expressão retirada de um verso de Virgílio, Eneida VI, 268: “sub nocte”, “sob a noite”. Os versos (269-69) completos: “Ibant obscuri sola sub nocte per umbram / perque domos Ditis vacuas et inania regna:”, “Sem vacilar, adiantaram-se pelo negrume da noite / e as moradias inanes de Dite e seus reinos desertos” (na tradução de Carlos Alberto Nunes. Ed. 34). Sobre Catulo, leia AQUI um estudo e uma tradução do poema.

“Flora”: deusa romana da primavera e das flores.

“ERI MEN AI TE KUDONIAI”, “na primavera os marmelos”.

“Betuene Aprile and Merche”: possível referência ao poema “Alisoun”, cujo primeiro verso é “Bitweene Merch and Averil”. Leia AQUI.

“Por Circeo, por Terracina”: Pound visitou esses lugares em outubro de 1930. Circeo é um promontório a cerca de 100km a sudoeste de Roma. Bérard afirma em seu livro que Circeo seria, na verdade, a ilha de Circe (“Circeo” seria uma tradução latina do nome homérico (semítico) “Aeaea”). Terracina é um pequeno porto localizado a 25Km a leste de Circeo. Perto de Terracina, estão as ruínas de um templo dedicado a Zeus e Juno.

“‘Fac deum!’ ‘Est Factus.'”, “‘Faça deus!’ ‘Está feito.”

“A traverso le foglie”, “através das folhas”.

“Sic loquitur (…) nupta”, “Assim falou a noiva / Assim cantou a noiva”. A “noiva” seria Olga? E o encontro carnal descrito (“Mesclado de carne e luz), dela com Pound? Talvez.