Canto XXXI

Canto XXXI

Este e os três Cantos seguintes utilizam como base as cartas e outros escritos de Thomas Jefferson, John Adams, John Quincy Adams, Andrew Jackson, Martin Van Buren e outros políticos proeminentes para abordar o surgimento dos Estados Unidos e o desenvolvimento de seu sistema bancário. A citação do lema malatestiano (ver próximo parágrafo) serve para sublinhar Jefferson e Malatesta como indivíduos importantes nas histórias de seus respectivos países. Pound liga o “renascimento” italiano ao nascimento dos EUA, portanto.

“Tempus loquendi / Tempus tacendi”, “tempo para falar, tempo para calar”: o lema pessoal de Sigismundo Malatesta está gravado no Templo Malatestiano, sobre a tumba de Isotta degli Atti, e na Sala Malatestiana no castelo Gradara. A inspiração vem do Eclesiastes 3, 7: “tempo de calar, / e tempo de falar”.

“Sr. Jefferson”: Thomas Jefferson (1743-1826), autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos e terceiro presidente do país (1801-1809). Nesse Canto, Pound traça um retrato de Jefferson a partir de suas cartas, além de utilizar duas missivas de John Adams e uma breve citação de James Madison. Os períodos enfocados (sem ordem cronológica) são anteriores e posteriores ao exercício da presidência por ele: 1785-1801 e 1811-1824.

“traje moderno para a sua estátua”: a citação é de uma carta de Jefferson para George Washington, quando este era presidente dos EUA e o primeiro, embaixador (“ministro”) em Paris.

“…..nenhum escravo ao norte do distrito de Maryland”: a linha de demarcação dos estados de Maryland, Pennsylvania e Delaware foi feita por Charles Mason e Jeremiah Dixon em uma expedição ocorrida entre 1763 e 1767. A linha Mason-Dixon passou a separar os estados sulistas e escravistas dos estados ao norte, os quais não possuíam escravos. O romance Mason & Dixon, de Thomas Pynchon, aborda (à maneira de Pynchon, claro) a história dessa expedição.

“Sr. Bushnell”: David Bushnell (1740-1826), inventor de Connecticut. Ele, de fato, inventou uma espécie de submarino movido a propulsão por hélice (o “Turtle”) em 1775.

“Sr. Adams”: John Adams (1735-1826), um dos Pais Fundadores e segundo presidente dos EUA (1796-1800). Junto com Jefferson e Franklin, concebeu a Declaração de Independência apresentada ao Congresso em Filadélfia no dia 26 de junho de 1776. Teve uma importância enorme na Guerra Revolucionária (ou de Independência, 1775-1783) e no estabelecimento do país, conseguindo financiamento nos Países Baixos em 1781-83. A história de Adams é contada em uma bela minissérie da HBO.

“Dr. Franklin”: Benjamin Franklin (1706-1790), claro. Em 1783, como plenipotenciário na França, foi um dos negociadores do Tratado de Paris (1783), que encerrou a Guerra Revolucionária.

“Tom Paine”: Thomas Paine (1737-1809), filósofo político inglês, foi também um ativista revolucionário. Seu panfleto Senso Comum (publicado na Filadélfia em 1776) inspirou os norte-americanos a lutarem pela independência. “Você manifestou o desejo…”: após 1800, Paine se desiludiu com Napoleão e expressou o desejo de deixar a França (onde vivia), no que foi auxiliado por Jefferson.

“Sr. Dawson”: John Dawson (1762-1814), advogado da Virginia e membro da Câmara dos Representantes dos EUA (equivalente à nossa Câmara dos Deputados). Foi enviado à França para receber a ratificação da Convenção de 1800 (ou Tratado de Mortefontaine), que encerrou a chamada “quase guerra” entre EUA e França.

“Maison Quarée”: Jefferson sugeriu que se usasse o templo romano de Nimes como modelo para o capitólio em Richmond.

“Com respeito a seus motivos…”: de um memorando de James Madison sobre Robert Smith (1757-1842), seu Secretário de Estado, para Jefferson. O documento é de 1811 e atesta a influência de Jefferson sobre a administração do país mesmo após apear da presidência. Ele também teve bastante ascendência sobre o sucessor de Madison, James Monroe.

“… desse país”: a Holanda; “Este país”: França.

“Sr. Beaumarchais”: Pierre Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799), diplomata e dramaturgo francês, apoiador de primeira hora da Revolução Americana. Supervisionou a ajuda secreta que a França deu aos norte-americanos na Guerra de Independência.

“Lafayette”: Marie Joseph Paul Yves Roch Gilbert du Motier, Marquês de Lafayette (1757-1834), aristocrata, militar e estadista francês, lutou ao lado dos norte-americanos na Guerra de Independência, atuando com distinção nas batalhas de Brandywine (setembro de 1777), Rhode Island (agosto de 1778) e Yorktown (outubro de 1781). Após retornar à França, apoiou a Revolução Francesa e, com a ajuda de Jefferson, auxiliou na escrita da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789).

John Quincy Adams (1767-1848), advogado, diplomata e estadista norte-americano, filho mais velho de John Adams e sexto presidente dos EUA (1825-1829). Era levado pelo pai em suas viagens e missões diplomáticas (a primeira foi em 1777, quando John Quincy tinha dez anos) como parte de sua educação.

“Turgot”: Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), economista liberal francês. “La Rochefoucauld”: François Alexandre Frédéric, Duque de la Rochefoucauld (1747-1827), filósofo, político e filantropo francês. “Condorcet”: Marie Jean Antoine Nicholas de Caritat, Marquês de Condorcet (1743-1794), filósofo, matemático e político francês.

“Sr. Barlow”: Joel Barlow (1754-1812), diplomata norte-americano. Na época dessa carta, estava a caminho de Paris para negociar um tratado comercial com Napoleão.

“Gallatin”: Abraham Alfonse Albert Gallatin (1761-1849), economista norte-americano de ascendência suíça, foi Secretário do Tesouro nos governos Jefferson e Madison.

“Adair”: James Adair (1709-1783), negociante na Geórgia e nas Carolinas, autor de The History of the American Indians, orde argumentou que os indígenas descendiam dos judeus.

“Mas observe que o público…”: sumário das opiniões de Jefferson sobre a dívida pública em uma carta para John Wayne Eppes, de 6 de novembro de 1813. Eppes (1773-1823), congressista e depois senador norte-americano, era genro de Jefferson.

“Homem, uma criatura racional”: anedota contada por Franklin e relembrada por Adams em carta a Jefferson.

“Sintagma de Gosindi”: Pierre Gassendi (1592-1655), filósofo, teólogo e cientista francês, autor de Syntagma philosophiae Epicuri (“A constituição da filosofia de Epicuro”, 1649), uma tentativa de harmonizar as visões epicurista e cristã.

Patrick Henry (1736-1799), orador e patriota norte-americano. Frank Lee (1734-1797), estadista norte-americano, signatário de Declaração de Independência. Henry Lee (1756-1818), soldado e estadista da Virginia, lutou na Guerra de Independência, foi membro do Congresso Continental e da Casa dos Representantes. “D. Carr”: Daubney Carr (1773-1837), jurista, sobrinho de Jefferson.

“tiel leis”: discutindo o livro de John Cartwright sobre as relações entre as leis eclesiásticas e comuns, Jefferson chama a atenção para um erro de tradução do francês antigo para o inglês (“ancien scripture” como “Sagrada Escritura”).

“Hic Explicit Cantus”, “Aqui termina o Canto”.

Lançamento em São Paulo – “Movimento 78”, de Flávio Izhaki

Flávio Izhaki lançará o romance Movimento 78 em São Paulo daqui a uns dias. O convite vai abaixo. Essa livraria fica defronte ao Partisans. Ou seja, além do Flávio, que é muito gente boa (e ótimo escritor), há uma bela razão para ir ao lançamento. Ajudem a divulgar o evento, por favor.

(A propósito, resenhei o romance anterior do Flávio para o Estadão anos atrás. Leia AQUI.)

Canto XXX

 

“Prantear”: Pound parodia Geoffrey Chaucer, Complaynte Unto Pite.

“… liquidou as minhas ninfas”: no original, “slayeth”, mas no sentido de “superar”, “sobrepujar”.

Em Pafos, na costa do Chipre, diz-se que Afrodite emergiu das ondas. Em seguida, Pound usa o nome latino de Ares, Marte, para sugerir que a voz que fala no poema é medieval. Ares e Afrodite eram amantes, e a história de como o marido dela, Hefesto (o “covarde tolo”), flagrou-os no ato e os acorrentou, nus, envergonhando-os na frente dos outros deuses, é narrada por Homero na Odisseia VIII, 265-370. Zeus casou Afrodite e Hefesto por razões políticas, e nenhum autor clássico apresenta Hefesto como um “covarde tolo”. Aqui, o casamento da deusa do amor com esse velho “tolo” seria o primeiro caso elencado por Pound de situação antinatural, de amor sórdido, corrompido.

A história de Pedro I e Inês de Castro já é referida no Canto III. Aqui, o famigerado e macabro beija-mão seria algo como a segunda história sórdida de amor: a defunta exumada, entronada e homenageada como se estivesse viva.

“Madame ῾´ΥΛΗ”, “hilé”, “matéria”: apelido poundiano para Lucrécia Borgia. Eis o terceiro exemplo de sordidez: a filha bastarda de um papa vendida (mais de uma vez) para a aristocracia italiana. O uso do termo grego sugere que a beleza de Lucrécia era pura matéria, só corpo, por assim dizer, e desprovida de alma. E, de forma análoga, seus casamentos não passavam de alianças e arranjos políticos, servindo aos interesses do momento. No Canto, Pound remete ao terceiro desses casamentos, com Alfonso, filho de Ercole d’Este, duque de Ferrara, sendo que este último exigiu do papa Alexandre VI um dote gigantesco. O “problema” não era Lucrécia ser bastarda (muitos poderosos e poderosas da época o eram), mas, sim, ser filha de um papa, e também o destino dos predecessores de Alfonso d’Este (Giovanni Sforza foi forçado a se declarar impotente; Alfonso d’Aragon foi assassinado). Ele “passou por aqui sem dizer ‘Ó'” porque o casamento se deu por procuração, sem contatos prévios entre os noivos, e ele só foi encontrá-la depois de tudo acertado e assinado, aparecendo sem aviso no castelo Bentivoglio (Lucrécia estava a caminho de Ferrara, mas ele não quis esperar mais).

“Daí gravamos isso no metal”: o narrador do poema passa a falar de Hieronymus (Gershom) Soncino, editor judeu que se estabeleceu em Fano, em 1501. Pound cita as dedicatórias da edição impressa por Soncino das Opere volgari di Messer Francesco Petrarcha (1503). A expressão “no santuário de César” é uma referência ao nome da cidade, pois “Fano” deriva de “fanum”, “santuário”. A cidade teve grande importância para os Malatesta, pois era onde o pai de Sigismundo, Pandolfo, vivia; a família perdeu a cidade para Pio II em 1463; e, depois, de novo em 1500, quando Cesare Borgia a tomou de Pandolfo Malatesta IV (neto de Sigismundo). Cesare Borgia (1475-1507), era filho de Rodrigo (papa Alexandre VI), irmão de Giovanni, Gioffre e Lucrécia. Em 1498, após a morte de seu irmão, Giovanni (ver Canto V), Cesare renunciou à posição de cardeal e se tornou comandante do exército papal. Tomou vários territórios dos Malatesta, mas perdeu tudo em 1503, após a morte do pai. O novo papa, Júlio II, embora tivesse prometido que o manteria como general do exército papal, mandou prendê-lo. Cesare fugiu para a Espanha, onde foi assassinado em uma emboscada poucos anos depois. Pound se refere a ele como “Duque de Valente e Aemilia” porque o rei francês Luís XII nomeou Cesare Duque de Valentinois; e “Aemelia”, no caso, é a Emilia-Romagna.

“In Fano Caesaris”, “no templo (santuário) de César”.

Francesco da Bologna (Francesco Griffo) foi um criador de fontes, inventor do tipo cursivo. Trabalhou com o humanista e editor Aldus Manutius (ou Aldo Manuzio, 1449-1515; citado por Pound no Canto) em Veneza, e depois criou as fontes da edição de Petrarca impressa por Soncino. O “texto” é as Opere volgari di Messer Francesco Petrarcha. Para a composição da obra, Soncino contou com a ajuda de Lorenzo Abstemio (mencionado como “Messire de Laurentio”), cidadão de Fano que possuía um códice de Petrarca, e da biblioteca dos Malatesta (que gastavam fortunas com a compra de manuscritos; a Biblioteca Malatestiana, em Cesena, ainda existe).

“Alessandro Borgia” é, claro, Rodrigo Borgia, o papa Alexandre VI. Sua morte (“Il Papa morì”) encerra o ciclo malatestiano da obra, iniciado no Canto VIII. Sublinhe-se o azar de Soncino: o papa morreu poucos meses após a edição das obras de Petrarca, e ele perdeu um patrono que havia recém-adquirido, por assim dizer. Explicit canto, “fim do canto”, e fim da primeira parte dos Cantos. Sigamos.

Canto XXIX

O “lago” citado é, mais uma vez, o Garda. E, depois, a “arena” de Verona (e seus “gradins”), já mencionada antes.

“Pernella concubina”: Penelope ou Penella Orsini, prima e amante de Aldobrandino Orsini, conde de Pitigliano (1420-1472). Os eventos reproduzidos no Canto ocorreram em 1465. Pound se refere aos herdeiros “ainé”, “mais velho”, Niccolò II Orsini (1442-1510), conde de Pitigliano, e “puiné”, “mais novo”, Lodovico Orsini (1444-1465), este envenenado a mando de Penella (que queria favorecer seu próprio filho). Aldobrandino culpou os senenses pelo assassinato de Lodovico, e prendeu sem quaisquer provas dois cidadãos de Siena que estavam em Pitigliano, iniciando outro conflito entre as cidades. Por sorte, o papa interveio e as hostilidades cessaram. Então, o pajem que, seguindo as ordens de Penella, envenenou Lodovico confessou o crime para Niccolò. Este matou Penella e deu início a uma rebelião para tomar o poder. Aldobrandino já aparece nos Cantos IX e X.

“evitando o bando de tritões”: Eleutéria, ninfa criada por Pound (v. Canto II), transforma-se em coral para escapar do assédio dos tritões. No verso anterior a esse e nos seguintes, alusões a locais em Roma (Via Sacra, Circus Maximus/”hipódromo”).

“Liberans et vinculo ab omni liberatos”, “libertos e livres de quaisquer grilhões”: referência à libertação dos escravos por Cunizza (1198-1279), referida no Canto VI. Nobre italiana, irmã de Ezzelino III (1194-1259) e Alberico da Romano (1196-1260), ela libertou os escravos dos irmãos em 1º de abril de 1265. A alforria foi lavrada em Florença, na casa de Cavalcante dei Cavalcanti, pai de Guido. Já idosa, ela viveu na casa dos Cavalcanti, nos anos de formação do jovem Guido. No Paraíso IX, 13-66, Cunizza aparece como uma figura de beleza e amor na esfera de Vênus. Ela teve uma vida amorosa atribulada, tendo fugido com Sordello e sido amante de Bonius, um cavaleiro — fatos citados mais adiante no Canto, incluindo o casamento dela com Ricardo São Bonifácio. Picus de Farinatis, Don Elinus e Don Lipus assinaram como testemunhas no termo de alforria. Eles eram filhos de Ghibelline Farinata degli Uberti (1212-1264), que Dante colocou no Inferno X, 31-50.

“Castra San Zeno”: o castelo de San Zeno, localizado nas montanhas entre Bassano e Asolo. Cunizza refere-se ao cerco desse castelo pelas forças conjuntas de Verona, Vicenza, Pádua e Mântua, em 1260. O castelo foi defendido por Alberico da Romano, até este ser traído. Alberico teve de assistir ao massacre da própria família antes de ser executado. A ira de Cunizza é reservada àqueles que traíram o irmão; ela não quer libertá-los a princípio, mas acaba fazendo isso (depois os amaldiçoá-los).

“nimium amorata in eum”, “muito apaixonada por ele”: Bonius, ou Enrico Bonio, cavaleiro, juiz e procurador de Treviso (referida por Pound como “Tarviso”), casado quando se envolveu com Cunizza. Eles saíram em uma longa viagem, e só retornaram quando Alberico comandava a cidade. Pouco depois disso, Bonius morreu defendendo Treviso.

“A luz daquela estrela me domina”: parte da fala de Cunizza para Dante (Paraíso IX).

“Dizia Juventus”: referência à peça Lusty Juventus, peça do século XVI escrita por Richard Wever.

“o-hon dit…”, “ce qu’on dit au village”, “o que estão dizendo na vila (ou cidade, vilarejo etc.)”.

“nuvoletta”, “nuvenzinha”.

“Wein, Weib, TAN AOIDAN”: “vinho, mulher [em alemão], e música [em dialeto dórico]”. O dito é usualmente referido inteiro em alemão: “Wein, Weib, und Gesang”.

“Ailas e que’m fau (…) vuelh”, “Ah, que há de bom em meus olhos/ Que não veem o que quero ver” (tradução libérrima): de um poema de Sordello, “Er, quan renovella e gensa”. Creio que as expressões em italiano nos versos seguintes são bem evidentes. E, então, outra em francês: “Des valeurs…”, “valores em nome de Deus, e de novo valores”.

“Arnaut”: no caso, trata-se de Eliot, que confessou a Pound tal medo quando, no verão de 1919, eles visitavam o castelo de Excideuil. Na Comédia, Dante retrata Arnaut Daniel no Purgatório, entre os luxuriosos. Eliot tinha uma relação atormentada com o desejo sexual, para ele sinônimo de pecado — tanto que fez um voto de castidade em 1928.

“nondum orto jubare”, “luz (que) ainda não nasceu”: na tradução, Grünewald escreve erroneamente “nundum”; trata-se de um fragmento da mais antiga alba provençal escrita. Alba é uma canção da aurora, e essa dataria do século X.

“A torre, marfim…”: variações de versos do Canto XI (123-28). “Phoibos”, claro, é Febo Apolo. Mais adiante, “Os cães brancos na escarpa” é uma imagem que remetem a Ártemis. Aqui evocada, ela aparece no Canto seguinte.

Canto XXVIII

 

“Boja d’un Dio!”, “Seu Deus carrasco!”: variação de uma expressão encontrável no derradeiro verso do poema de Aldo Spallicci, “E rumagnùl” (escrito em dialeto da Romagna), “A so qua mè, ciò, boia ded’ S…..!”, “Aqui estou eu, então, seu Deus carrasco” (tradução livre a partir da versão de Pound para o inglês, encontrável AQUI junto com uma tradução para o italiano). Pound escreve outra variação do verso algumas linhas abaixo: “Cuidado, carrasco sangrento! Sou eu”. E cita a frase em italiano: “Aso iqua me”, “Aqui estou eu”. A província italiana da Emilia-Romagna se situa ao Norte do país e inclui Ferrara, Rimini, Cesena, Ravenna e Bologna; Sigismundo Malatesta e Benito Mussolini eram da região.

“Walluschnig”: uma família de Cesena agradecendo pelo nascimento de um romagnolo. O nascimento de Mary, filha de Pound, em 9 de julho de 1925, também foi um parto difícil, e contou com a ajuda de um médico.

“Item”: citação das Ordinances, de Sebastian Cabot, documento escrito em 1553 para o rei inglês Eduardo VI. Cabot dirigia a Company of Merchant Adventurers, incumbida de encontrar uma rota para a Rússia e China pelas águas ao Norte. Embora não seja um catálogo, as Ordinances são estruturadas como uma lista de itens.

“Sábio de Concord”: Ralph Waldo Emerson (1803-1882) viveu nessa cidade do estado de Massachusetts. O “crítico de teatro” seria Alan Dale (Alfred Cohen). As “damas de West Virginia”, Ida e Adah Mapel.

“sangrento Kansas”: Horace Greely usou essa expressão (“bleeding Kansas”) no New York Tribune para se referir aos violentos conflitos ocorridos no então novo território do Kansas, entre 1854 e 1861, relativos à manutenção ou não da escravidão.

“Clara Leonora”: estudante que Pound teria conhecido no curso de Hugo Rennert (1852-1927) na Universidade da Pensilvânia. Rennert já foi mencionado no Canto XX. Mais abaixo, “Grillparzer”: Franz Grillparzer (1791-1872), poeta e dramaturgo austríaco, influenciado por Lope de Vega e Calderón de la Barca; isso o tornou relevante para o curso de Rennert sobre o drama espanhol.

“E nunca deveria ser destruído”: na época (quando na universidade), Pound escrevia um soneto por dia, decidido a jogar todos fora dali a um ano. Era uma espécie de exercício, e ele jamais considerou essa forma muito atraente. A postura de Pound expõe a ladainha religiosa de Leonora como algo ainda mais irritante.

“Loica”: Florence Farr (1860-1917), britânica, atriz, compositora, diretora, sufragista etc. Ela, de fato, mudou-se para o Ceilão em 1912, onde assumiu a direção de uma escola para mulheres criada por Sir Ponnambalam Ramanathan, e lá morreu poucos anos depois, de câncer. “Smith”: William Brooke Smith (1884-1908), pintor que Pound conheceu na universidade; dedicou a ele o volume A Lume Spento.

“Tribune”: Chicago Tribune. A referência nesse trecho é a um artigo publicado nesse jornal sobre uma convenção da Legião Americana em 1927, em Paris. A Legião era uma organização formada por veteranos da Primeira Guerra. O artigo dizia que um “serviço secreto” fora criado para manter os veteranos na linha quando em Paris. Na época, os EUA ainda estavam sob a Lei Seca. Essa intenção é ridicularizada logo abaixo, com a notícia da prisão de um norte-americano chamado Frank Robert Cherokee.

“Je suis (…) poids”, “Eu sou… mais forte do que… o Buda!… Eu sou… mais forte do que… Cristo!… Eu abolirei a gravidade”.

Pound esteve nos Pirenéus com Dorothy, sua esposa, em junho e julho de 1919. Na tradução, grafia incorreta: “Pieneus”.

“sont l’in…”, “são… da infantaria colonial”. Depois: “les vieux Marsouins”, “velhas toninhas”, apelido dado à infantaria naval francesa.

“feitz Marcebrus”, “Marcabru fez isso”: um trovador da região dos Pirenéus.

“Dia da Paz”: 28 de junho de 1919, quando foi assinado o Tratado de Versalhes. Pound estava no sul da França quando ocorreu a assinatura.

“Dr. Wymans”: supõe-se que foi um médico do exército britânico que lutou em Gallipoli e ajudou na retirada das tropas da península turca entre dezembro de 1015 e janeiro de 1916. Alguns versos abaixo, Pound volta a se referir ao avô, Thaddeus, como “aquele homem”.

“pornoboskos”, Πορνοβοσκός: “zelador de puteiro (ou bordel)”.

“Pa Stadtvolk”: outro exemplo de empreendedorismo norte-americano (fazer dinheiro com utensílios e engenhocas variados).

“Prince Oltrepassimo”: príncipe Filippo Massimiliano Massimo (1843-1915), herdeiro de uma das mais antigas famílias de aristocratas romanos; “saccone”: membro de família aristocrata enterrado em um saco como forma de penitência.

“Discobolus”: cópia em mármore da estátua de bronze do atirador de disco. A original foi esculpida por Míron (séc. V a.C.). Essa cópia foi descoberta numa propriedade da família Massimo em 1781, e eles a guardaram em seu palácio romano. Hoje, encontra-se exposta no Palazzo Massimo alle Terme.

“desde 70”: no caso, 20 de setembro de 1870, quando o exército italiano, liderado pelo general Raffaele Cardona, derrotou as tropas papais e acabou com o poder temporal da igreja. Filippo Massimiliano Massimo apoiava o papa, e fechou as portas de seu palácio como sinal de protesto, impedindo acesso do público às obras de arte que ali mantinha.

O “livro que parece engraçado” é o Dictionnaire historique et critique (1697), de Pierre Bayle, que, de fato, tem uma paginação que mistura duas colunas, uma coluna, notas copiosas, marginalia etc. “Sic loquitur eques”, “assim fala um cavaleiro” — no caso, o capitão a baronete John Harvey Blunt (1872-1938), que teve uma bela carreira militar, lutando na Guerra dos Boêres e na Primeira Guerra Mundial.

“afago oficial” (no original, “official pet”): Charles A. Lindbergh (1902-1974), célebre aviador, o primeiro a realizar uma travessia aérea transatlântica, sozinho e sem paradas, em 20-21 de maio de 1927, indo de Nova York a Paris. No verso seguinte, Pound menciona Charles A. Levine, ricaço norte-americano que cruzou o Atlântico poucas semanas após Lindbergh (4-6 de junho), mas sem pilotar o avião (isso coube a Clarence Duncan Chamberlin), em uma viagem atribuladíssima de Nova York a Berlim (mas eles “só” chegaram a Eisleben). Mais abaixo, a “bathing beauty” é Ruth Elder, que tentou viajar de Nova York para Paris (avião pilotado por George Haldeman) em outubro de 1927, mas o monoplano teve problemas técnicos e fizeram um pouso forçado em alto-mar, a centenas de quilômetros dos Açores. Ela e Haldeman foram resgatados por um petroleiro.

O “código de Peoria” refere-se aos valores do meio-oeste dos EUA. Não por acaso, o avião de Lindbergh se chamava “O Espírito de St. Louis”. Pound odiava esse provincianismo.

O “olhúnico Hinchcliffe”: Walter Raymond Hinchcliffe (1894-1928), piloto britânico, perdeu um olho na Primeira Guerra, mas fez vários voos de longa distância (incluindo uma travessia do Atlântico com o avião de Levine, em setembro de 1927). Persuadido pela atriz, decoradora de interiores e esportista britânica Elsie MacKay (1894-1928), filha de um banqueiro, Hinchcliffe pilotou o Endeavour no que deveria ser um voo transatlântico sem paradas, tendo Elsie como copiloto (a primeira mulher a fazê-lo). Eles decolaram em 13 de março de 1928, mas o avião desapareceu em pleno voo, durante a noite. Elsie era uma piloto experiente, à diferença de Ruth Elder, e tentou a travessia não por dinheiro ou celebridade (o voo foi mantido em segredo). É provável que Pound a chame de “puta de olhos negros” por conta de sua ascendência: o pai dela, referido como “também o filho de uma”, era James Lyle MacKay (1853-1932), visconde de Inchcape, presidente da Peninsular and Oriental Steam Navigation Company e da British India Steam Navigation Company, e dono de dois bancos. Como se sabe, a primeira mulher a ser bem-sucedida na travessia, indo de Newfoundland para Southampton em 19 de junho de 1928, foi Amelia Earhart.

“se casou com o distinto Dennis”: Elsie Mackay conheceu o ator Dennis Wyndham em 1917; ela trabalhava como enfermeira, e ele era um soldado ferido na Primeira Guerra. Eles fugiram para a Escócia e se casaram. Durante cinco anos, ela adotou o nome artístico Poppy Wyndham. Mas, como o pai dela não aprovasse o casamento, este foi anulado em 1922 por conta de uma tecnicalidade (o casal precisava ter cumprido um tempo mínimo de residência na Escócia; por conta disso, a pedido do visconde, um tribunal em Edimburgo anulou o casório alegando “falsa declaração de residência”). Assim, o voo transatlântico de Elsie seria uma espécie de segunda fuga (o que explica o segredo em torno da viagem), desafiando o pai mais uma vez. A foto que ilustra a postagem é de Elsie.

Canto XXVII

 

 

“Formando di disio nuova persona”, “Constituindo (ou formando) uma nova pessoa (a partir) do desejo”: verso da Ballata nº XII, de Guido Cavalcanti.

“Et quant au troisième (…)” pas”, “E quanto ao terceiro / Ele caiu no / de sua esposa, não será visto outra vez”.

“oth fugol ouitbaer”, “até que um pássaro se mostrou”: Pound cita um verso de “The Wanderer”, poema anglo-saxônico no qual se lê “sumne fugel oþbær”, “um pássaro partiu (ou decolou)”.

Onde se lê “Portugueses” na tradução, convém ressaltar que, no original, Pound usa a expressão “Porta-goose”

“Dez milhões de bacilos em sua cara”: de fato, houve um acidente no laboratório do bacteriologista suíço Henri Spahlinger (1882-1965). Ele procurava uma vacina para a tuberculose e, de fato, disse que esse tipo de acidente era comum (estava sem proteção quando o frasco com os bacilos explodiu). No verso seguinte, Pound repete a fala de Pierre Curie sobre a queimadura sofrida (v. Canto XXIII).

A história de Brisset é verdadeira. Ele era um funcionário das ferrovias que apregoava que os seres humanos descendiam das rãs. Foi levado a Paris por Jules Romains e apelidado de “Príncipe dos Pensadores”. Pound volta a citar Brisset no Canto LXXX.

“terremoto em Messina”: em 28 de dezembro de 1908, um terremoto devastou as cidade sicilianas de Messina e Reggio.

“Stretti”: La Spagnuola (1906), canção de Vicenzo Chiara.

“Clara Ellébeuse”: protagonista do romance homônimo (1899) de Francis Jammes.

“Benette joue la Valse des Elfes”, “Benette toca a Valsa dos Elfos”: composição de Franz Behr (1837-1898).

“Floradora”: opereta de Leslie Stuart, baseada em livro de Owen Hall, apresentada com enorme sucesso em Londres no final do século XIX.

“Sed et universus quoque ecclesiae populus”, “mas, de fato, também toda a congregação da igreja”: paráfrase de Pound de uma narrativa do Muratori da catedral de Modena.

“Glielmo ciptadin”, “cidadão Glielmo”: inscrição sobre o arco do grande altar da catedral de Ferrara. A inscrição foi destruída por um incêndio no século XVIII.

“Xarites”, “Cárites”, Χάριτες: as três graças, Aglaea (esplendor), Euphrosyne (alegria) e Thalia (abundância). Sua origem varia conforme as tradições orais; Pound as torna filhas de Dionísio e Afrodite.

“Cadmo semeou-me na terra”: ver Metamorfoses III, 1-130. Cadmo, fundador mítico de Tebas, era um príncipe fenício que procurava sua irmã, Europa, sequestrada por Zeus. Os “cinco últimos” são os “espartos” (“semeados”), guerreiros que brotaram da terra depois que Cadmo a semeou com os dentes de um dragão que matou. Eles ajudaram Cadmo na fundação da cidade e seriam os ancestrais das famílias nobres de Tebas. Eles também lutaram na Guerra de Troia.

“naves douradas”: o dragão morto por Cadmo era muito querido por Ares, o deus da guerra. Por conta disso, Cadmo viu-se obrigado a lutar contra os troianos. O navio no qual viajou para a guerra ostentava um dragão dourado na proa.

“… a muralha de Eblis / Em Ventadour”: as ruínas do castelo do visconde Eble III de Ventadour (?-1170), em Corrèze. Pound imaginava que o castelo fosse o local onde o visconde aprisionou a mulher, a quem ele suspeitava que mantinha um caso com o poeta Bernard de Ventadour. Essa história também é referida no Canto VI. Pound visitou as ruínas no verão de 1923.

 

[Imagem: “Dragão devorando os companheiros de Cadmo”, Hendrick Goltzius/Cornelis van Haarlem, 1588.]

Canto XXVI

“Vim aqui na minha jovem juventude”: Pound visitou Veneza no verão de 1908 com seu tio Frank.

“sob o crocodilo”: antes que as relíquias de São Marcos fossem levadas para Veneza em 828, o santo padroeiro da cidade era Teodoro. Este foi um soldado grego venerado no Império Bizantino e representado como um matador de dragão. No século IX, Veneza se tornou independente de Constantinopla e Teodoro foi substituído pelo latino Marcos. Uma estátua de Teodoro com uma lança e um crocodilo foi colocada sobre uma das colunas na entrada da “Piazetta”, próximo da coluna onde se encontrava um leão alado — símbolo de São Marcos. Olhando para o Leste, Pound veria a igreja San Giorgio Maggiore; ao Sul, a Giudecca; e, a Sudoeste, o Dogana e Santa Maria della Salute. Extrapolando essas coordenadas no Canto, temos as relações de Veneza com os impérios Otomano a Bizantino a Leste; os negócios entre Veneza e os irmãos Malatesta (Rimini, Cesena) ao Sul; e o relacionamento de Veneza com o papado a Sudoeste.

“Relaxetur”, “que seja libertado” (no caso, o Conselho dos Dez ordena a soltura de Matteo de Pasti, ocorrida em 11 de dezembro de 1461; a nota sobre Pasti está no post sobre o Canto X); “caveat ire at Turchum”, “com a condição de que ele não vá para o turco” (o “turco” era o sultão Mehmet II)

“Nicolo Segundino”: Niccolò Sagundino (c.1410-64), humanista e diplomata veneziano de ascendência grega. Serviu como “advocatus curiae” e tradutor para a república de Veneza em várias ocasiões. Pound revisita diversos eventos já abordados em outros Cantos, como a perseguição empreendida por Pio II contra os Malatesta e o naufrágio de Sigismundo.

“omnem volve lapidem”, “que todas as pedras sejam reviradas”: instruções de Sagundino, datadas de 12 de outubro de 1462, para que se implorasse ao papa que fizesse a paz com os Malatesta. Na época, Pio II já havia queimado a efígie de Sigismundo em Roma (em abril), e o rei de Nápoles derrotara os aliados franceses dos Malatesta em agosto. Os apelos de Veneza foram infrutíferos.

“Filhos fiéis”: outro documento, de 28 de outubro de 1462, com instruções da Signoria veneziana para Bernardo Giustiniani tentar demover o papa de sua perseguição. Foi o mais importante esforço diplomático de Veneza para ajudar os Malatesta. As “galés neutras” dizem respeito à obediência de Veneza à Santa Sé: as embarcações só estariam no Adriático para proteger as rotas comerciais. O diplomata Bernardo Giustiniani (1408-1480) também foi a Roma, em 28 de outubro de 1462, interceder em favor dos Malatesta. “Messire Aníbal”: Annibale di Constantino Cerboni da Castello, “procuratore” de Domenico Malatesta em Cesena. Pediu tropas venezianas para ajudar a defender Cesena, o que foi negado, pois Veneza não queria contradizer a afirmação de neutralidade feita por Giustiniani.

“Fortinbras”: Carlo Fortebracci (1421-1479), condottiere de Perugia a serviço dos venezianos. Casou-se em 1460 com Margherita, filha de Sigismundo.

“Selvo”: Domenico Selvo, doge entre 1071 e 84. Concluiu a construção da Catedral de São Marcos e encomendou o mosaico em estilo grego que ainda pode ser visto por lá. “San Marco”, claro, é a catedral.

“sed aureis furculis”, “mas com talheres (ou garfos) de ouro”: a esposa de Selvo, Theodora, era filha do imperador bizantino Constantino XI Ducas.

Lorenzo Tiepolo foi doge entre 1268 e 1275.

“gonfaron”: no original, “gonfalon” — insígnia de Veneza, com o leão de São Marcos.

“et leurs fioles chargies de vin”, “e suas taças cheias de vinho”.

“25 de abril”: dia de São Marcos. Pound se refere ao torneio ocorrido nesse dia em 1415, com times de Ferrara e Mântua.

“Uggacion dei Contarini”: Uguccione dei Contrari (1379-1448), nobre de Ferrara, amigo de Niccolò d’Este. “Francesco Gonzaga”: Gianfrancesco Gonzaga (1395-1444), Marquês de Mântua. Membro da família Malatesta pelo lado materno e pela esposa. Como Carlo Malatesta (que o criou e Parisina), foi condottiere trabalhando para Veneza.

Em “38”, isto é, 1438, quando a delegação grega desembarcou em Veneza, a caminho de Ferrara para discutir a possível aproximação entre as igrejas latina e grega. O “Marquês de Ferrara” era Niccolò d’Este. O “Imperador grego”, João Paleólogo VIII (1392-1448), que chegou a Veneza em 8 de fevereiro de 1438.

“stonolifex”: sacristão, oficial eclesiástico.

“decidir sobre o espírito santo”: para os ortodoxos, o Espírito Santo provém (ou coisa que o valha) apenas do Pai; para os católicos romanos, do Pai e do Filho (conforme estabelecido pelo Concílio de Niceia, em 325).

“Te fili Dux, tuosque succesores / Aureo annulo”, “A ti, meu filho, e aos seus sucessores, o anel de ouro”.

“Imperador Manuel”: Pound comete um erro aqui. A batalha em 1176 foi travada entre o papa Alexandre III (aliado aos venezianos) e o imperador bizantino Frederico Barbarossa.

“Ziani”: Sebastiano Ziani (1172-1178), sucessor do desafortunado Michiel e um dos doges mais importantes da história de Veneza. Grande aliado do papa Alexandre III, após a derrota de Frederico e a captura do filho deste, Otto, Ziani recebeu do papa vários símbolos de poder político: o selo de chumbo, o anel de ouro, estandartes etc.

“Pater”: Cosimo de Médici foi declarado “Pater Patriae” de Florença após sua morte.

“8 de março” de 1438, quando Sigismundo deixou Mântua e voltou para Rimini porque suas terras estavam sob ataque de Niccolò Piccinino.

“Albizi”: poderosa família florentina que exilou Cosimo em 1433, numa tentativa de frear a ascensão dos Médici. Cosimo retornou no ano seguinte e retomou o controle de Florença.

“Os venezianos podem permanecer”: do tratado de paz entre Veneza e o Império Otomano (18 de abril de 1453).

“Ano 6962 do mundo”: data segundo o calendário bizantino. No calendário ocidental, 1453, quando Constantinopla caiu.

“Pisanellus”: Antonio di Puccio Pisano, chamado Pisanello (1395-1455), pintor e escultor. Como Pisanello pintasse cavalos, o Duque de Milão o enviou a Bologna para comprar cavalos (Pound se refere a isso no ABC da Literatura). “Vittor Capello”: Vettore Cappello (1400-1467), comandante naval veneziano.

“Cardeal Gonzaga”: Ercole Gonzaga (1505-1563), filho de Francesco Gonzaga e Isabella d’Este. Tentou fazer com que os assassinos de Lorenzino escapassem impunes, auxiliando Carlos V.

“Hnr. de Mendoςa”: Diego Hurtado de Mendoza y Pacheco (1505-1575), diplomata espanhol, embaixador do Sacro Império Romano em Veneza.

“Messire Lorenzo”: Lorenzo Costa (1509-1535) ou Lorenzo Leonbruno (1506-1524). Ambos eram pintores na corte de Mântua na época.

“a história de Ancona”: referência a uma pintura de Vittore Carpaccio (1465-1520), perdida no incêndio de 1577. Nela, estavam Frederico Barbarossa, o papa Alexandre III e Sebastiano Ziani.

A carta de Mozart é reescrita por Pound ao final do Canto, revelando o que ele provavelmente sentia na época: o arcerbisco de Salzburg, Hieronymus Colloredo, não pagava a Leopold e Wolfgang Mozart o suficiente para que sobrevivessem. Por isso, eles precisavam sair em turnês. Mas o arcebispo precisava de Leopold para organizar seus concertos, de tal forma que as ausências não eram permitidas. Wolfgang escreveu uma carta suplicando pela permissão, e as viagens foram autorizadas.

“Miss Cannabich”: Rose Cannabich, intérprete que, aos 15 anos, tocava suas composições lindamente. Inspirado por ela, compôs o andante da sonata nº 7 em Mannheim.

Canto XXV

A exemplo do Canto anterior, o XXV começa com uma lista de ocorrências registradas em um livro. Aqui, a fonte de Pound é o Monumenti per servire alla Storia del Palazzo Ducale di Venezia ovvero Serie di Atti pubblici dal 1253 al 1797, editado por Giambattista Lorenzi. O livro aborda a história do Palácio Ducal por meio das regulamentações estipuladas pelo conselho da cidade. A série de recortes de Pound começa em 1255 e vai até 1537. Em 1415, ele interrompe a sequência para se debruçar sobre a vida de uma obscura poetisa romana, Sulpicia. No entender de Pound, dada a obscuridade a que foi relegada, Sulpicia seria livre tanto das exigências do mercado quanto do nocivo culto à celebridade. Após esse interregno, Pound retorna ao Monumenti e aborda o confronto entre Ticiano e o conselho veneziano entre 1513 e 1537.

“… jogar seven-eleven”: a ironia está no fato de que o conselho proibiu o jogo de dados em duas oportunidades (1255 e 1266), mas favoreceu Ticiano em uma sensaria (corretagem) em troca da promessa de que ele pintaria um mural na sala do Grande Conselho por um preço irrisório. Ticiano driblou a tarefa por mais de vinte anos, e só pintou o mural sob pressão (isso é aludido ao final do Canto), quando exigiram que ele restituísse o que recebera por todo aquele tempo. A sensaria era uma forma de obter renda estável, permitindo ao artista sobreviver. Antes, ela fora concedida a Bellini (mencionado como “Zuan Bellini”). Com a morte deste em 1516, Ticiano solicitou a sensaria (em uma carta citada na parte final do Canto), que lhe foi concedida três anos depois. Convém notar que Ticiano começou a receber o benefício quando tinha menos de 30 anos de idade, o que é um escândalo, pois havia pintores mais velhos e experientes que deveriam tê-lo recebido antes. A razão para isso foi a promessa de pintar o mural por uma quantia irrisória.

“In libro pactorum”, “no Livro dos Tratados”: o Pactorum é uma coleção de tratados comerciais firmados entre Veneza e a Sicília; “et quod publice innotescat”, “e que pode ser tornado público”, isto é, conhecido pelo público em geral (tenho certeza de existe uma tradução mais correta para a expressão). O rei Frederico da Sicília (Frederico III de Aragão, 1272-1337, governou a Sicília entre 1296 e 1337) presenteou Veneza com dois leões, celebrando a excelente relação comercial que mantinha com a cidade, e isso foi registrado no Pactorum em 15 de setembro de 1316 (“na data mencionada, dicto millessimo”).

“Lord John Soranzo”: Giovanni Soranzo, Doge de Veneza entre 1312 e 1328. A “Cúria” era o senado, então localizado “perto do pórtico”, no térreo do Palácio Ducal. “Castaldio”: oficial de justiça.

“Pôncio Pilatos”: o famigerado “procurator” da Judeia à época da execução de Jesus. No Império Romano, um “procurator” era um funcionário do tesouro público. No Monumenti, o termo é usado para designar pessoas encarregadas de adquirir materiais e obras de arte para o Palácio Ducal. A menção a Pilatos parece ser uma associação mental feita por Pound (o verso foi acrescentado a lápis nos originais) ao ler os documentos e encontrar coisas como, por exemplo, “1335. 3 lire 15 adarmes para pedra a fim de fazer um leão” (compra que teria sido efetuada em 1333, mas só registrada dois anos depois).

“Donna Sorantia Soranzo”: filha do Doge Soranzo. Aqui, assuntos públicos e privados se confundem, e a burocracia se imiscui na vida particular e familiar do Doge.

“be it enacted”, “seja promulgado.”

“O que quer dizer”: a primeira parte do Canto termina com a construção da Grande Sala do Conselho, no segundo andar do Palácio.

Os “murazzi” foram construídos para separar a Lagoa de Veneza do Adriático, evitando inundações.

“Sulpicia”: poetisa romana do início da Era Comum, cujos seis poemas que chegaram aos nossos dias foram preservados junto com os de Tibulo, no terceiro livro das elegias (Appendix tibulliana); por muito tempo, os poemas de Sulpicia foram atribuídos a ele. Seus versos são endereçados a um amante chamado Cerinthus (ou Cerinthe). No entanto, Pound não cita ou traduz Sulpicia, mas, sim, dois poemas de Tibulo (III/10 e III/11), sugerindo, dessa forma, uma atribuição deles para Sulpicia.

“Pone metum, Cerinthe”, “deixe o medo de lado, Cerinthus”: verso 15 da oração de Tibulo a Apolo pela saúde de uma garota, Sulpicia (III/10); “Deus nec laedit amantes”, “o deus não fere os (ou não faz mal aos) amantes”: continuação do mesmo verso, “Pone metum, Cerinthe: deus non laedit amantes”, que ecoa a elegia de Propércio que Pound incluiu em sua “Homenagem a Sexto Propércio” (III). Abaixo, na tradução de Mário Faustino (em Ezra Pound – Poesia. São Paulo/Brasília: Edunb/Hucitec, 1993). Clique na imagem para ampliar:

 

“Hic mihi dies sanctus”, “este dia é sagrado para mim”; “Sero, sero”, “tarde demais, tarde demais”.

“Nada fizemos, nada pusemos em ordem”: Pound desanca a ineficiência burocrática dos venezianos, sobretudo no que diz respeito ao modo como lidavam com a arte. Levaram nada menos que 80 anos para construir a Sala do Conselho. Os calabouços fétidos citados alguns versos antes eram um problema pelo menos desde o século XIV, mas isso só foi resolvido com a construção de prisões fora do Palácio Ducal no século XVII.

“… uma peneira cheia d’água”: as cinquenta danaides, filhas do rei Dânao, de Argos, assassinaram seus respectivos esposos na noite de núpcias. No mundo ínfero, foram punidas com a obrigação de encher d’água uma jarra furada.

“Pone metum / Metum, nec deus laedit”, “Deixe o medo de lado / Medo, o deus não fere”: variação do verso de Tibulo citado antes.

“… esse outeiro…”: no original, “this bolge”, sendo “bolge” o plural de “bolgia”. Trata-se de uma referência (perdida na tradução) ao “Malebolge” do oitavo círculo no Inferno dantesco.

“Fetusa”: ninfa, filha de Hélio. Pound a imagina no Hades, como uma deidade similar a Perséfone (v. Canto XXI).

“Phlegethon”: rio de fogo que corre no Hades, mencionado na Eneida (VI: 451). Às vezes, é referido como Flegetonte.

“Napishtim”: personagem do Gilgamesh que, a exemplo de Noé, construiu uma arca e salvou os animais e a humanidade de um dilúvio provocado pelos deuses. Como prêmio, tornou-se imortal.

“νόος”, “nous”: pensamento, intelecto, mente, razão.

A pintura de Ticiano, concluída em 1538, retratava a Batalha de Cadore (1508), importante vitória dos venezianos sobre os habsburgo. Em 1577, um incêndio no Palácio Ducal destruiu a pintura. Alguns desenhos preparatórios são mantidos no Louvre com o título “A Batalha de Spoletto”.

 

Canto XXIV

 

“livro dos mandatos”: registro dos pagamentos feitos por Parisina (Laura Malatesta, 1405-1425, prima de Sigismundo), marquesa de Ferrara e esposa de Niccolò III, nos últimos anos de sua vida. O livro foi estudado pelo historiador Alfonso Lazzari, fonte usada por Pound em parte deste Canto.

“Zohanne of Rimini”: Giovanni of Rimini, “maestro de’ nostri barbareschi”. Parisina adorava cavalos e cuidava da participação de Ferrara em corridas.

“barbarisci”: os melhores cavalos de corrida (o nome advém de Barberìa, isto é, o Norte da África, de onde vinham muitos desses cavalos). Alguns versos depois, Pound usa o termo “palio”, que se refere aos cavalos de corrida.

“San Zorzo”: San Giorgio, santo padroeiro de Ferrara.

“ziparello” (ou “zaparello”), uma espécie de casaco curto.

“Ugo fiolo del Signore”, “Ugo, filho do nosso senhor”: Ugo Aldobrandino (1404-1425), filho mais velho de Niccolò e enteado de Parisina, com quem ela se envolveu romanticamente. Um criado descobriu o affair e contou para Niccolò. Este, após flagrá-los, ordenou a execução de ambos, levada a cabo em 21 de maio de 1425.

“27 nov. 1427”; “Procuratio nomine patris”; “Leonello Este”; “Margarita”; “Roberto Malatesta”: agindo em nome do pai (Niccolò, ainda vivo na ocasião), Leonello Este organizou o casamento de sua irmã, Margherita d’Este (1410-1476, filha ilegítima de Niccolò com Stella de’Tolomei), com Galeotto Roberto Malatesta (1411-1432), irmão mais velho de Sigismundo e lorde de Rimini na época. Galeotto morreu quatro anos depois, e Margherita nunca se casou novamente. A filha deles, Constanza (1430-1475), casou-se com um membro da família Farnese. Galeotto era pio e, tendo morrido tão jovem, passou a ser venerado em Rimini como um santo.

“natae prelibati margaritae Ill D. Nicolai Marchionis Esten. et Sponsae”, “em favor de Margarita, filha do supramencionado, o ilustríssimo lorde Niccolò d’Este, e noiva”.

“Don Carlo Malatesta”: Carlo Malatesta (1368-1431), condottiere italiano, irmão de Andrea Malatesta de Cesena e Pandolfo III de Fano. Após a morte de Andrea em 1416, Carlo organizou o casamento de sua sobrinha, Parisina, com Niccolò d’Este, em 1418.

“pub. Ferr.”, “notário público de Ferrara”.

“na vigília de Odisseu”: Pound faz uma analogia entre as errâncias de Odisseu após a Guerra de Troia e a viagem de Niccolò d’Este a Jerusalém, entre abril e julho de 1413. Claro que a viagem de Niccolò, muito bem organizada e luxuosa, tem muito pouco a ver com a longa e atribulada viagem de Odisseu.

“dove fu Elena rapta da Paris”, “onde Helena foi roubada por Páris.”

“Ora vela, ora a remi, sino ad ora di vespero”, “Agora velejando, agora remando, até o anoitecer.”

“Olivet”: o Monte das Oliveiras.

“hic est medium mundi”, “aqui é o centro do mundo.”

“Ego, scriptor cantilenae”, “Eu, o escritor do canto”: Pound intervém para sacanear a noção medieval de que Jerusalém seria o centro do mundo.

“Benché niuno cantasse”, “embora ninguém cantasse.”

“Luchino del Campo”: secretário de Niccolò d’Este, manteve um diário da peregrinação a Jerusalém. Esse registro é a fonte usada por Pound para reconstituir a viagem.

“Aldovrandino”: o chamado Diario Ferrarese afirma que um dos familiares de Ugo, Aldovrandino di Rangoni, foi executado na mesma noite em que ele. Aldovrandino é mencionado no relato de A. Frizzi em Memorie di Ferarra, e também na ópera Parisina, de Mascagni (libreto escrito por D’Annunzio). Seu papel na confusão, entretanto, permanece obscuro.

“1425 vent’uno Maggio”: 21 de maio de 1425, data em que Parisina e Ugo foram executados.

“Fa me hora tagliar la testa (…) mani”, “Corte a minha cabeça, como eu tão rapidamente decapitei Ugo, meu filho, ele disse, mordendo um pedaço de pau que tinha na mão”: Pound parafrseia uma passagem de Memorie di Ferrara, de Frizzi.

“ter pacis Italiae auctor”, “três vezes autor da paz italiana”: a fonte de Pound, Alfonso Lazzari, afirma que Niccolò queria ser o “príncipe da paz” (“il principe della pace”) e “pacificador da Itália” (“pacificatore d’Italia”). Pound enfatiza que essa política pacificadora foi algo buscado por Niccolò e seu filho, Borso.

“Com os meninos puxando os cabos”, “tre cento bastardi” (“trezentos bastardos”): Niccolò, mulherengo inveterado, teria mais de vinte bastardos.

“anulado uma corrida de cavalos”: após a execução, Niccolò enviou mensagens para todos os príncipes italianos, relatando o ocorrido. Em Veneza, segundo Frizzi, o doge Francesco Foscari suspendeu uma corrida de cavalos.

“mataram a mulher de um juiz”: após a execução de Parisina e Ugo, Niccolò ordenou que fossem executadas todas as mulheres adúlteras. A ordem foi revertida pouco depois, mas, antes disso, duas mulheres foram mortas, incluindo a esposa de um juiz, Laodamia delli Romei (citada a seguir). Ela foi decapitada no “pa della justicia”, o palácio da justiça. A outra execução foi de Madonna Agnese, em Modena.

“CHARLES”: Carlos VII, rei da França (1403-1462), agraciou Niccolò com um brasão de armas (conforme decreto citado abaixo).

“Monna Ricarda”: Madonna Ricciarda di Salluzzo (1410-1464) casou-se com Niccolò d’Este em 1429, mas só foi para Ferrara em janeiro de 1431. Teve dois filhos com ele, Ercole e Sigismundo (não o Malatesta, evidentemente).

“scavoir faisans (…) Rabateau”, “dar a conhecer… e chegar… à alta / nobreza de linhagem e casa… e grandes feitos… / valor… afeto… nosso primo citado… / poder, autoridade real… ele e seus descendentes… e / como desejam ter doravante/ PARA SEMPRE EM SEUS BRAÇOS E APOSENTOS / três lírios de ouro… em campo azul rendilhado… / desfrutem e usem. / 1431, conselho em Chinon, o Rei, l’Esne de Trimouill, / Vendoise, [e assinado] Jehan Rabateau.”

“Marchese Saluzzo”: o pai de Monna Riccarda, Thomasso III, morreu em 1416. O irmão dela, Lodovico I de Saluzzo, esteve em Ferrara em 1433. O autor do Diario escreve que Lodovico era o pai de Riccarda, e Pound comete o mesmo erro.

“Hercules”, “piccolo e putino” (“pequeno e jovial”): Ercole d’Este (1431-1505), filho mais velho de Niccolò e Monna Riccarda.

“Polenta”: a família Polenta foi protetora e patrona de Dante Alighieri em seus últimos anos de vida, em Ravenna. Ostasio III da Polenta foi o derradeiro membro da família a ser lorde da cidade. Em 1441, Veneza conquistou Ravenna, e Ostasio morreu no exílio, em Creta, em 1447. É um sinal do que ocorreria com a própria família de Este, que perderia Ferrara para o papado em 1597.

“per diletto”, “por prazer”; o “trabalho noturno” mencionado por Pound é o sexo; “paradiso dei sarti”, “paraíso dos alfaiates”; “feste stomagose”, “banquetes indigestos”.

“Será possível…”: Hermes dirigindo-se a Apolo depois de roubar seu gado, conforme narrado no “Hino Homérico IV”. Pound encontrou uma tradução desse hino no mesmo volume da tradução de Divus da Odisseia.

“Alberto me fez”: quem “fala” é o Palazzo Schifanoia, construído por Alberto I d’Este (1347-1393), pai de Niccolò. Borso o ampliou, redecorou e, entre outras coisas, encomendou a pintura do Salão dos Meses (1467-1470). Na época de Pound, acreditava-se que esse salão havia sido pintado apenas por Cosimo Tura. Hoje, sabe-se que Francesco del Cossa também pintou alguns dos painéis.

“… vendeu a um curtume”: após a extinção da família Este, com a morte de Alfonso II (1533-1597), a cidade foi tomada pelo papa. Durante esse período, o palácio teve vários ocupantes. Entre eles, a família Tassoni, que, em 1789, sublocou o palácio para que a cidade o usasse para processar tabaco. Os afrescos ainda eram visíveis em 1710, mas as paredes foram pintadas depois disso. Os afrescos só foram redescobertos em 1820, por Giuseppe Saroli, e a pintura foi removida em 1841. No entanto, nas décadas seguintes, o palácio continuou a ser utilizado como celeiro, asilo para surdos-mudos e escola. Apenas em 1897 é que foi considerado um museu e restaurado. Os afrescos foram restaurados duas vezes: em 1950-54 e em 1983. Pound viu os afrescos em um péssimo estado, portanto.

Canto XXIII

 

“Et omniforms…”: Ficino, “Omnis intellectus est omniformis”, que Pound traduz como “todo intelecto é omniforme”. Isso já foi citado no Canto V. Ficino traduzindo Porfírio, De Occasionibus. A carreira de Ficino como filósofo, estudioso e tradutor se deu graças ao impacto causado por Gemisto Pletão em seu patrono, Cosimo de Médici.

“Psellos”: Miguel Pselo (c.1018-1078), monge, conselheiro político e filósofo bizantino, reavivou o estudo do neoplatonismo.

“Gemisto”: o bizantino Gemisthus Plethon (Georgios Gemistos, às vezes referido em português como Gemisto(s) Pletão, c.1355–1452) foi um filósofo neoplatônico. Estabeleceu uma escola platônica em Mistras e era consultado pelos imperadores bizantinos acerca de questões filosóficas e legais. Participou como delegado do Concílio de Ferrara. Graças à impressão que Gemistos causou em Florença, conforme dito acima, Cosimo de Médici pediu a Marsilio Ficino que traduzisse as obras de Platão e dos neoplatônicos para o latim.

“Jamais com esta religião”, isto é, com o cristianismo. Gemistos criou seu próprio sistema religioso com base na mitologia grega e no neoplatonismo (embora adotasse o cristianismo ortodoxo na vida pública, a fim de evitar problemas).

“Houile blanche”, “carvão branco” (Aristide Bergès, referindo-se à água, quedas d’água, o uso das hidrelétricas etc.).

“Invention (…)”, “A ciência não consiste em inventar um número de entidades mais ou menos abstratas correspondendo ao número de coisas que você quer descobrir.” A ideia de conhecimento mudou desde a Idade Média até a era moderna, e é isso que Pound ressalta nessa passagem do Canto (como a referência às novas formas de energia, ao uso do Irol como combustível, às pesquisas que, anos depois, resultariam na invenção da penicilina etc.). Nos versos seguintes, dramatiza a descoberta do radium pelos Curie: “J’ai obtenu…”, “Sofri uma queimadura que levou seis meses para curar” (Pierre Curie, no caso).

“Ἃλιος δ Ὑπεριονίδας…”: “O sol, [filho] de Hipérion, pôs-se numa taça de ouro / para que possa atravessar o oceano” — versos de Estesícoro, Geryoneis, seguidos pela tradução latina por Schweighäuser, “ima vada noctis obscurae”, “baixos vaus da noite escura”.

“ἥλιος, ἅλιος, ἅλιος = μάταιος”, helios, hαlios, hαlios = mataios, “sol”, “marinho”, “marinha” = “infrutífero” (“estéril”): Scott-Liddell (“Derivação incerta”). Odisseu tentando escapar da Guerra de Troia “arando” a areia, isto é, fingindo loucura, é mencionado em seguida.

“alixantos, aliotrephès, eiskatebaine”: “gasto pelo mar, nutrido pelo mar, mergulhar” (sendo o último uma liberdade que tomo; literalmente, seria algo como “descer para dentro”).

“ποτì βένθεα”, “para as profundezas”; “νυκτòς ἐρεμνᾶς”, “da noite escura”; “ποτì ματέρα κουριδίαν τ’ ἂλοχον”, “para [sua] mãe, esposa cansada”.

“παĩ δάς τε φίλους (…)” ἔβα δἀφναισι κατάσκιον”: “E [para seu querido] filho (…) desceu bosque sombreado por louros” — Pound omite o nome do herói (Héracles), de tal forma que é o próprio Hélio/sol quem desce à escuridão. Alguns versos abaixo, ele é referido diretamente: “‘Yperionides”, o filho de Hipérion.

“… enquanto eu dormia”: a exemplo do que fez nos Cantos IV, XVII e XXI, Pound usa o mote relativo ao sono/passeio por um paraíso terrestre de coloração grega.

“E meu irmão De Maensac”: a história do trovador Peire de Maensac, contada por Pound no Canto V, é aqui revisitada pela perspectiva do irmão dele, Austors.

“Simone”: Simone IV de Montfort (1175-1218), nobre e um dos líderes das forças papais na cruzada contra os Albigenses. Grünewald erra o gênero aqui (“estava morta”).

“maniqueus”: seguidores do profeta iraniano Mani (216-274). O maniqueísmo foi uma religião gnóstica que se baseava na oposição de dois princípios (luz/escuridão, bem/mal). Seus adeptos foram perseguidos pelos católicos desde o século V e, à época da Cruzada Albigense, a religião já se encontrava extinta. No entanto, o papa declarou que os cátaros eram maniqueus. Austors (e Pound) rejeita acusação, e a ideia é que os trovadores não fossem cátaros nem maniqueus, e que o amor cortês (de inspiração grega) não separava amor e sexo, e tampouco era contaminado pela culpa. Tratava-se de reconhecer as forças e os ritmos da natureza por meio de uma conexão de ecos eleusinos.

“Tethnéké”, “está morta”: no caso, presumo, Troia; a passagem remete à fuga de Anquises, resgatado por Eneias das ruínas de Troia, após a queda desta (e tema da tela que ilustra o post, de Federico Barocci, 1598).

O trecho final do Canto remete à história de Anquises e de sua sedução por Afrodite, e de como ele tem uma visão da real natureza do mundo por meio de uma relação sexual com uma deusa. A referência a Adonis, príncipe libanês (e, portanto, semita) também amado por Afrodite (a história dele está nas Metamorfoses X, 503-559; 708-39), serve para sublinhar o caráter carnal da revelação de Anquises, embora não haja qualquer indicação (em Ovídio ou qualquer outra fonte) de que Adonis tenha morrido virgem.

“Otreu, de Frígia”: Afrodite, para convencer o temeroso Anquises a se deitar com ela, disse que era uma mortal, filha do rei da Frígia.