Canto III

 

Deste Canto até o VII, temos exemplos do imagismo poundiano, ecoando a técnica desenvolvida e utilizada em obras anteriores do poeta. E transitamos pelo Mediterrâneo, seguimos com as referências mitológicas e renascentistas, Safo, El Cid, com as histórias dos trovadores etc.

Antes de abordar o Canto, algumas linhas de Mário Faustino sobre o imagismo:

Imagismo (…) a exata percepção e comunicação da imagem em toda a sua praxis.
(…)

O imagismo de Pound: relação direta com o próprio processo de conhecimento, com a percepção verbal do conhecimento. Poética e não apenas retórica. O poema é antes de tudo algo que se faz, não apenas algo que se diz. Não o poeta dizendo por meio do poema; mas o poeta fazendo o poema que, por sua vez, fala — naturalmente em nome do poeta (indireta e fatalmente expressando o poeta), mas com sua própria voz de ser criado. Daí a importância da técnica, do modus faciendi. (…)

Agora, palavras do próprio Pound (algumas delas escritas para a Poetry de março de 1913; outras, depois):

Na primavera ou no princípio do verão de 1912, H. D., Richard Aldington e eu chegamos à conclusão de que estávamos de acordo quanto aos três princípios seguintes:
1. Tratamento direto da “coisa”, seja subjetiva, seja objetiva.
2. Não usar absolutamente palavra alguma que não contribua para a apresentação.
3. Quanto ao ritmo, compor na sequência da frase musical, e não na sequência de um metrônomo.
(…)
Uma “imagem” é aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo. (…) É a apresentação instantânea de tal “complexo” que dá a sensação de súbita libertação; esse senso de liberdade em relação aos limites de tempo e de espaço; esse senso de súbito crescimento (…).
Não use palavra supérflua, nenhum adjetivo que não revele alguma coisa.
(…)
Ou não use ornamento nenhum ou use bom ornamento.

(Em Mário Faustino, Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977, pág. 154-55, 148-49).

Na introdução da belíssima edição bilíngue de Lustra (São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros, 2011 — Selo Demônio Negro), o poeta e tradutor Dirceu Villa chama a atenção para o fato de que “a formulação do imagismo, segundo o próprio Pound, se deveria mais à influência [da prosa] de Ford Madox”, havendo “a constatação da beleza em poesia através daquilo que Pound acreditava então [início dos anos 1910, presumo] ser o seu âmago, a imagem: ‘o essencial do Imagisme é que não use imagens como ornamentos. A imagem é em si o discurso. A imagem é a palavra além da linguagem formulada'” (a citação é de Ruthven, A Guide to Ezra Pound’s Personae (1926), Brkeley/Los Angeles: University of California Press, 1969, p. 12, “Introduction”, notas de rodapé).

Nos Cantos, se entendi bem, o imagismo é (ou se torna) “apenas” mais um recurso à disposição do autor. Villa fala de um “esquema panhistórico”, do “constante fluxo de tempo”, superpondo “experiências analogicamente associadas num contínuo de sentido” (e cita o trecho do Canto IV em que a metamorfose de Ácteon é associada à de Peire Vidal). Seria possível falar em um “esquema pan-estético”, superpondo técnicas do imagismo, do vorticismo e até mesmo do futurismo, dentre inúmeras outras?

Agora, vamos ao Canto III.

Eis, para começo de conversa, Pound em Veneza, sentado “nas escadas de Dogana”. O ano é provavelmente 1908, depois que ele foi demitido do cargo de professor no Wabash College, em fevereiro. Ficou em Veneza de abril até agosto, e ali publicou (por conta própria) A Lume Spento, seu livro de estreia. Dogana, ou Punta della Dogana, era onde funcionava um dos escritórios alfandegários da cidade. Hoje, é um museu. Fica em um lugar privilegiado, onde o Grande Canal flui para a lagoa, e dali é possível ver alguns dos pontos mais conhecidos de Veneza. Há uma estátua da Fortuna no topo do prédio, contemplada e citada por Henry James em suas Horas Italianas. Assunte o mapa.

As “garotas” são outro aceno ao Sordello de Browning, no qual o trovador italiano observa algumas moças bonitas dos degraus de um palácio. “Buccentoro” (ou Buccintoro) é o mais antigo clube de remo da cidade. Morosini é uma família tradicional veneziana. Conta-se que Pound conseguiu dois concertos para a pianista Katherine Ruth Heyman (conhecida por seu trabalho com composições de Scriabin) em Veneza, um deles na casa da Condessa Morosini, em 4 de agosto de 1908. O fato de que Pound cita “as vigas no Morosini clareadas naquele ano”, isto é, observa a casa de fora, sugere que ele não convidado para o concerto.

Koré (grego, “donzela”, “moça” ou coisa que o valha) é outro nome para Perséfone, filha de Zeus e Deméter. Raptada por Hades, Perséfone foi levada por ele ao mundo ínfero. Desesperada, Deméter fixou moradia na terra, “abdicando de suas funções divinas (de deusa da vegetação), até que lhe devolvessem a filha”. Com isso, as plantas pararam de crescer e o mundo ficou em perigo. Sem opção, Zeus ordenou a Hades que devolvesse Perséfone. Hades, contudo, “fez com que a esposa colocasse na boca uma semente de romã, símbolo da fertilidade, e obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida”, isto é, os infernos. Por fim, chegou-se a um acordo, e Perséfone passaria alguns meses com Hades e o restante do tempo na terra e no Olimpo, com a mãe. “A catábase (a descida) e a anábase (a subida, o retorno) de Perséfone provocaram a instituição dos célebres Mistérios de Elêusis.”¹

A “morada de Koré” é uma citação do poema em prosa autobiográfico Notturno, de Gabriele D’Annunzio. Este usa a expressão para se referir ao prédio (interminado) do Palazzo Venier dei Leoni. Ferido na Primeira Guerra, D’Annunzio estava hospitalizado do outro lado do canal, isto é, defronte ao tal edifício. Ele apelidara a dona do Palazzo, Maria Casati, de Koré. Para ele, a Veneza bombardeada era o Hades (o lugar, não a divindade), e o Palazzo, a morada de Perséfone. O “prosema”² de D’Annunzio também levou Pound a fazer uma distinção entre prosa e poesia: a primeira seria “negativa”, um registro da mediocridade contemporânea; a outra, “positiva”, um registro da mente culta, não abastardada e ligada à tradição.

“Flutuam deuses no mar azul”: daqui até o final da estrofe, Pound aponta para um mundo povoado por deidades, visíveis pela via da imaginação ou em momentos de revelação. Ele teria (pres)sentido tais e tais coisas, seu “phantastikon”, em uma visita a Sirmione e ao Lago de Garda.

Poggio Bracciolini (1380-1459) foi um humanista italiano famoso por desencavar diversos manuscritos latinos nas bibliotecas e mosteiros europeus. Em 1416, visitando os banhos termais em Baden-Baden, ficou chocado com a maneira como homens e mulheres se misturavam, livres e desnudos, por ali. Em um diálogo intitulado “Aux Etuves de Weisbaden” (sic), publicado na Little Review em 1917, Pound faz com que Poggio deixe de lado esse moralismo e o apresenta como um esteta e seu alter ego.

A seguir, Pound investe em uma paródia d’El Cantar de Mio Cid, épico nacional espanhol composto entre os séculos XII e XIII, de autoria desconhecida e que narra as aventuras de Rodrigo Diaz de Vivar (c.1043-1099), o “Cid” (“senhor”, em mourisco). Difamado por seus inimigos, El Cid é banido de Castela pelo rei Alfonso VI, e a “niña de de nueve años” é quem o informa disso com sua “voce tinnula” (“voz estridente”, citação do poema 61 de Catulo, repetida nos Cantos XX e XXVIII), estando os adultos muito amedrontados para inteirá-lo do decreto real.

Raquel e Vidas eram dois judeus de Burgos. El Cid deixou com eles dois baús (“a bagagem”) como garantia para um empréstimo (deveriam estar cheios de ouro), pedindo que não os abrissem até o final do ano. Confiando na honra do Cid, os usurários não checaram os baús; quando finalmente o fizeram, descobriram que eles estavam cheios de areia. Um desses baús está exposto na Catedral de Burgos. Eis o primeiro sinal do famigerado e repulsivo antissemitismo de Pound, que contamina diversas passagens d’Os Cantos.

Valência foi a cidade que El Cid, buscando voltar às boas com o rei (e depois de passar alguns anos lutando do lado dos mouros, às ordens do emir de Saragoça, porque um homem precisa ganhar a vida), reconquistou em 1094 (a cidade voltaria a ser dominada pelos árabes em 1102). Morto em 1099, o corpo do Cid foi primeiro enterrado no monastério de San Pedro de Cardeña, e só depois levado para Burgos.

A referência a Inês de Castro (c.1325-1355) remete-nos de volta a Perséfone: a exemplo da deusa, foi “levada” muito jovem para o mundo ínfero — no caso, assassinada a mando do rei lusitano Afonso IV por conta de sua relação malvista e malquista com o filho deste, o futuro D. Pedro I de Portugal, com quem se casou em segredo. Depois de assumir o trono, em 1357 (não, ele não matou o pai; o monarca morreu de causas naturais), D. Pedro perseguiu os assassinos e legitimou os filhos que tivera com Inês; estão enterrados lado a lado (ou frente a frente, para ser exato). A anábase aqui deve-se à lenda muito conhecida de que, uma vez entronado, D. Pedro exumou o corpo da amada, corou-a rainha e obrigou os membros da corte a lhe beijarem a mão. A fonte de Pound para a história de Inês é Camões (Os Lusíadas, III, 120-35), e ela é revisitada de maneira mais detalhada no Canto XXX.

“Sinistro dissipar”: referência ao palácio da família Gonzaga em Mântua, visitado por Pound em 1911. Ou seja, voltamos às deambulações de Pound pela Itália com que o Canto teve início. O pintor Andrea Mantegna (1431-1406), que trabalhava para a família Gonzaga, pintou apenas uma parte dos afrescos na Camera degli Sposi. Por fim, “Nec Spe Nec Metu” (“sem esperança, sem medo”) era o lema de Isabella d’Este (1474-1539), esposa de Francisco Gonzaga. Após a morte do Marquês Ludovico Gonzaga, ela ajudou a manter a casa demonstrando extremas destreza e inteligência, trabalhando política e militarmente, e também foi uma patrona das artes. Assim, pode-se dizer que o Palácio Ducal de Mântua é, também, uma “morada de Koré”.

……

¹ As aspas nesse parágrafo são do Dicionário Mítico-Etimológico, de Juanito de Souza Brandão (Petrópolis: Editora Vozes, 2014), p. 504.
² Acho que foi Wesley Peres, poeta e Duque da Cataluña (nessa ordem), quem primeiro usou essa expressão.
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