Jogo de adiamentos

O quinto capítulo do Ulysses, de James Joyce, parodia o episódio dos lotófagos, parte integrante do canto IX da Odisseia de Homero. Recém-saído de casa, Leopold Bloom palmilha por Dublin enquanto não chega a hora de comparecer ao funeral de um conhecido, Paddy Dignam. Será em torno do enterro de Dignam que vai girar a sombria e esplendorosa descida ao Hades no sexto capítulo do romance. Antes dela, o quinto capítulo traz informações importantes sobre o protagonista e reafirma um modo de apresentar temas e personagens, sempre ao nível da rua, uns esbarrando nos outros, vendo e sendo vistos, incompreendendo e sendo incompreendidos, e o faz com um tom como que contaminado por uma “doença do sono no ar”. No Ulysses, o ócio é a antessala do Hades.

Ao final do capítulo anterior, ainda em casa, depois de preparar e levar o desjejum na cama para a esposa, Molly, e ler uma carta enviada pela filha, Milly, Bloom faz sua visita matinal à latrina. Está à mesa da cozinha quando se sente “pesado, cheio”, e então advém o “doce relaxamento do intestino” que o empurra para a proverbial casinha. Lá, enquanto ele faz o que precisa fazer, continuamos a seguir o fio de seus pensamentos: a mulher, a filha, o outro (Boylan, amante de Molly), o tempo, a morte. Por fim, na “luz clara, de corpo mais leve e mais fresco”, ele retorna ao dia, pronto para se lançar na rua. Sublinhe-se que, na épica negativa joyciana, cada mínima ação e cada mínimo gesto nos levam para um outro patamar da consciência de si e do mundo – mesmo ações e gestos tais como os descritos acima. Óbvio que Bloom, homem comum em meio a outros tantos homens comuns, não é elevado à categoria dos heróis homéricos. Não há anacronismos dessa natureza em Joyce. O que se desvela diante dos nossos olhos é uma regurgitação irônica e um deslocamento paródico, os quais são renovados página após página, capítulo após capítulo, mediante os acontecimentos mais comezinhos que movimentam as vidas dos personagens enquanto eles lutam contra o dia, um dia qualquer, na periferia da Europa, no começo do interminável século XX.

Assim, mais uma vez na rua (antes, no quarto capítulo, ele já havia saído rapidamente a fim de comprar rins para o desjejum), Bloom tem algum tempo livre até o funeral de Dignam. Matar até o tempo antes de encarar a morte. A morte de outrem, bem entendido, mas ainda e sempre morte. Trotando pela cidade, ele se distrai com a vitrine de uma loja de chás, e aqui têm início as alusões ao episódio homérico: seus olhos “inertes”, a mão “com graça lenta”, “as pálpebras derrubadas”, “folhonas preguiçosas pra você ficar boiando por aí”, sem “mexer uma palha o dia inteiro”; “Letargia. Flores do ócio”.

Na Odisseia, conforme adiantamos acima, os lotófagos aparecem em um episódio curto, no começo do canto IX. Graças à ingestão constante da flor de lótus, eles vivem narcotizados, esquecidos de si, do passado, de tudo. No poema, tudo se dá entre os versos 83 e 103 do referido canto. Odisseu desembarca na ilha dos lotófagos e ordena a três de seus companheiros que investiguem o lugar.  Enturmados com os locais e seguindo o seu exemplo, os homens começam a comer a flor de lótus e se esquecem de retornar para junto dos outros, tanto que Odisseu se vê obrigado a arrastá-los até o barco e amarrá-los: “que mais ninguém, comendo lótus, / olvidasse a volta!”.

Bloom não chega a olvidar a volta, mas ainda estamos no início de sua odisseia pedestre. Ele dá uma enorme volta para ir à agência dos correios buscar uma carta endereçada a Henry Flower, pseudônimo que usa para se corresponder com outra mulher, Martha. Ao sair, esbarra em um conhecido, M’Coy. Ansioso para ler a carta, faz de tudo para dispensar o sujeito o mais rápido possível enquanto se distrai com a lúbrica possibilidade de entrever um naco de carne (tornozelo, canela) da desconhecida que, do outro lado da rua, está prestes a subir em uma carruagem: “Olha lá! Olha lá! Seda relance rica meia branca. Olha!”. No entanto, um “pesante bonde grasnando a campainha” obstrui a vista do nosso herói no momento mais crítico.

Depois de se livrar de M’Coy, ele segue caminho. Para numa esquina para ver uns cartazes. Contorna o mesmo abrigo dos cocheiros ao qual retornará várias horas depois. E para junto ao muro da estação para, enfim, ler a tal carta. Dentro, uma flor amarela com pétalas achatadas. “Linguagem das flores. Elas gostam porque ninguém consegue ouvir. Ou um buquê de veneno para nocautear o sujeito.” Embora excitado com a possibilidade, Bloom não cogita conhecer a missivista pessoalmente. As obscenidades trocadas por escrito já lhe parecem suficientes. Após a leitura da carta, ele continua a caminhar. Matando o tempo. Acaba adentrando uma igreja. Filho de pai judeu, incompreende algumas coisas da missa em andamento e se diverte com outras. Aqui e ali, reitera-se a letargia reinante no capítulo: “Boa ideia o latim. Atordoa primeiro”. Deixando a igreja, lembra-se de buscar as encomendas de Molly no boticário. Enquanto espera o farmacêutico localizar a encomenda, cogita ir ao banho turco perto dali e, uma vez lá, quem sabe, masturbar-se, pois vê-se acometido por uma “vontade engraçada”. Compra um sabonete e fica de voltar mais tarde para acertar tudo e pegar as encomendas. Na rua mais uma vez, a caminho do banho, uma ocorrência insólita: um conhecido que atende pela alcunha de Garnizé Lyons pede para dar uma olhada no jornal que ele carrega. Está interessado nas corridas. “Pode ficar”, diz Bloom. “Eu estava justamente indo jogar fora.” Lyons, por sua vez, entende que está recebendo uma dica, que deveria apostar em um cavalo azarão chamado “Jogafora”. Mais uma incompreensão. Mais um mal-entendido. Por fim, Bloom antevê o banho que tomará a seguir:

Ele anteviu seu corpo pálido reclinado nela todo, nu, em ventre cálido, ungido por fragrante sabonete derretido, suave lavado. Viu seu tronco e seus membros marolondulados sustentados, boiando leves para cima, amarelimão: seu umbigo, botão de carne: e viu os negros cachos emaranhados de seu tufo flutuando, flutuantes pelos do caudal em torno do murcho pai de milhares, uma lânguida flor flutuante.

Com o banho, é encerrada a hora morta e cerrada a antessala do Hades. Termina a preparação para o enterro ao mesmo tempo em que chega ao clímax a letargia que, paradoxalmente, anima o capítulo. Não vemos Bloom se banhar, frise-se, mas apenas antevendo o banho. A catábase virá a seguir. Enquanto ela não se inicia, frise-se também que o “murcho pai de milhares” não emprenha ninguém nos estertores do capítulo.

Não será fácil a viagem de Bloom à necrópole, assombrado pelos fantasmas do pai suicida e do filho morto ainda pequeno. Daí a importância dessa hora morta, desse palmilhar ativo na superfície, ativo porque ele circula de um lado a outro da cidade, anda e conversa e observa e fantasia, mas também essencialmente ocioso, de uma indolência que, no limite (ou quando muito), convida à masturbação. No entanto, talvez contaminado pela apatia que se espalha pelo episódio, Bloom não se masturba no banho – e isso é algo de que só saberemos bem mais tarde, no décimo-terceiro capítulo (“Nausícaa”). Em seu ócio, nem mesmo tal alívio ele chega a buscar. Não, não. Ele se resguarda. Tem muito chão a percorrer.

Assim, entre a latrina visitada no final do capítulo anterior e a ida ao cemitério no capítulo posterior, Bloom navega por uma espécie de adiamento insistente. O ócio nessa passagem do Ulysses é uma instância desarmadora. Nela, até mesmo a antevisão do prazer solitário pressupõe o adiamento: ele sente aquela “vontade engraçada” e cogita se masturbar no banho, mas não há qualquer garantia que, no momento oportuno ou planejado (antevisto), o ato seja efetivamente realizado. Como foi dito no parágrafo anterior, nada acontece. E a informação concernente a isso, inclusive ela, é também adiada, postergada para um momento futuro. Não há espaço para ejaculações precoces no jogo de adiamentos proposto por Joyce.

De modo similar, na conversa com M’Coy, a atenção de Bloom se dispersa, vagabundeia, e os olhos dele acabam se voltando para a expectativa de ver algo da mulher do outro lado da rua, aquela que está prestes a subir na carruagem. No entanto, essa expectativa é também frustrada ou, melhor dizendo, adiada – sim, Bloom verá algo de uma mulher, mas só horas depois, quando, não por acaso e instado por outrem, também dará cabo daquela “vontade engraçada” que o acomete no boticário.

Voltando à conversa entre os dois homens, um dos tópicos concerne à morte de Dignam, a cujo funeral M’Coy avisa que talvez não comparecerá. “Será que você podia botar o meu nome lá no enterro?”, ele pede a Bloom. “Eu queria ir, mas pode ser que eu não consiga, sabe”. A desculpa envolve uma possível obrigação profissional, a qual, por sua vez e ironicamente, diz respeito a outro cadáver. Contudo, nós só nos despedimos uma vez dos que partiram. Pobre Dignam.

Em todos esses casos, seja na antevisão do banho, seja na visão frustrada de um naco de carne alheia, seja na notícia de uma provável ausência, percebo o ócio como uma espécie de (não-)evento preparador: para o prazer sexual, para o funeral (e o que ele implica), para o dia que se desenrola e a noite que nos aguarda, inadiável. Na hora morta, é como se Bloom instintivamente se resguardasse para exigências futuras, convocações outras, mais graves e urgentes, talvez, e assim ignorasse as promessas que não lhe dizem respeito (na igreja, por exemplo) e as ausências que lhe parecem irrelevantes. Além disso, embora se incomode com eventos que poderia adiar, mas não impedir (o adultério de Molly), ele não vê sentido em fazer nada a respeito e dá prosseguimento à errância que constitui o livro e se confunde com a vida.

Por fim, talvez seja lícito assinalar o óbvio: a supressão final, não raro abrupta, está sempre à espreita. Pergunte ao pai e ao filho de Bloom. Pergunte a Dignam. Eles não responderão. Em vista disso, tudo se apequena e Bloom opta pelo menor dos males: caminhar em meio aos vivos, ao nível da rua, enquanto for possível.

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HOMERO. Odisseia. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.
JOYCE, James. Ulysses. Tradução: Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin/Companhia, 2012.

[Imagem: Ulysses (1947, detalhe), de Robert Motherwell.]