DFW como experiência religiosa

Resenha publicada no Estadão em 1º.12.2012.

dfw

No momento em que as mais de mil páginas de Infinite Jest estão sendo traduzidas, nada melhor do que uma introdução à prosa virtuosística de David Foster Wallace. Até porque o volume de contos Breves Entrevistas com Homens Hediondos, lançado há alguns anos, só atingiu uma parcela relativamente maior (e ainda assim não muito grande) de público após a trágica morte do escritor, aos 46 anos de idade, em 2008. Assim, numa tentativa louvável de reapresentar o autor aos leitores brasileiros, chegaram recentemente às livrarias as peças de não ficção reunidas em Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. Para quem nunca leu nada desse sujeito genialmente idiossincrático (e vice-versa), eis um bom aperitivo. Para quem já o conhece, é como voltar para casa.

O livro traz seis textos. Quatro deles foram encomendas de publicações como Harper’s, Gourmet e The New York Times e partem de temas tão variados quanto a Feira Estadual de Illinois, um cruzeiro pelo Caribe, o Festival da Lagosta do Maine e o tenista Roger Federer. Os outros são uma curta palestra sobre o humor em Franz Kafka (e a incapacidade de muitos para compreendê-lo ou sequer acessá-lo) e um discurso de paraninfo dos mais inusitados – e belos.

De antemão, ressalte-se algo que deveria ser óbvio para todo mundo, mas que, desgraçadamente, não é: em se tratando de um autor talentoso como DFW, ou de qualquer autor, na verdade, importam menos os temas e mais – bem mais – as maneiras como eles são abordados e desenvolvidos. Há passagens embasbacadoras em cada um dos textos que integram o volume.

Logo no primeiro deles, que dá título ao livro, o leitor é exposto à “grande massa pitoresca de humanidade do Meio-Oeste” que superlota a Feira de Illinois. Parodiando a estrutura de um diário e sustentado por uma verve que não deve nada ao melhor jornalismo literário, o ensaio rasga a planura da caipirice norte-americana e nos revela “uma cultura dialogando consigo mesma, mostrando credenciais para inspeção própria”. O que temos é um homem circulando pelo lugar e nos contando o que vê: brinquedos de parque de diversão descritos como “Experiências de Quase-Morte”, alimentos cuja mera menção talvez seja capaz de entupir artérias, desfiles de vacas que “parecem estar drogadas”, “Duelo do Meio-Oeste de Reboque com Trator e Caminhão”, etc. A estupefação e a alienação são galopantes, por mais que a ideia do autor como um “alienígena” passeando pela feira, além de óbvia, seja falha: o assombro de DFW é sempre e inapelavelmente humano, pois o “verdadeiro espetáculo que nos atrai aqui somos Nós”.

Tal esforço literário-antropológico é levado a extremos em Uma Coisa Supostamente Divertida Que Eu Nunca Mais Vou Fazer, sobre o tal cruzeiro caribenho. Ali, momentos engraçadíssimos (a relação com a camareira onipresente e, ao que tudo indica, onisciente; o discurso estarrecedor do Diretor de Cruzeiro e a “piada” escatológica que ele conta envolvendo o assustador Sistema de Esgotos a Vácuo do navio, a sua própria esposa e um mexicano) convivem com passagens lancinantes, nas quais o autor discorre, implícita ou explicitamente, sobre como “existe algo de insuportavelmente triste num Cruzeiro de Luxo” e, vale dizer, na vida em geral.

Em meio às 11 ou mais refeições diárias, à “diversão esforçada”, com os passageiros “mimados até a morte”, paulatinamente afogados em sua autoindulgência e transformados em eternas “Crianças Insatisfeitas”, DFW percebe como, num cruzeiro daqueles, se paga não só pela experiência, mas pela “interpretação dessa experiência”. Analisando até mesmo a brochura da companhia que promove o passeio, na qual a publicidade, mais do que sugerir, constrói a “fantasia em si” e a entrega, prontinha, para o cliente, ele sugere que a imaginação de cada um é a primeira coisa a ser morta e enterrada por aquela forma de entretenimento. Os viajantes são praticamente coagidos a se divertir, bombardeados pela necessidade de “relaxar” e “se deixar levar”. Elas não têm escolha. São zumbis flanando pelo navio, perdidos entre um “programa imperdível” e outro.

Ao final da leitura, é fácil perceber como tudo se resume a dar uns passos para trás e observar com um mínimo de atenção o que se passa ao redor. É a “liberdade de ver os outros” de que nos fala Isto É Água, o mencionado discurso de paraninfo em que, dentre outras coisas, apregoa a necessidade de “manter a verdade na superfície da consciência em nossas vidas cotidianas”. A epifania não raro decorre do que é mais pedestre, banal. E é nesse sentido que, parafraseando o título do ensaio sobre Federer que fecha o volume, podemos pensar em David Foster Wallace como uma experiência religiosa na mais estrita acepção do termo.

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Nota: o romance Infinite Jest foi lançado no Brasil em fins de 2014 com o título Graça Infinita e eu também o resenhei para o Estadão.