Três cartas de William Gaddis

Do livro THE LETTERS OF WILLIAM GADDIS
(ed. Steven Moore. Dalkey Archive Press, 2013).
A Dalkey lançou há pouco uma nova edição, revista.
Mais sobre Gaddis
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Para Charles Socarides.

[Um amigo de Harvard (…). Esta é a primeira carta em que é explicada a ideia fundamental e a trama de The Recognitions.]

Pedro Miguel, Zona do Canal
[fevereiro ou março de 1948]

prezado Charles.
Primeiro — por favor, não se alarme com o peso desta correspondência que pareço despejar em você. Mas, quando você escreve uma carta como a que acabei de receber, sinceramente, eu perco a cabeça de tanta empolgação. Terrivelmente nervoso agora.
Tudo porque estive fora por 3 dias, em uma ilha próxima, trabalhando freneticamente nesse romance. Que parece tão ruim. Mas, assim: veja, o que você diz nessas cartas — mais especificamente na última — me aborrece porque as imagens que você traça, os fatos que apresenta, são exatamente como esse romance que está crescendo. É um bom romance, excelente, todo o encadeamento da história, os acontecimentos, o frenesi. O homem que (metaforicamente) se vende para o diabo, o jovem assim à caça de uma figura paterna, perseguindo o mais velho até a sua (do jovem) morte. E a “garota” — que acaba perdendo por completo a própria identidade, que tentou criar um mito original, ela se perde porque sua última testemunha (um camarada que usa heroína) é preso — o jovem (“herói”) sendo o delator. Eis o ponto avassalador: que tudo isso aconteceu. Não para valer, talvez, mas com os fatos da vida recente e a minha fuga, aconteceu. O tempo inteiro, a cada minuto, a coisa cresce em mim, eu “penso em” (ou me lembro de) novos fatos do romance — a Verdade sobre o Passado (título alternativo). (O título é Ducdame, chamaram ‘algumas pessoas que estavam nuas’¹.) Mas essa ficção que cresce se encaixa tão insanamente bem nos fatos da vida que, às vezes, não consigo suportá-la, preciso descarregar (como estou fazendo aqui). E então eu a arruíno por escrever mal. Como ao tentar ser inteligente — talvez por medo de ser sincero? Mas me vejo arruinando tudo. E então — porque quando escrevia na faculdade eu exagerava tanto, agora [o que escrevo] deve ser reservado, sutil, insinuado. Ou os trechos ruins de escrita simplesmente se acumulam. Veja: “Há poucas situações em que não tentamos controlar o tempo; seja ao incitá-lo desvairadamente, ou quando, apavorados, assistimos à passagem de sua carruagem alada, que respinga em nós a lama que chamamos de memória”. Não é tão horrível. Veja, isso simplesmente aconteceu, estava fora do meu controle até que a sentença chegou ao ponto final. Ser superficial pode matar o que deve estar vivo.
(…) Estamos sozinhos, nus — e a nudez deve escolher entre a vulgaridade e a razão. Cada um de nós, responsáveis. (…)
Gostaria de vê-lo agora, se você pudesse dar uma olhada nessa coisa, condensá-la peremptoriamente (partes dela) — a escrita, exposição. Deus, eu conheço todo esse medo, mas não simpatizo com ele. Tolos. Não posso me dar ao luxo de ser um.
É como se a sua carta antecipasse exatamente o que estou escrevendo como ficção.
Não posso ir para casa antes de junho. Por causa de dinheiro. Sempre isso. Posso viver em Long Island depois de junho, mas não antes do verão, entende? Preciso trabalhar nesse maldito canal até abril, espero economizar cerca de 600 dólares, o bastante para sobreviver até junho e ir para casa. Eu odeio isso, ser pago 12 dólares por dia — ou noite — para desperdiçar. Agora são 10:15 da noite — e tenho que estar no canal às 11, “trabalhar” até as 7 da manhã. Mas preciso fazer isso por causa do dinheiro. Talvez seja uma coisa boa não ter dinheiro, me apaixonei loucamente pela filha do governador local da ilha — não é mexicana, panamenha, mas espanhola. Nariz esplêndido. Pelo amor de Werther, não lhe cai mal. É um inferno não ter tempo nem dinheiro para viver.
Então, há esse homem aqui que vai para a Suécia em um veleiro. E, se o romance de repente parecer ruim demais, devo ir com ele, precisa de alguém para trabalhar, um barco bem pequeno, à vela.
Deus, a fuga, fuga. Você entende, não? Eu, quase. Mas, se eu não conseguir criar um bom romance, então devo continuar fugindo, até que saiba tudo por mim mesmo — não só como fato filosófico, como uma verdade na qual “acredite” e esteja tentando vender — mas que eu possa me sentar e saber sem ter de tentar vendê-la (escrevendo) para todo mundo.

Obrigado. Vou escrever para você.
W.

¹ Ducdame, called ‘some people who were naked’: “Ducdame” é uma palavra nonsense da canção de Jacques em Como gostais, de Shakespeare, a qual ele jocosamente define como “uma invocação grega para juntar bobos em um círculo” (5.2.53). “Algumas pessoas que estavam nuas” é provavelmente da peça Vestir os Nus, de Pirandello (…). (N.E.)

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Para J. Robert Oppenheimer.

[Físico norte-americano (1904-67), conhecido por seu trabalho no desenvolvimento da bomba atômica. Em 26 de dezembro de 1954, ele deu uma palestra intitulada “Perspectivas nas Artes e Ciências” durante as celebrações do bicentenário da Universidade de Columbia. A palestra foi reproduzida em seu livro The Open Mind (1955). A carta a seguir é um rascunho corrigido.]

Cidade de Nova York
4 de janeiro de 1955

Caro Doutor Oppenheimer.
Já tomei uma liberdade maior do que esta (…) ao ligar para a Harcourt, Brace & Co., que está publicando um longo romance que escrevi, e pedir a eles que enviassem um exemplar para o senhor. O senhor deve receber todo tipo de correspondência, mensagens excêntricas e cartas de fãs de todos os tipos, mas poucas, penso eu, contendo meio milhão de palavras. E, uma vez que posso também imaginar que o senhor raramente lê romances, nem que seja pela falta de tempo, é uma imposição a mais lhe enviar um [romance] tão volumoso.
Mas, por ter lido sua recente palestra no aniversário da Columbia, eu jamais deveria ter considerado fazer algo assim. Mas fiquei tão abalado com a concisão, e o uso da linguagem, com que o senhor indicou os problemas que me tomaram sete anos para reunir e quase mil páginas para apresentar, que a primeira coisa a me ocorrer foi o envio do exemplar. E submeto esse livro ao senhor com o mais profundo respeito. Porque eu acredito que The Recognitions foi escrito sobre “o caráter colossal da dissolução e da corrupção da autoridade na fé, no ritual e na ordem temporal (…)”, sobre as nossas histórias e tradições como, “ao mesmo tempo, laços e barreiras entre nós”, e [sobre] a nossa arte, que “nos une e separa”. E, se eu puder continuar usando as suas palavras, é um romance no qual demoradamente tentei o meu melhor para mostrar “a integridade da arte mais íntima, detalhada, verdadeira, a integridade do trabalho artesanal e da preservação do que é familiar, cômico e belo”, em “enorme contraste com a vastidão da vida, a imensidão do globo, a alteridade das pessoas, a diversidade dos caminhos e a escuridão que a tudo abarca”.
O livro é um romance sobre fraude. Sei que, caso venha a lê-lo, o senhor encontrará passagens maçantes, incidentes ofensivos e algumas imaturidades belas e dolorosas, tudo isso em minhas tentativas de apresentar “os males da superficialidade e os terrores da exaustão” tal como os vi: tentei expor a sombria luta de um homem cercado por aqueles que “se dissolveram em uma confusão universal”, aqueles que “nada sabem e nada amam”.
(…)

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Para Johan Thielemans.¹

[Em seu livro Vrijheid in de steigers (Haarlem: In de Knipscheer, 1985), o crítico holandês Graa Boomsma narra uma visita a William Gaddis (pág. 24, como Joseph Heller dando uma passadinha), e, algumas páginas depois, descreve como, estando ele e Gaddis na varanda, Thomas Pynchon apareceu para bater um papo (pág. 28).]

Wainscott, Nova York 11975
11 de outubro de 1985

Caro Thielemans,
Obrigado pela sua carta de 30 de setembro com a notícia — inédita para mim — de que Graa Boomsma não só nos visitou em Long Island como encontrou Thomas Pynchon aqui! Ele me escreveu sobre essa viagem para os Estados Unidos, esperando que nos encontrássemos, mas houve alguma confusão & isso nunca aconteceu, certamente não aqui, e por certo não com [a presença de] Pynchon (a quem eu nunca conheci, não obstante as muitas alegações dos críticos acerca da similaridade entre nossas obras: vejo que ambos somos classificados como paranoicos & conspiratórios, mas quem, à exceção de James Michner², não é?). E, então, eu ficaria muito agradecido se você pudesse me enviar, quando tiver tempo, uma cópia desse trecho traduzido. Muito curioso.
(…)

¹ O belga Johan Thielemans é um crítico literário especializado em literatura norte-americana. Publicou vários artigos sobre a obra de Gaddis.
² Imagino que Gaddis esteja se referindo ao norte-americano James A. Michener (1907-1997), autor best-seller de longos (e anódinos) romances históricos e sagas familiares, coisas como Fogos da Primavera, Sayonara e Texas.