Canto VIII

Canto VIII

 

Os Cantos VIII-XI abordam a história de Sigismundo Pandolfo Malatesta (1417-1468), condottiere, nobre, poeta, patrono das artes e lorde de Rimini e Fano a partir de 1432.

“Estes fragmentos que você guardou (preservou)”: “você”, no caso, é Eliot, e Pound se refere ao verso 431, um dos derradeiros d'”A terra devastada”, “These fragments I have shored against my ruins”, “Com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas” (na tradução de Ivan Junqueira, em Poesias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981). Assim, Pound inicia o Canto se referindo ao uso de fragmentos na poesia e do papel que eles representam na presentificação do passado, por assim dizer.

Calíope é a musa da poesia épica. Os Cantos Malatesta são a primeira tentativa de Pound de reconciliar a verdade história com a poesia épica. Aqui, à diferença do que fez em Cantos anteriores (como o V, no qual escreveu como um historiador contemporâneo, o VI, no qual compõe uma crônica fragmentada de eventos, ou o VII, em que o passado é reconstituído intuitivamente com o auxílio de traços materiais visíveis), Pound busca essa “verdade” por meio de uma rigorosa pesquisa histórica, complementada por uma recriação de ecos épicos dos fatos pesquisados. Assim, os Cantos Malatesta são “verdadeiros” enquanto relatos daquilo que Pound considera fascinante e relevante acerca de Sigismundo (distanciando-se da “objetividade” do historiador, portanto).

“sous les lauriers”, “sob os louros”.

Aquele Alessandro”: Alessandro de Médici, cujo assassinato foi relatado no Canto V. Ele, de fato, era filho de uma criada negra. Pound parece sugerir um contraste entre a inércia e o fatalismo de Alessandro, morto pelo primo Lorenzino, e a vida ativa de Sigismundo.

“Frater (…) carissime”: de uma carta de Sigismundo para Giovanni de Médici, de 7 de abril de 1449 — “Tão querido para mim quanto um irmão, a companhia mais querida”. Pound leu a carta no livro de Charles Yriarte, Un condottiere au XV siècle, e, depois de pesquisar no Archivio di Stato, em Florença, corrigiu dois erros cometidos por Yriarte: a saudação a expressão “buttato via”, “jogado fora”, “descartado”, “desperdiçado” (que Yriarte transcreveu erroneamente como “gettato via”). Na época em que escreveu a carta, Sigismundo estava sob contrato dos florentinos. Em outubro de 1448, eles o haviam liberado para liderar o exército veneziano na Lombardia. Veneza e Florença eram aliadas na guerra pela sucessão em Milão, contra Alfonso e o papa.

“(…) a paz entre você e o Rei de Ragona”: Sigismundo deveria fazer parte das negociações entre Florença e Alfonso, rei de Nápoles. Graças à vitória dele em Piombino, Florença devia muito a Sigismundo, coisa que até o papa Pio II, seu arqui-inimigo, não deixou de notar (v. Canto IX, 51-55). No entanto, quando a paz foi acordada em Lodi, em 1454, Alfonso (por conta da traição de Sigismundo em 1447), exigiu que ele fosse excluído das negociações, e os florentinos não objetaram. O “Rei de Ragona”, no caso, é Alfonso (1396–1458), Rei de Aragão, Valência, Maiorca, Sardeña e Córsega, Sicília, e Conde de Barcelona. Após a morte do Duque de Milão, Filippo Maria Visconti, em 1447, Alfonso reivindicou a cidade afirmando que o Duque, que não teve herdeiros homens, havia dito que ele o sucederia. A fim de reforçar sua reivindicação, Alfonso se mudou para a Toscana e contratou Sigismundo para lutar contra Veneza e Florença, que também reivindicavam a cidade. Como Alfonso pagou muito menos do que prometera, Sigismundo mudou de lado e assinou com os florentinos em dezembro de 1447. Pound narra esses eventos no Canto IX, 46-55.

“Maestro di pentore”: não se sabe ao certo a quem Sigismundo se referia. Yriarte supõe que fosse Piero della Francesca por causa da data em que foi pintado o afresco no Templo Malatestiano (a catedral de Rimini, construída no século XIII e inteiramente reformada por Sigismundo).

“affatigandose (…) mai”, “de tal modo que ele possa trabalhar como quiser, ou desperdiçar tempo como quiser, nunca faltando provisão”.

“In campo (…) contra Cremonam”, “No campo dos mais ilustres senhores de Veneza, 7º dia de abril de 1449, diante de Cremona”: Sigismundo, como general dos venezianos, liderou um cerco malsucedido a Cremona nos primeiros meses de 1449.

“… e porque o supracitado (…) dez do Bailio”: trecho do contrato firmado entre Sigismundo e os “dez do Bailio” (o conselho florentino) em 5 de agosto de 1452, pelo qual ele deixaria o serviço de Milão e lutaria por Florença, com a aprovação do Duque de Milão. Este, na época era Francesco Sforza (1401–1466), que iniciou sua carreira militar a serviço do Duque anterior, Filippo Maria Visconti. Ele se casou com a filha de Filippo, Bianca, em 1441. Após a morte do sogro, defendeu a cidade contra as reivindicações de Veneza e Alfonso de Aragão. Em 1450, vitorioso, ele se instalou como o novo Duque de Milão.

Penna e Billi: rochedos no Monte Carpegna, nos Apeninos. Entre eles, está a cidade originária dos Malatesta, Pennabilli.

“Lyra”: pastiche de um poema mais longo encontrado no livro de Yriarte, que este atribui erroneamente (embora Pound não soubesse disso) a Sigismundo. L. Rainey aponta, com base na crítica de Aldo Francesca Massèra, que esse longo poema citado no livro de Yriarte não foi escrito por Sigismundo, mas por Simone Serdini, poeta senês falecido em 1420 (quando Sigismundo tinha três anos, portanto).

“Sob as plumas…”: em maio de 1442, um mês após o casamento de Sigismundo com Polissena Sforza, Bianca e Francesco Sforza visitaram Rimini e foram esplendidamente recebidos. Sigismundo esperava que Sforza o ajudasse a tomar Pesaro de Galeazzo, o Inepto, um primo pertencente a outro ramo da família Malatesta.

“… as guerras ao sul”: Francesco estava a caminho de uma batalha em Ancona, ao sul de Rimini.

O “imperador grego” era João VIII Paleólogo (1392–1448), imperador bizantino que, em 1438, viajou para a Itália a fim de firmar de aliança com o papa e os príncipes italianos. Seu objetivo maior era vencer os turcos. Um concílio foi organizado para que as igrejas ocidental e oriental se reconciliassem e deveria ocorrer em Ferrara, mas, como esta cidade sofresse com a peste, foi transferido para Florença. As discussões teológicas e políticas se prolongaram até o ano seguinte, chegou-se a um acordo e o papa prometeu ajuda militar ao imperador. No entanto, quando ele voltou para Constantinopla, houve enorme revolta contra a possibilidade de reconciliação, e o acordo caiu por terra.

O bizantino Gemisthus Plethon (Georgios Gemistos, às vezes referido em português como Gemistos Pletão, c.1355–1452) foi um filósofo neoplatônico. Estabeleceu uma escola platônica em Mistras e era consultado pelos imperadores bizantinos acerca de questões filosóficas e legais. Participou como delegado do Concílio de Ferrara. Graças à impressão que Gemistos causou em Florença, Cosimo de Médici pediu a Marsilio Ficino que traduzisse as obras de Platão e dos neoplatônicos para o latim. Em 1466, depois de lutar contra os turcos a mando dos venezianos, Sigismundo levou os ossos de Gemistos para a Itália e os colocou em um dos sarcófagos do Templo.

“… a guerra ao lado do templo em Delfos”: Gemistos se refere às “quatro guerras sacras” entre cidades-estados gregas pelo controle do templo, o que permitiu que Filipe II da Macedônia, aproveitando a divisão interna, tomasse a Grécia após vencer a Batalha de Queroneia (338 a.C.). A analogia com o século XV é óbvia: apenas uma frente cristã unida poderia enfrentar os perigos externos.

“… POSÍDON, concrete Allgemeine“, “universal concreto”: segundo a teologia pagã de Gemistos, Posídon, “filho de Zeus”, seria a “causa primeira do universo”, entidade sem representação antropomorfizada e, portanto, a personificação da Ideia Platônica que se manifesta nas formas individuais.

“Com a igreja contra ele”: embora tenha tido uma relação passável com quatro papas (Martinho V, Eugênio IV, Nicolau V e Calisto III), Sigismundo entrou em rota de colisão com Pio II (seu maior inimigo) e Paulo II.

A filha de Francesco é, claro, Polissena, com quem Sigismundo se casou para reforçar a aliança com Sforza. Mas este, em vez de ajudá-lo a tomar Pesaro de Galeazzo, mediou a venda da cidade para seu irmão, Alessandro Sforza, por 20 mil florins, em 1444 ou 1445.

Broglio: Gaspare Broglio Tartaglia (1407–1493) foi um dos conselheiros e comandantes mais leais de Sigismundo. Escreveu um relato da vida do chefe intitulado Cronaca Malatestiana del secolo XV (cujo manuscrito Pound consultou em Rimini, em março de 1923).

“templum aedificavit”, “construiu o templo”: frase dos Comentários de Pio II. Trata-se, é claro, da Igreja de San Francesco, também chamada de Templo Malatestiano, em Rimini. Uma das razões alegadas por Pio II para excomungar Sigismundo está o fato de que ele encheu o templo de imagens pagãs. Pound usa a frase de Pio II num sentido inverso, louvando a grandeza de Sigismundo.

“… até os 50”: 1450 foi o ano em que Francesco Sforza se tornou Duque de Milão e no qual ele traiu Sigismundo com relação a Pesaro. Com o fim das guerras pela sucessão em Milão, Sigismundo perdeu dinheiro e sua posição ficou mais e mais vulnerável.

“Galeaz”: Galeazzo, o Inepto. Além de Pesaro, ele também vendeu Fossombrone para Federico de Urbino por 13 mil florins. Foi excomungado pelas vendas dessas cidades consideradas “papais”.

Pound cita “Guillaume Poictiers” para traçar uma analogia entre ele e Sigismundo, sendo ambos seriam aristocratas, guerreiros e poetas.

“Mastin”: apelido de Malatesta da Verucchio (1212–1312). Verucchio é uma cidade próxima de Rimini.

“Paolo il Bello”: já citado no Canto V (quando o encontramos no Inferno, ao lado da amada Francesca da Rimini), eis Paolo Malatesta, (c.1250–1283), terceiro filho de Malatesta da Verucchio.

“Parisina”: uma história similar à de Paolo e Francesca. Parisina Malatesta (1404–1425), filha de Andrea Malatesta, casou-se com Niccolò III d’Este em 1418. Ela se apaixonou pelo enteado, Ugo. O marido descobriu e executou ambos em 1425. Quando morreu, Parisina já havia dado à luz três crianças. Sua filha mais velha, Ginevra (1419–1440), seria a primeira mulher de Sigismundo.

“Atridas”: a exemplo dos Malatesta, os atridas foram uma família célebre por membros trucidando uns aos outros: Agamêmnon sacrificou a própria filha, Ifigênia, e depois foi assassinado pela esposa, Clitemnestra, que, por sua vez, foi morta pelo filho Orestes — Ésquilo nos conta tudo isso na trilogia Oresteia).

“… naquele tempo”: setembro de 1429, quando morreu Carlo Malatesta, tutor e protetor de Sigismundo.

“… nenhuma dívida”: em janeiro de 1430, o papa Martinho V ameaçou confiscar as terras do Malatesta pelo não pagamento de dívidas, o que provocou uma grande reação da população local e dos irmãos Malatesta e seus aliados, a família Este de Ferrara. Por conta disso, o papa se dispôs a negociar e, em março, os irmãos cederam as terras de Ancona, San Sepolcro e Cervia, além de pagar 4 mil ducados, mas mantiveram Rimini.

“… lutaram nas ruas”: alusão à tentativa de Carlo II Malatesta de anexar Rimini, Cesena e Fano, em 1430.

Canto VII

Dando continuidade ao Canto anterior, seguimos com Eleonora, e “ela se consumia num clima britânico”: o casamento com Henrique II se deteriorou com o tempo, e ela chegou a ser aprisionada por mais de quinze anos (1173-1189), primeiro no Castelo de Chinon, depois em Salisbury e outros lugares, por ter se aliado aos filhos Henrique, o Jovem, Ricardo Coração de Leão e Godofredo em uma rebelião contra o rei, contando, inclusive, com o apoio de seu ex-marido, o rei francês Luís VII.

Este Canto retoma e reitera diversas expressões e elementos de Cantos anteriores, como as referências a Helena de Troia, à cegueira de Homero etc. Uma observação: Trajano Vieira traduz Έλέναυς, ‘έλανδρος, ‘έλέπτολις (termos novamente citados neste Canto) como “enleia-nau”, “enleia-herói” e “enleia-pólis” (em Agamemnôn, 689-90. São Paulo: Perspectiva, 2017). Bela solução.

“Si pulvis nullus erit (…) excute”: “Et si nullus erit pulvis, tamen excute nullum”, “se não houver poeira, abane do mesmo jeito” (Ars amatoria I: 151). Como se vê por essa citação, Ovídio estava mergulhado na vida cotidiana e criava poesia a partir de detalhes e observações de sua própria experiência, sem recorrer à mitologia. No caso, o poeta instrui o leitor sobre como seduzir uma dama no teatro: sente-se ao lado e, como quem não quer nada, com a desculpa de que há um pouco de poeira no colo dela, use as mãos para “limpar” a sujeira.

“… e li mestiers ecoutes”, “e escute os mestres”. Pound continua “incorporando” a voz de Ovídio.

“… mas sempre uma cena”: à diferença das crônicas, que apresentavam os eventos de forma cronológica, há exemplos na literatura medieval em que uma cena isolada é abordada e evocada em termos visuais, como em Bertran de Born.

“… y cavals armatz”, “e os cavalos de armadura” (Bertran de Born, “Bem platz lo gais temps de pascor”, “Muito me agrada o doce tempo da Páscoa”).

“Un peu moisi (…) baromètre”: Pound pinça algumas frases do quarto parágrafo de “Um Coração Simples”, de Flaubert, e os reordena de tal forma a sintetizar um período histórico.

“A imensa cabeça em abóbada”: aqui começa o retrato de Henry James como o grande e metódico modelo literário — “fantasma em lentidão”, “tragando o tom das coisas”, “tecendo uma frase sem fim”.

“,,, con gli occhi onesti e tardi”, “com olhos dignos e austeros”: variação sobre duas passagens da Comédia — 1) Inferno IV, 112/13: “gentes aí, de tardos, graves / olhares”; 2) Purgatório VI, 61-63: “Chamamo-la; ó lombarda alma sincera, / como estavas altiva e sobranceira / e, no mover dos olhos, digna e austera!”.

“Grave incessu”, “andar solene”. Variação da Eneida I, 45: “et uera incessu patuit dea”, “Deusa no porte, perfeita” (em que Virgílio descreve Afrodite).

“… visitas fantasmagóricas”: possível alusão a uma visita que Pound fez em 1919 ao apartamento de Margaret Cravens, uma amiga americana e sua primeira patrona, e que cometeu suicídio em junho de 1912.

“Ione” é Ione de Forest, nome artístico da dançarina Jeanne Heyse ou Joan Hayes. Pound assistiu a uma apresentação dela em Os Ritos de Elêusis, de Aleister Crowley. Ela se matou em agosto de 1912. Pound escreveu “Dance Figure” e “Ione dead the Long Year” em homenagem a ela.

Liu Ch’e é o imperador Wu-Ti (156-87 a.C.), da dinastia Han. Ele escreveu uma célebre elegia para Li Furen, sua concubina. Ele também visitava os aposentos da amada para sentir sua presença, o que reafirma um dos temas deste Canto — a persistência da memória.

O Elysée, no caso, é o Hotel Elysées, em Paris, próximo de onde ficava o apartamento de Margaret.

“Erard”: um piano projetado pelo prestigioso Sébastien Érard. Cravens, pianista bem-sucedida e rica, possuía um.

“… em ‘tempo'”: outra alusão ao conto já citado de Flaubert, que Pound usa para evocar o apartamento de Cravens.

“… garrafas de cerveja aos pés da estátua”: no caso, uma estátua no Jardim de Luxemburgo. O escritor holandês Fritz René Vanderpyl (1876-1965), citado em seguida pelo prenome, morava perto do Jardim.

“Smaragdos, chrysolitos”, “esmeraldas, topázios”: citação das Elegias (livro II, XVI, 43-46), o trecho em que Propércio lamenta o gosto de Cynthia pelo luxo.

Vasco da Gama (1469-1524), nosso velho conhecido, o explorador português que descobriu a rota marítima para a Índia. Herói dos Lusíadas, onde Camões o descreve (no Canto II, estrofes 97-98) assim:

(…)
Vestido o Gama vem ao modo Hispano,
Mas Francesa era a roupa que vestia,
De cetim da Adriática Veneza
Carmesi, cor que a gente tanto preza:

De botões douro as mangas vêm tomadas,
Onde o Sol reluzindo a vista cega;
As calças soldadescas recamadas
Do metal, que Fortuna a tantos nega,
E com pontas do mesmo delicadas
Os golpes do gibão ajunta e achega;
Ao Itálico modo a áurea espada;
Pluma na gorra, um pouco declinada.

Pound apreciava a qualidade “prosaica” dos Lusíadas, que, para ele, era melhor do que um romance histórico.

“E ‘Montanhas do mar concebem tropas'”: Pound parodia o estilo bombástico de Camões, para ele um sintoma da decadência portuguesa.

“Le vieux commode en acajou”, “a velha cômoda [ou baú] de mogno”.

“A cortina escarlate”: nova referência à tradução de Arthur Golding das Metamorfoses (X, 595-96), à passagem em que Atalanta corre.

“Luz de lampião em Buovilla”: diz-se que Arnaut apaixonou-se pela esposa de Guillem de Bouvila, mas não conseguiu seduzi-la. Pound o imagina com a dama em um quarto, vendo os contornos de seu corpo através das roupas, contra a luz, tal como Hipômenes fez com Atalanta. O trecho “e quel remir” (“para que eu possa contemplá-la”) é de um verso de “Doutz brais e critz”, de Arnaut.

Niceia era uma ninfa devota de Ártemis. Estuprada por Dionísio, matou-se depois de dar à luz. Logo, seu destino ecoa os destinos de outras personagens citadas no Canto, como Ione.

“O voi che siete in piccioletta barca”: Dante, Paraíso II, 1-6. Na tradução de Ítalo Eugênio Mauro (ed. 34):

Ó vós que em pequenina barca estais,
e o lenho meu que canta e vai, ansiados
de podê-lo escutar, acompanhais,

voltai aos nossos portos costumados,
não vos meteis no mar em que, presumo,
perdendo-me estaríeis extraviados

Dido, rainha de Cartago e personagem muito importante na Eneida. Siqueu foi seu primeiro amor e marido, assassinado pelo irmão dela, Pigmalião, rei de Tiro. Ela recebe Eneias, sobrevivente e, por assim dizer, náufrago da Guerra de Troia, e se apaixona por ele ao ouvi-lo narrar a destruição da cidade. Quando Eneias parte rumo à Itália, Dido se mata. No Canto, Pound sugere uma situação distinta, em que a antiga paixão não é substituída pela nova (e destrutiva), mas é, ela própria, destrutiva. Em seu bilhete de suicida, Ione culpou o ex-marido.

“O homem vivo, longe de terras e prisões, / agita os casulos secos”: ao escrever esses versos, Pound tinha o poeta e nacionalista irlandês Desmond Fitzgerald (1890-1947) em mente. Seria uma espécie de novo Lorenzino, que se sacrifica em nome da causa republicana.

Após repetir pequenos fragmentos de Varchi relativos ao assassinato de Alessandro de Médici por Lorenzino, Pound nos sai com um “E biondo”. Trata-se de uma possível alusão a Obizzo II d’Este (1247-1293), Duque de Ferrara, colocado por Dante no Inferno, em um rio de sangue reservado aos tiranos. Ali, um de seus companheiros é Ezzelino da Romano, irmão de Cunizza. Obizzo foi assassinado pelo próprio filho, a exemplo de Alessandro, isto é, que também foi morto por um membro da própria família.

Canto VI

“Sabemos o que fez você”: referência à Odisseia XII, 184-191, as sereias cantando para Odisseu.

‘Aproxima, Odisseu, plurifamoso, glória
argiva. Escuta nossa voz, a voz das duas!
Em negra nau, ninguém bordeja por aqui
sem auscultar o timbre-mel de nossa boca
e, em gáudio, viajar ampliando sua sabença,
pois conhecemos tudo o que os aqueus e os troicos
sofreram na ampla Ílion — numes decidiram-no.
Quanto se dê na terra amplinutriz, sabemos.’

Guillaume (1071-1127), governante, cruzado, um dos primeiros trovadores. Aqui, Pound o liga a Odisseu. No Canto VIII, ele será ligado a Malatesta.

“… arrenda as suas terras”: ele hipotecou Toulouse, que obteve via casamento com Filipa, Condessa de Toulouse (1073-1118), para ir à Primeira Cruzada, em 1101. Ele recuperaria Toulouse em 1113, mas a perderia de novo em 1122.

“‘Tant las fotei (…) vetz…'”: “Você deve ouvir quantas vezes eu os fodi / Cento e oitenta e oito vezes…”, versos de “Farai un vers, pos mi sonelh” (“Farei um verso, e depois vou tirar uma soneca”, poema de Guillaume de Poitiers.

Nos versos seguintes, Pound narra a genealogia de Guillaume (incluindo o casamento de Luís VII com Eleonora de Aquitânia, neta de Guillaume) em estilo trovadoresco.

“A Duquesa da Normandia”: Pound se refere erroneamente à mãe de Eleonora como tal. Na verdade, a amante de seu avô, a Viscondessa de Chatellerault, teve duas filhas ilegítimas. Destas, Aenor de Chatellerault se casou com o filho de Guillaume, Guilherme X da Aquitânia. Logo, a avó de Eleonora era amante de seu avô, não esposa deste.

“… maire del rei jove”, “mãe do rei jovem”: Eleonora era assim chamada por causa de seu segundo filho, Henrique, o Jovem (coroado enquanto seu pai, Henrique II, ainda estava vivo, e que jamais governou sozinho ou de fato).

“Foram ao mar até o fim do dia”: ecoando a jornada de Odisseu revisitada no Canto I, Pound se refere ao fato de que Luís e Eleonora peregrinaram para a Terra Santa, à época da Segunda Cruzada. A viagem foi militar e economicamente desastrosa.

“Ongla, oncle”, “prego, tio”: versos finais de “Le ferm voler” (“O firme desejo”?) (sim, estou perguntando), de Arnaut. É uma referência à relação sexual que teria ocorrido na Antióquia entre Eleonora e seu tio, Raymond de Poitiers (1115-1149). A referência a Teseu logo abaixo sugere que eles já estavam envolvidos antes do casamento de Eleonora e Luís, além de reforçar a noção poundiana dela como uma Helena do século XII. Em 1149, depois que Luís se recusou a enviar ajuda militar, Raymond perdeu a vida e a Batalha de Inab.

“E ele, Luís, não estava à vontade”, pois sabia do relacionamento de Eleonora com o tio e, segundo um mito conhecido, ela teria tido um relacionamento com Saladino (c.1138-1193) em Jerusalém (daí “E ela ia até a aleia de palmeiras / Sua echarpe sobre o elmo de Saladino). Eis as razões pelas quais alguns diziam que Luís voltou para a França e, em 1152, divorciou-se de Eleonora. Note-se que Saladino tinha cerca de doze anos quando Eleonora esteve em Jerusalém (1149), daí essa história não poder ser levada a sério. Bastou a relação dela com o tio para fomentar o divórcio. Ademais, em quinze anos de casamento, Eleonora “só” tivera duas filhas, e Luís queria herdeiros homens. Anulado o casamento (pelo motivo habitual da época: “consanguinidade”), Eleonora era uma mulher muito rica e, portanto, suscetível a raptos e casamentos forçados. Sendo assim, ela escolheu rapidamente seu novo marido, o futuro rei Henrique II, da Inglaterra, onze anos mais novo e politicamente muito promissor.

“Et quand lo reis… fasché”, “E quando o rei soube disso, / [ficou] em silêncio e furioso”: pastiche de Pound de uma crônica francesa. Mas Luís sabia muito bem que, divorciando-se, perderia a Aquitânia. Eleonora era agora a Duquesa da Normandia e, em 1154, tornou-se rainha da Inglaterra.

“Nauphal, Vexis”: territórios fronteiriços entre a França e a Normandia, incluídos no dote de Margarida, filha de Luís com sua segunda esposa, Constança de Castela. A moça se casou com Henrique, o Jovem.

“Mas, sem resultado, Gisors reverterá”: o filho de Margarida e Henrique morreu apenas três dias depois de nascer, e o meio-irmão dela, Filipe Augusto (que governaria a França entre 1180 e 1223), exigiu a restituição do dote.

“Não precisa desposar Alix”: Alix, ou Alice (1160-1220), era a irmã mais nova de Margarida (a mãe delas, Constança, morreu ao dar à luz Alice). Em 1169, Henrique II e Luís VII fizeram um contrato pelo qual Ricardo Coração de Leão (terceiro filho de Henrique e Eleonora) se casaria com Alice. A recusa dele em se casar causou uma série de problemas, resolvidos apenas em 1191, quando o próprio Ricardo e Filipe Augusto desfizeram o pacto em Messina. Ricardo se casou com Berengária de Navarra.

“Eleonora, domna jauzionda”, “dama jubilosa”: verso de “Tant ai mo cor ple de joya” (“Tão cheio de alegria está meu coração”), de Bernart de Ventadorn.

Ricardo Plantageneta, mais conhecido como Ricardo Coração de Leão, rei e cruzado, governou a Inglaterra como Ricardo I entre 1189 e 1199. A exemplo da mãe, cercou-se de trovadores e foi amigo de Bertran de Born e Peire Vidal, patrono de Gaucelm Faidit e recebeu Arnaut Daniel em sua corte.

“Malemorte, Corrèze”: na época de Pound, Malemort era uma vila perto de Brive. O nome se deve ao fato de que, em 21 de abril de 1177, duas mil pessoas (incluindo mulheres e crianças) foram ali massacradas.

“Senhora de Ventadour”: Margarida de Torena, esposa de Eblis III, Visconde de Ventadour. Pound parodia o estilo de Bernart e também o que sabia da vida deste trovador (inclusive de sua viagem a Malemort e Poitiers em 1919). Eblis era o patrono de Bernart. Em 1148, ele se casou com Margarida e, ciumento, trancou-a em um calabouço. Divorciou-se dela dois anos depois.

“Que la lauzeta mover”, “Can vei la lauzeta mover”, o primeiro verso do poema de Bernart de Ventadour, que Pound traduziu como “When I see the lark a-moving” (“Quando vejo a cotovia se movendo”).

“Lo Sordels si fo di Mantovana”, “Sordello era de Mântua”: início da biografia de Sordello escrita ainda na Idade Média.

“Richard Saint Boniface”: Rizzardo di San Bonifacio, Conde de Verona, primeiro marido de Cunizza da Romano. Eles se casaram para consolidar a paz entre suas respectivas famílias, em 1222. Mas, quatro anos depois, as famílias estavam novamente em guerra, e corria a notícia de que Sordello levara Cunizza consigo.

Cunizza (1198-1279), nobre italiana, irmã de Ezzelino III (1194-1259) e Alberico da Romano (1196-1260), libertou os escravos dos irmãos em 1º de abril de 1265. A alforria foi lavrada em Florença, na casa de Cavalcante dei Cavalcanti, pai de Guido. Já idosa, ela viveu na casa dos Cavalcanti, nos anos de formação do jovem Guido. A vida dela é recontada no Canto XXIX, cuja escrita se deu na mesma época em que Pound reescrevia este Canto. No Paraíso IX, 13-66, Cunizza aparece como uma figura de beleza e amor na esfera de Vênus, embora Dante não mencione o episódio da libertação dos escravos. Citados alguns versos depois, Picus de Farinatis, Don Elinus e Don Lipus assinaram como testemunhas no termo de alforria. Eles eram filhos de Ghibelline Farinata degli Uberti (1212-1264), que Dante colocou no Inferno X, 31-50.

“Masnatas et servos”, “servos e escravos”.

“A marito substraxit ipsam… / dictum Sordellum concubuisse”, “Ele a sequestrou de seu marido… / ela dormiu com o dito Sordello”.

“Verão ou inverno…”: paródia poundiana de um poema de Sordello que começa com: “A tretan deu ben chantar finamen”. Pound cita um verso desse mesmo poema para encerrar o Canto XXXVI.

Cairels era um trovador contemporâneo de Sordello, mas sem nada que o distinguisse. Pound usa de um paralelismo para referi-lo (“Lo Sordels si fo di Mantovana”, “E Cairels era de Sarlat…”), mas não para igualar os dois poetas.

“Teseu de Trezena // E teriam lhe dado veneno / Não fosse o formato do cabo de sua espada”: Egeu, rei de Atenas, filho de Pandião II, casou-se com duas mulheres, mas não teve filhos. Como temesse perder o reino para seus irmãos (Palas, Niso e Lico), foi a Delfos e consultou a pitonisa, mas não entendeu a resposta que ela lhe deu. No retorno a Atenas, hospedou-se em Trezena, onde confidenciou ao rei Piteu o que ouvira da pitonisa. Piteu compreendeu a mensagem da pitonisa, embebedou Egeu e fez com que ele se deitasse com sua filha Etra (que, na mesma noite, já havia se deitado com Posídon. Faça as contas.) Egeu pediu a Etra que, caso parisse um menino, só contasse a ele quem era o pai quando o moleque tivesse forças para levantar uma pedra enorme e pegar ali a espada e as sandálias que Egeu escondera. Feito isso, deveria ir a Atenas em segredo, levando consigo a espada e com as sandálias nos pés. Etra cumpriu a promessa, e Teseu só soube de Egeu aos dezesseis anos. Ele ergueu a pedra, recuperou os pertences do pai e pegou a estrada. Depois de viver diversas aventuras e se tornar conhecido, Teseu afinal chegou a Atenas. Apesar da fama do rapaz, Egeu não sabia que se tratava do filho. Medeia, hospedada no palácio após matar os próprios rebentos e fugir de Corinto, sabia quem era Teseu, mas, em vez de contar a verdade a Egeu, convenceu o rei a envenenar o recém-chegado, alegando que o rapaz seria uma ameaça para seu trono. No entanto, tão logo viu a espada que Teseu trazia consigo, o rei reconheceu o filho, evitou que fosse envenenado e expulsou Medeia da cidade.

Canto V

 

A “noiva”, depois “Ecbátana”: Pound se refere ao Canto anterior ao mesmo tempo em que dá prosseguimento à sua jornada, no tempo histórico/mitológico e fora dele (tempo poético), pois “o relógio bate e se esvai”.

Iâmblico (c.245-c.325) foi um filósofo sírio neoplatônico.

As “almas ascendendo / Centelhas como turba de perdizes, / Como o ‘ciocco'” — ecos de Dante, Paraíso XVIII, 70-108.

O verso “marca de ferrete no jogo” aponta para o futuro ou a possibilidade de antecipá-lo (Dante afirma que os tolos usa as centelhas para tentar enxergar o futuro). Isso será explorado posteriormente no Canto.

“Et omniformis”: Ficino, “Omnis intellectus est omniformis”, que Pound traduz como “todo intelecto é omniforme”. V. Porfírio, De Occasionibus. Aqui, talvez haja um eco da “luz de Iâmblico”, omniforme (licença minha), conforme exposto em sua obra Theurgia ou Sobre os mistérios dos egípcios, caldeus e assírios (traduzida, aliás, por Ficino para o latim).

“Ou ‘foi aqui que Sextus a viu'”: Sexto Propércio e seu amor por Cynthia (tema das Elegias) servindo como contraponto ao epithalamium de Catulo, mais uma vez referido. Sobre Sexto, leia três de suas elegias traduzidas AQUI. Ele e Catulo foram contemporâneos. No Livro 3.21, Sexto oferece um espelhamento distorcido da história de Aurucunleia e Manlus: enquanto caminha pelas ruas sozinho, negligenciando a amada, ele é “atacado” por rapazes luxuriosos, com os quais acaba passando a noite; na manhã seguinte, quando afinal vai à casa de Cynthia, ele a encontra sozinha e, segundo diz, mais bela do que nunca.

Héspero, o planeta Vênus, é invocado pelas donzelas no poema de Catulo, junto com Himeneu, para marcar a separação de uma moça de sua família.

“Quietude da canção mais antiga (…) Átis, infrutífero”: paródia de Pound de um fragmento de Safo.

Gaubertz de Poicebot foi um trovador de Limousin. Pound reconta a história dele: destinado a ser um monge, abandonou a igreja por não conseguir sublimar o desejo pelas mulheres; colocou-se a serviço de Savari de Mauléon (c.1181-1233), senescal de Poitou, que lhe deu roupas e um cavalo, e depois o consagrou cavaleiro para que pudesse se casar com a mulher que amava.

“Lei fassa furar a del”, “ela se deixou alegrar”: tanto a mulher de Poicebot quando a de Bernart de Tierci foram cortejadas por outros homens (a de Tierci, por outro trovador, Peire de Maensac) e deixaram seus maridos (tal como Helena).

“Mar mutante, algo de gris na água”: referência a “Meeting at night”, poema de Robert Browning — “The grey sea and the long black land”. Nos versos de Browning, o poeta vai ao encontro da amada; Poicebot, por sua vez (e nesse trecho), está à procura de uma prostituta (“Encontrou uma mulher, uma face mudada e familiar;/ Árdua noite, e indo embora de manhã”). No poema de Browning, é a mulher que fala, aberta ao mundo do amado, que tem um belo caminho pela frente. Quanto a Poicebot, a mulher acaba num convento, fechada para o mundo, e ele perdeu a vontade de cantar e, por conseguinte, de viver.

A vida da mulher de Poicebot foi destruída; Bernart de Tierci, por sua vez, foi à guerra (apoiado pela igreja) para recuperar a esposa e… perdeu — “Troia em Auvergnat”, mas o “delfim permaneceu com Maensac” e este “manteve Tyndarida” (referência a Helena, enteada de Tíndaro). Pouco antes, Maensac é descrito como um dreitz hom, isto é, um “sujeito exemplar”.

“John Borgia” é Giovanni Borgia (1474-1497), filho do Papa Alexandre VI e irmão de Cesare, Gioffre e Lucrécia. Dizer que ele “foi mergulhado enfim” foi a maneira alusiva que Pound encontrou para narrar seu assassinato, em 14 de junho de 1497, ao voltar de uma festa com Cesare, mas deixar o irmão para se encontrar com a amante. Seu corpo foi atirado no Tibre, “mergulhado”. “Enfim” porque sua morte teria ocorrido tarde demais, como a de Agmêmnon, que não foi morto por Aquiles na discussão que abre a Ilíada (o que evitaria a destruição de Troia), mas em casa, pela esposa e pelo sobrinho, enquanto se banhava (daí o teor alusivo da escolha de Pound pelo termo “bath” no original).

“A calúnia surge cedo”: muitos culparam Cesare pela morte do irmão, mas sua participação no crime nunca foi comprovada. Giovanni era o comandante das forças militares papais; Cesare, a contragosto, um cardeal. Um ano após o assassinato, Cesare renunciou ao cardinalato e assumiu o posto que pertencera ao nosso “John” Borgia.

Benedetto Varchi (1502-1565), humanista, poeta e historiador florentino, autor de uma Storia Fiorentina em 16 volumes, cobrindo o período entre 1527-1538. Os Médici foram expulsos de Florença em 1527 e, nos três anos seguintes, a cidade se tornou uma república. O papa Clemente VII (Giulio di Giuliano de Médici) restabeleceu o poder da família na cidade, que passou a ser governada por seu sobrinho, Alessandro de Médici (o Duque de Florença), até que este foi assassinado em 1537. Em 1543, o sucessor de Alessandro, Cosimo I, convidou Varchi para retornar a Florença (estava em Bolonha) e pagou para que ele escrevesse a história florentina daqueles anos. Que ele esteja “pensando em Brutus” é algo que ficará claro nos versos seguintes.

‘Σíγα μαλ’ αὖθιζ δευtὲραν: mescla de dois versos (1344-45) do Agamêmnon, de Ésquilo¹, o momento em que o personagem-título é assassinado na banheira pela esposa, Clitemnestra:

CORO:
Escuta! Quem acusa o golpe agudo?

AGAMÊMNON:
Ai! Me acertaram um segundo golpe!

O trecho poundiano seria “Escuta! Um segundo golpe”.

“Olho de cão!!” é um dos xingamentos usados por Aquiles contra Agamêmnon na discussão entre os dois que abre a Ilíada. A briga se dá por espólios de guerra. Agamêmnon é obrigado a devolver Criseida a seu pai, o sacerdote Crises, pois este rogara a Apolo que punisse os gregos, e suas preces foram atendidas com uma peste. Mas, como compensação, Agamêmnon exige que Aquiles lhe ceda Briseida, e a confusão se instaura. O trecho² (224-28):

(…) “Bêbado de vinho,
olhar de cão e coração de cervo, nunca
investes a couraça como os teus que lutam,
nem ousas empenhar teu coração com ases
numa emboscada, pois tens medo de morrer.

Gosto também de: “Devorador do povo, rei de gente reles” (231).

No trecho seguinte, Pound narra o assassinato de Alessandro de Médici por seu primo, Lorenzo (ou Lorenzino) de Médici, na noite entre 6 e 7 de janeiro de 1537. Os dois primos eram muito próximos, e Alessandro foi, então, assassinado pela pessoa em quem mais confiava. “Lorenzaccio”, “o mau Lorenzo”, usou sua tia Caterina Soderini (uma bela viúva que nada sabia do que estava prestes a acontecer) como isca, “pois o Duque nunca saía sem a guarda”. Quando Alessandro estava sozinho no quarto, desarmado e indefeso, Lorenzo e um servo o esfaquearam na garganta. Lorenzo viveu onze anos no exílio, e em 1548 foi assassinado a mando de Carlos V. Os motivos de Lorenzo para matar o primo ainda são discutidos: para alguns, ele foi uma espécie de “segundo Brutus” (o primeiro é, claro, Marco Júnio Bruto, um dos assassinos de Júlio César), ansioso para restaurar a república florentina; para outros, foi “apenas” um ato vil e insensato.

Se pia? O empia?“: “Nobre? Ou ignóbil?”

“Caina attende”: “Caína espera”; Caína é o lago congelado no primeiro dos quatro giros do nono círculo do inferno dantesco, reservado àqueles que traem e/ou assassinam membros da própria família. É para onde Francesca da Rimini diz a Dante (no Inferno V, 106-7³) que será enviado seu marido, Gianciotto Malatesta. Este flagrou o próprio irmão, Paolo, beijando Francesca, e matou os dois: “Amor nos conduziu a uma só morte;/ Caína terá quem deliu nosso alento'”. (Na versão de Dante, os adúlteros liam a história de Lancelot e Guinevere quando se beijaram, e o paralelo aí prescinde de explicações.) Dante e Virgílio chegam ao Caína no Canto XXXII do Inferno.

Del Carmine era o astrólogo de Alessandro. Segundo Varchi, teria previsto o assassinado.

“O se morisse, credesse caduto da sè”: “Ou se morresse, e pensasse que caiu sozinho” — Lorenzo cogitou empurrar o primo do alto da muralha, mas mudou de ideia porque queria que Alessandro soubesse que estava sendo assassinado por ele, e não que tivesse escorregado ou coisa parecida.

“Σιγά, σιγά”: o coro em Agamêmnon, no trecho já citado — “Escuta, escuta”.

Giorgio di Schiavoni foi o barqueiro que viu três homens jogando o corpo de Giovanni Borgia na água. “Solta a placenta”: a túnica de Giovanni flutuava na água, e um dos homens que o desovaram atirou uma pedra nela para que afundasse.

Barabello, abade de Gaeta. Em 1518, na festa de Cosme e Damião, o papa Leão X resolveu sacanear Barabello. Segundo ele, Barabello se achava melhor poeta do que Petrarca. O papa, então, ofereceu a ele uma coroa de louro para que, montado em um elefante, fosse do Vaticano até o Monte Capitolino. Assustado com o barulho ao redor, o elefante empacou na Ponte Sant’Ângelo e Barabello desapareceu na multidão.

Giovanni Mozarello, poeta que escrevia em latim, era um protegido de Leão X. Para que ele tivesse tempo para escrever, o papa o nomeou governador de uma fortaleza em Mondaino. Mozarello desapareceu e seu corpo foi encontrado um mês depois, no fundo de um poço, esmagado pela própria mula: “Só, fica sufocado sob a mula, / um fim de poeta”. Há quem diga que foi assassinado.

“Sanazarro / Só, fora da corte, era fiel a ele”: Jacopo de Sanazzaro (1458-1530), poeta napolitano (que também escrevia em latim), permaneceu fiel a Federigo, último monarca da família Aragão a governar o Reino de Nápoles, mesmo depois que este foi deposto. Juntos, foram para o exílio na França, e Sanazzaro ficou com seu patrono até a morte dele, em 1504, ajudando-o inclusive financeiramente.

“Fracastor (…) Cotta e Ser D’Alviano”: Girolamo Fracastoro (1483-1553), médico, poeta e cientista de Verona. Foi um grande epidemiologista, identificando e nomeando doenças como a sífilis e o tifo. Giovanni Cotta (1480-1510), outro poeta (latim!) de Verona, amigo de Fracastoro e Navagero. Todos eles tinham como patrono Bartolomeo D’Alviano (1455-1515), condottieri italiano que serviu à família Orsini e, a serviço dos venezianos, lutou contra o imperador Maximiliano. Gostava de se cercar de poetas e foi um mecenas muito generoso.

“Al poco giorno ed al gran cerchio d’ombra”, “Ao dia curto e seu longo arco de sombra” — primeiro verso de uma sestina de Dante.

“Falam dos boatos”: D’Alviano recebeu dos venezianos a cidade de Pordonne, e ali fundou uma academia para reunir os poetas latinos de seu círculo (Fracastoro, Navagero e Cotta). Andrea Navagero (1482-1529), referido por Pound como “Navighero”, foi um erudito classicista e poeta. Com o impressor Aldus Manutius, coligiu inúmeros manuscritos e os publicou com anotações próprias. Atuou em missões diplomáticas para Carlos V e Francisco I. Muito cioso da própria reputação, destruiu a maior parte da poesia que escreveu em latim. Também tinha o hábito de queimar cópias dos epigramas de Marcus Valerius Martialis (c.41-c.102) por considerá-lo um corruptor da pureza clássica da era de Augusto — daí o verso de Pound: “Incendiário, ano a ano, de Marciais”.

“A pequena serva é lamentada em vão” : Erotion, morta antes de completar seis anos de idade. Marcial escreve sobre ela, lamentando que tenha morrido, em três de seus epigramas (V, 34, 37; e X, 61).

“Se pia (…) deliberazione”, “Se nobre ou ignóbil, mas, por certo, uma decisão resoluta e terrível” — Varchi, sobre Lorenzo.

“Ma se morisse”, “Mas se morresse” — Pound substitui o “Ou” de Varchi por “Mas”.

……

¹Ésquilo, Agamêmnon. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2017.
²Homero, Ilíada. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2020.
³Dante Alighieri, A Divina ComédiaInferno. Tradução: Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2014 (3ª edição).

Canto IV

 

“Troia, só destroços de muralhas fumegantes”: referência às Troianas, de Eurípedes¹, quando, na primeira cena, Posêidon visita a cidade devastada —

Eu, Posêidon, chego após deixar o salgado Egeu,
o fundo do mar, onde coros de Nereidas
desenlaçam do pé o mais belo rastro.
Sim, desde que, ao redor desta terra troiana,
Febo e eu torres de pedra no perímetro
a reta régua erguemos, nunca de meu espírito,
contra a cidade, partiu o afeto por meus frígios;
ela agora fumega e por obra da lança argiva
está em ruínas, saqueada. (…)

ANAXIFORMINGES, “soberanos da lira”. Do início da Ode Olímpica II, de Píndaro²: “Hinos, soberanos da lira, / que deus, que herói, que homem celebraremos?”. “Aurunculeia” é a noiva no poema LXI de Catulo, um epithalamium (poema nupcial) feito a partir de outro, de Safo (tradução, citação, inspiração, talvez todas essas coisas ao mesmo, mas não temos como saber porque o poema de Safo se perdeu).

“Cadmo das Proas de Ouro”: já citado no Canto II, Cadmo é o fundador mítico de Tebas. Ver Ovídio, Metamorfoses III, 1-137.

“Choros nympharum”, “coro de ninfas”; “patas de cabra”, dos faunos dançando com as ninfas (eles também aparecem no Canto II).

“Um galo negro canta lá na escuma”: premonição relativa às paixões destrutivas associadas a Afrodite, como a que será rememorada a seguir.

O “velho sentado” é Pândion I, rei mitológico de Atenas, pai de Procne e Filomela. Ityn (ou Ítis) é o filho de Tereu, rei da Trácia, e Procne. Em visita à irmã, Filomela é estuprada por Tereu; para que ela não denuncie o crime, ele corta a língua de Filomela ( a “língua jaz por terra e murmura / sobre a terra negra enquanto estremece”) e a aprisiona num estábulo na floresta (onde continua a estuprá-la no decorrer do ano seguinte), dizendo a Procne que sua irmã está morta; Filomela tece um tapete no qual denuncia o crime e faz com que seja entregue a Procne; esta, aproveitando as festas de Baco, resgata Filomela e, juntas, partem para a vingança: matam e esquartejam Ítis, cozinham uma parte, assam outra, e servem a Tereu, que enche “o estômago com sua própria carne”. Quando Tereu descobre o que houve e tenta matá-las, Procne se transforma em andorinha e Filomela, em rouxinol, as “marcas do assassinato não lhe desapareceram / do peito”, pois “sua plumagem ostenta sinais de sangue”. Tereu, por fim, transforma-se em poupa. Ver Ovídio, Metamorfoses VI, 412-674.

“Et ter flebiliter, Ityn”, “E três vezes, lamentavelmente, Ítis”. Pound revolve Horácio, “Ityn flebiliter gemens” — “Em pranto gemendo por Ítis faz o ninho / a infeliz ave que, por ter se vingado em funesta hora / da bárbara devassidão de um rei, a eterna vergonha / da casa de Cécrops se tornou” (grifo meu). É a segunda estrofe da Ode IV, 12.³

Cabestan: Guillem de Cabestany (1162-1212) foi um trovador provençal. Apaixonado por Seremonda, esposa de Raimond, Conde de Roussilon, foi assassinado por este, que lhe arrancou o coração e obrigou Seremonda a comer. O “velho sentado” também pode se referir ao Conde de Roussilon, portanto, e não apenas a Pândion.

Actéon, neto de Cadmo, acidentalmente viu Diana (Ártemis) se banhando em Gargáfia e foi por ela transformado em veado. V. Metamorfoses III, 138-250. Pound sugere que Actéon sequer viu o corpo nu da deusa, mas apenas a cabeça: “Ninfas em branco cerco à volta dela”, “Ouro, ouro, um feixa de cabelos”. Actéon ainda foi perseguido pelos próprios cachorros.

Peire Vidal de Toulouse (c.1175-1215) foi outro trovador provençal. Apaixonado pela Loba de Penautier (uma lobanil), vestiu-se com pele de lobo e passou a vagar pelas florestas. Quase foi morto por caçadores, salvo pela própria Loba e seu marido, que cuidaram dele e passaram a recebê-lo em sua corte. V. Piere Vidal Old, do próprio Pound.

Pergusa é o lago siciliano em cujas proximidades Hades sequestrou Perséfone (v. Canto III). Sálmacis é uma ninfa que, tentando seduzir o filho de Hermes e Afrodite (Hermafrodito) enquanto ele se banhava em sua fonte, fez com que ele se transformasse em hermafrodita. V. Metamorfoses IV, 285-388.

A “armadura vazia” e “o pequeno cisne” também remetem a Ovídio. Nas Metamorfoses (XII, 64-145), narra-se o encontro entre Aquiles e Cicno, filho de Posêidon, em lados opostos na Guerra de Troia. Aquiles estrangula Cicno, mas, ao retirar o capacete, vê que a armadura está vazia — Posêidon transformara o filho em um cisne.

“… e lo soleils plovil“, “o sol chove”. Verso de “Lancan son passat li giure”, poema de Arnaut Daniel.

A passagem seguinte contém referências às peças Tamura Takasago. O verso “sob os joelhos dos deuses” sugere um templo sob o qual corre um riacho que transforma a luz do sol em meio à chuva (“o sol chove”, “tênue luzir da água”) em “cristal líquido”. Em Tamura, há um templo dedicado a Kuanon, a deusa budista da misericórdia, e o zelador varre as folhas de cerejeira que caíram no jardim; esta cena remete a Takasago, em que um sacerdote errante se depara com duas pessoas velhas e enigmáticas varrendo agulhas de pinheiro sob uma antiga árvore sagrada. Leia Tamura (em inglês) clicando AQUI, e Takasago, AQUI.

Os “pinheiros de Isé” (outra referência a Tamura) estão repletos de espíritos malignos, os quais são destruídos pelas flechas luminosas de Kuanon: “Pontas de galhos fendidos, / Flamejando como lótus, / Camada sobre camada / O ralo fluindo em redemunho / sob os joelhos dos deuses”. Há um paralelo com a Guerra de Troia, e encontraremos outra menção aos pinheiros de Isé no Canto XXI.

Pound visitou Rhodez e Gourdon, cidades no sul da França, em 1912.

“Sândalo de açafrão” é uma referência do já citado epithalamium de Catulo (LXI). “Hymenaeus Io!…” é a invocação de Himeneu, deus do casamento, feita por Catulo no casamento de Manlius e Aurunculeia.

Sô-Gioku é o nome japonês do poeta Song Yu (c.319-298 a.C.), chinês, que trabalhou na corte do rei Xiang (Hsiang), de Chu. Yu escrevia em um gênero chamado fu, que misturava verso e prosa na forma de diálogos, e é atribuída a ele uma composição intitulada Feng Fu, “Rapsódia sobre o vento”. Pound inverte as coisas nesse trecho (“Nenhum vento é o vento do monarca”), pois, no original, o poeta não tem dificuldades para convencer o rei de que o vento pertence a ele. Note-se que, não obstante o tom lisonjeiro da “Rapsódia”, Yu nunca foi valorizado pelo rei, que o menosprezava.

Heródoto nos conta que Ecbátana foi uma cidade fundada pelo medo Deioces no século VII a.C. (o paralelo é com a Tebas de Cadmo). Há quem afirme que Ecbátana seja a atual Hamadan, no Irã.

Danaë (ou Dânae), filha de Acrísio, rei de Argos, e Eurídice. Acrísio, ao ouvir do Oráculo de Delfos que seria assassinado pelo próprio neto, aprisionou a filha em uma câmara de bronze. Zeus, assumindo a forma de uma chuva de ouro, penetrou no lugar e engravidou Danaë, cujo filho, Perseu, viria mesmo a matar o avô, cumprindo o vaticínio oracular.

“A fumaça adere ao rio (…) / Postes de pedra cinza conduzindo…”: esses versos ecoam os de um poema de Wang Wei, “A jornada das flores de pessegueiro”. Neste, inspirado em um antigo conto folclórico, um pescador encontra um reino mágico no qual as pessoas vivem despreocupadas, ignorando a política e a guerra. Mas, depois, o pescador não consegue voltar para casa, pois a paisagem está inteiramente modificada. Wang se refere aos habitantes desse reino oculto como “sennin”, “imortais”. Por meio desse termo, na estrofe seguinte, Pound conecta o poema de Wei com a sua já citada viagem a Rhodez, em 1912.

O Conde de Polhonac cantou uma canção do trovador Guillaume de St. Leidier para a esposa e, assim, inadvertidamente, ajudou o poeta a seduzi-la. Essa história se liga à da ascensão de Gyges ao poder na Lídia: amigo do então monarca Candaules, assistiu (depois de muita insistência do próprio rei) à rainha se despindo antes de dormir. Depois, ela o forçou a escolher entre matar o rei e tomar seu lugar, tomando-a como esposa, ou morrer. Gyges, claro, optou pela primeira opção.

Garona (Garonne) é um rio que corta a cidade de Toulouse. Pound ficou no sul da França entre abril e agosto de 1919. A procissão de salve Regina foi acompanhada por ele em Toulouse. Ádige é o rio que corta Verona, e assim passamos ao cenário seguinte.

“Stefano, Madonna in hortulo”: no caso, Pound gostava de associar a Madonna de Orsanmichele (Florença) com a tela Madonna in Hortulo, ou Madonna del Roseto, de Stefano da Verona (c.1379-c.1438), que ilustra esta página. Guido Cavalcanti contemplava a Madonna de Orsanmichele porque ela o remetia ao rosto de sua amada (essa pintura foi destruída em um incêndio em 1304 e substituída por outra, de Bernardo Daddi).

“A poesia é um Centauro”, teria dito Pound.

“E nós sentamos aqui… / lá na arena…”: esse desfecho foi acrescentado por Pound em 1923, e é uma alusão ao encontro dele com Eliot em Verona no ano anterior. A Arena de Verona se tornará um leitmotiv n’Os Cantos (XII, XXI, LXXVIII, LXXX e XCI), e o encontro com Eliot será referido explicitamente no XXIX.

……

¹ Em Duas Tragédias Gregas: ‘Hécuba’ e ‘Troianas’. Tradução: Christian Werner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
² Na tradução de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. As Odes Olímpicas de Píndaro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
³ Horácio, Odes. Tradução: Pedro Braga Falcão. São Paulo: Editora 34, 2021.

Canto III

 

Deste Canto até o VII, temos exemplos do imagismo poundiano, ecoando a técnica desenvolvida e utilizada em obras anteriores do poeta. E transitamos pelo Mediterrâneo, seguimos com as referências mitológicas e renascentistas, Safo, El Cid, com as histórias dos trovadores etc.

Antes de abordar o Canto, algumas linhas de Mário Faustino sobre o imagismo:

Imagismo (…) a exata percepção e comunicação da imagem em toda a sua praxis.
(…)

O imagismo de Pound: relação direta com o próprio processo de conhecimento, com a percepção verbal do conhecimento. Poética e não apenas retórica. O poema é antes de tudo algo que se faz, não apenas algo que se diz. Não o poeta dizendo por meio do poema; mas o poeta fazendo o poema que, por sua vez, fala — naturalmente em nome do poeta (indireta e fatalmente expressando o poeta), mas com sua própria voz de ser criado. Daí a importância da técnica, do modus faciendi. (…)

Agora, palavras do próprio Pound (algumas delas escritas para a Poetry de março de 1913; outras, depois):

Na primavera ou no princípio do verão de 1912, H. D., Richard Aldington e eu chegamos à conclusão de que estávamos de acordo quanto aos três princípios seguintes:
1. Tratamento direto da “coisa”, seja subjetiva, seja objetiva.
2. Não usar absolutamente palavra alguma que não contribua para a apresentação.
3. Quanto ao ritmo, compor na sequência da frase musical, e não na sequência de um metrônomo.
(…)
Uma “imagem” é aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo. (…) É a apresentação instantânea de tal “complexo” que dá a sensação de súbita libertação; esse senso de liberdade em relação aos limites de tempo e de espaço; esse senso de súbito crescimento (…).
Não use palavra supérflua, nenhum adjetivo que não revele alguma coisa.
(…)
Ou não use ornamento nenhum ou use bom ornamento.

(Em Mário Faustino, Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977, pág. 154-55, 148-49).

Na introdução da belíssima edição bilíngue de Lustra (São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros, 2011 — Selo Demônio Negro), o poeta e tradutor Dirceu Villa chama a atenção para o fato de que “a formulação do imagismo, segundo o próprio Pound, se deveria mais à influência [da prosa] de Ford Madox”, havendo “a constatação da beleza em poesia através daquilo que Pound acreditava então [início dos anos 1910, presumo] ser o seu âmago, a imagem: ‘o essencial do Imagisme é que não use imagens como ornamentos. A imagem é em si o discurso. A imagem é a palavra além da linguagem formulada'” (a citação é de Ruthven, A Guide to Ezra Pound’s Personae (1926), Brkeley/Los Angeles: University of California Press, 1969, p. 12, “Introduction”, notas de rodapé).

Nos Cantos, se entendi bem, o imagismo é (ou se torna) “apenas” mais um recurso à disposição do autor. Villa fala de um “esquema panhistórico”, do “constante fluxo de tempo”, superpondo “experiências analogicamente associadas num contínuo de sentido” (e cita o trecho do Canto IV em que a metamorfose de Ácteon é associada à de Peire Vidal). Seria possível falar em um “esquema pan-estético”, superpondo técnicas do imagismo, do vorticismo e até mesmo do futurismo, dentre inúmeras outras?

Agora, vamos ao Canto III.

Eis, para começo de conversa, Pound em Veneza, sentado “nas escadas de Dogana”. O ano é provavelmente 1908, depois que ele foi demitido do cargo de professor no Wabash College, em fevereiro. Ficou em Veneza de abril até agosto, e ali publicou (por conta própria) A Lume Spento, seu livro de estreia. Dogana, ou Punta della Dogana, era onde funcionava um dos escritórios alfandegários da cidade. Hoje, é um museu. Fica em um lugar privilegiado, onde o Grande Canal flui para a lagoa, e dali é possível ver alguns dos pontos mais conhecidos de Veneza. Há uma estátua da Fortuna no topo do prédio, contemplada e citada por Henry James em suas Horas Italianas. Assunte o mapa.

As “garotas” são outro aceno ao Sordello de Browning, no qual o trovador italiano observa algumas moças bonitas dos degraus de um palácio. “Buccentoro” (ou Buccintoro) é o mais antigo clube de remo da cidade. Morosini é uma família tradicional veneziana. Conta-se que Pound conseguiu dois concertos para a pianista Katherine Ruth Heyman (conhecida por seu trabalho com composições de Scriabin) em Veneza, um deles na casa da Condessa Morosini, em 4 de agosto de 1908. O fato de que Pound cita “as vigas no Morosini clareadas naquele ano”, isto é, observa a casa de fora, sugere que ele não convidado para o concerto.

Koré (grego, “donzela”, “moça” ou coisa que o valha) é outro nome para Perséfone, filha de Zeus e Deméter. Raptada por Hades, Perséfone foi levada por ele ao mundo ínfero. Desesperada, Deméter fixou moradia na terra, “abdicando de suas funções divinas (de deusa da vegetação), até que lhe devolvessem a filha”. Com isso, as plantas pararam de crescer e o mundo ficou em perigo. Sem opção, Zeus ordenou a Hades que devolvesse Perséfone. Hades, contudo, “fez com que a esposa colocasse na boca uma semente de romã, símbolo da fertilidade, e obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida”, isto é, os infernos. Por fim, chegou-se a um acordo, e Perséfone passaria alguns meses com Hades e o restante do tempo na terra e no Olimpo, com a mãe. “A catábase (a descida) e a anábase (a subida, o retorno) de Perséfone provocaram a instituição dos célebres Mistérios de Elêusis.”¹

A “morada de Koré” é uma citação do poema em prosa autobiográfico Notturno, de Gabriele D’Annunzio. Este usa a expressão para se referir ao prédio (interminado) do Palazzo Venier dei Leoni. Ferido na Primeira Guerra, D’Annunzio estava hospitalizado do outro lado do canal, isto é, defronte ao tal edifício. Ele apelidara a dona do Palazzo, Maria Casati, de Koré. Para ele, a Veneza bombardeada era o Hades (o lugar, não a divindade), e o Palazzo, a morada de Perséfone. O “prosema”² de D’Annunzio também levou Pound a fazer uma distinção entre prosa e poesia: a primeira seria “negativa”, um registro da mediocridade contemporânea; a outra, “positiva”, um registro da mente culta, não abastardada e ligada à tradição.

“Flutuam deuses no mar azul”: daqui até o final da estrofe, Pound aponta para um mundo povoado por deidades, visíveis pela via da imaginação ou em momentos de revelação. Ele teria (pres)sentido tais e tais coisas, seu “phantastikon”, em uma visita a Sirmione e ao Lago de Garda.

Poggio Bracciolini (1380-1459) foi um humanista italiano famoso por desencavar diversos manuscritos latinos nas bibliotecas e mosteiros europeus. Em 1416, visitando os banhos termais em Baden-Baden, ficou chocado com a maneira como homens e mulheres se misturavam, livres e desnudos, por ali. Em um diálogo intitulado “Aux Etuves de Weisbaden” (sic), publicado na Little Review em 1917, Pound faz com que Poggio deixe de lado esse moralismo e o apresenta como um esteta e seu alter ego.

A seguir, Pound investe em uma paródia d’El Cantar de Mio Cid, épico nacional espanhol composto entre os séculos XII e XIII, de autoria desconhecida e que narra as aventuras de Rodrigo Diaz de Vivar (c.1043-1099), o “Cid” (“senhor”, em mourisco). Difamado por seus inimigos, El Cid é banido de Castela pelo rei Alfonso VI, e a “niña de de nueve años” é quem o informa disso com sua “voce tinnula” (“voz estridente”, citação do poema 61 de Catulo, repetida nos Cantos XX e XXVIII), estando os adultos muito amedrontados para inteirá-lo do decreto real.

Raquel e Vidas eram dois judeus de Burgos. El Cid deixou com eles dois baús (“a bagagem”) como garantia para um empréstimo (deveriam estar cheios de ouro), pedindo que não os abrissem até o final do ano. Confiando na honra do Cid, os usurários não checaram os baús; quando finalmente o fizeram, descobriram que eles estavam cheios de areia. Um desses baús está exposto na Catedral de Burgos. Eis o primeiro sinal do famigerado e repulsivo antissemitismo de Pound, que contamina diversas passagens d’Os Cantos.

Valência foi a cidade que El Cid, buscando voltar às boas com o rei (e depois de passar alguns anos lutando do lado dos mouros, às ordens do emir de Saragoça, porque um homem precisa ganhar a vida), reconquistou em 1094 (a cidade voltaria a ser dominada pelos árabes em 1102). Morto em 1099, o corpo do Cid foi primeiro enterrado no monastério de San Pedro de Cardeña, e só depois levado para Burgos.

A referência a Inês de Castro (c.1325-1355) remete-nos de volta a Perséfone: a exemplo da deusa, foi “levada” muito jovem para o mundo ínfero — no caso, assassinada a mando do rei lusitano Afonso IV por conta de sua relação malvista e malquista com o filho deste, o futuro D. Pedro I de Portugal, com quem se casou em segredo. Depois de assumir o trono, em 1357 (não, ele não matou o pai; o monarca morreu de causas naturais), D. Pedro perseguiu os assassinos e legitimou os filhos que tivera com Inês; estão enterrados lado a lado (ou frente a frente, para ser exato). A anábase aqui deve-se à lenda muito conhecida de que, uma vez entronado, D. Pedro exumou o corpo da amada, corou-a rainha e obrigou os membros da corte a lhe beijarem a mão. A fonte de Pound para a história de Inês é Camões (Os Lusíadas, III, 120-35), e ela é revisitada de maneira mais detalhada no Canto XXX.

“Sinistro dissipar”: referência ao palácio da família Gonzaga em Mântua, visitado por Pound em 1911. Ou seja, voltamos às deambulações de Pound pela Itália com que o Canto teve início. O pintor Andrea Mantegna (1431-1406), que trabalhava para a família Gonzaga, pintou apenas uma parte dos afrescos na Camera degli Sposi. Por fim, “Nec Spe Nec Metu” (“sem esperança, sem medo”) era o lema de Isabella d’Este (1474-1539), esposa de Francisco Gonzaga. Após a morte do Marquês Ludovico Gonzaga, ela ajudou a manter a casa demonstrando extremas destreza e inteligência, trabalhando política e militarmente, e também foi uma patrona das artes. Assim, pode-se dizer que o Palácio Ducal de Mântua é, também, uma “morada de Koré”.

……

¹ As aspas nesse parágrafo são do Dicionário Mítico-Etimológico, de Juanito de Souza Brandão (Petrópolis: Editora Vozes, 2014), p. 504.
² Acho que foi Wesley Peres, poeta e Duque da Cataluña (nessa ordem), quem primeiro usou essa expressão.
(Sobre a imagem no início do post, clique nela e seja feliz.)

Canto II

 

Sordello é um poema narrativo de Robert Browning (1812-1889), escrito entre 1836 e 1840, quando foi lançado. É tido como uma das obras mais difíceis da literatura inglesa. Pound cogitou se inspirar no poema de Browning (conforme ele próprio assinala em Three Cantos I) para escrever os Cantos, mas optou por conceber algo distinto, o que explica os versos iniciais: “Cesse tudo, Robert Browning, / somente pode haver um único ‘Sordello’. / Mas Sordello, e o meu Sordello?”.

Aqui, a “invocação” de Browning serve também a outro propósito: Pound sentia uma grande proximidade entre esse poeta inglês e Ovídio, cujas Metamorfoses são de enorme importância para os Cantos. “A atmosfera”, escreveu Pound, “o jogo é tudo: os fatos não são nada. Ovídio, antes de Browning, levanta os mortos e disseca seu processo mental: ele caminha com o povo dos mitos.”

Os fatos não são nada, mas não custa assinalar que Sordello de Goita, protagonista do poema de Browning, foi um trovador italiano do século XIII, egresso da região de Mântua — daí o verso “Lo Sordels si fo di Mantonava”.

O Canto II diz respeito a uma série de metamorfoses, e é interessante que o leitor fique atento a essas mudanças bruscas (que se tornarão bastante comuns no decorrer da obra). Assim, logo de cara, temos quatro Sordellos: aquele (bastante ficcionalizado) do poema de Browning, o Sordello “verdadeiro”, que existiu em algum momento, o Sordello de Pound e, por fim, o Sordello que podemos depreender dos versos que ele próprio deixou.

Depois, em mais uma série de metamorfoses poemático-narrativas (que, por alguma razão, me fizeram lembrar das “personificações” de Stencil em V., de Thomas Pynchon) (ok, nada a ver) (antes tivesse pensado em Dedalus na praia, Ulysses I.3), temos referências a uma suposta divindade chinesa (ver abaixo), a Fionnuala (a filha de Lir, deus marítimo da mitologia irlandesa, transformada em um cisne e condenada pela madrasta, Aoife, a vagar pelos lagos e rios da Irlanda com seus irmãos, coisa que eles fizeram por quase um milênio, até a maldição ser quebrada pelo casamento de Lairgren e Deoch) e a Eleonora de Aquitânea (1122-1204, matriarca dos Plantageneta).

Por sua vez, Eleonora é referida por meio dos trocadilhos feitos por Ésquilo em Agamemnon (689-90) para se referir a Helena de Troia: ‘Έλέναυς, ‘έλανδρος, ‘έλέπτολις (helenaus, helandros, heleptolis). Em Pound: “Eleonora, Έλέναυς e ‘έλέπτολις”, ou seja, helenaus (destruidora de naus ou “enleia-naus”, como traduz Trajano Vieira¹) e heleptolis (destruidora de cidades, “enleia-pólis”). Eleonora, a exemplo de Helena, também abandonou o marido para se casar com um estrangeiro, divorciando-se em 1152 de Luís VII, rei da França, para se casar com o então Duque da Normandia e futuro rei Henrique II, da Inglaterra.

“So-shu”, segundo Pound, seria uma figura mitológica chinesa, mas os especialistas dizem que ele (também?) se refere à personagem-título de uma pela de teatro nō, Shojo. Este seria o deus do vinho de arroz (não confundir com o saquê; os processos de fermentação são distintos), que aparece aos mortais como um homem. Mais adiante no Canto, é narrado um encontro similar de Dionísio com Acetes.

Após uma referência à Ilíada (III, 139-60, “Murmúrios, vozes de homens velhos (…) / Move-se, ela se move como uma deusa”, em que os anciãos de Troia, diferentemente de seus contrapartes gregos, reconhecem o caráter divino de Helena e não a culpam pela guerra), Pound repassa a tradução de Ovídio por Arthur Golding via Atalanta (Metamorfoses X: 566-707): “Só serei possuída, / se vencida na corrida (…)”. Hipômenes é o felizardo, não por correr mais rápido do que ela, mas por trapacear (embora, segundo Ovídio, talvez Atalanta tenha se deixado enganar por gostar do que viu).

Novo corte, e Pound invoca Tiro, ninfa enlaçada pelo “deus-mar”, para depois apontar para Scios e Naxos, ilha que é o lugar central do culto de Dionísio. Foi em Naxos que ele nasceu pela segunda vez, da coxa de Zeus, e encontrou sua noiva, Ariadne.

Aqui, conforme indicado antes, Dionísio marca presença em carne e osso, como “um jovem zonzo com o vinho novo”, que pede aos marujos de um navio que o levem a Naxos. Os marujos, contudo, cogitam vendê-lo como escravo. Apenas Acetes, o capitão, reconhece Dionísio como uma divindade (“Quando chegaram com o menino eu falei: / ‘Carrega um deus consigo / malgrado não saiba eu que deus.'”), e por isso é poupado. A sorte dos marujos é narrada (“Focinho preto de um porco-do-mar / onde Licabs estivera /Escamas revestindo os remadores”; “O rosto de Medon como de um peixe-galo, / Braços transformados em barbatanas”).

Penteu, filho de Cadmo, rei de Tebas, também considera Dionísio (seu primo, aliás) um impostor. Querendo acabar com a suposta farsa, manda que os soldados aprisionem Dionísio. Mas, em vez dele, os homens trazem Acetes. Penteu ignora os avisos e alertas de Acetes (“Deverias ouvir Tirésias, e a Cadmo / ou tua sorte vai te abandonar. / Escamas cobrem virilhas, / o ronronar de lince pelo mar”) e vai ao festival de Dionísio para interrompê-lo, mas acaba desmembrado pelas bacantes.

A referência a Cadmo e Tirésias se dá porque ambos reconhecem a divindade de Dionísio, conforme narrado nas Bacantes (170-189), de Eurípedes.

Depois, o poema prossegue com suas metamorfoses. Voltamos ao mar e conhecemos Eleutéria, ninfa que se transforma em coral para escapar do assédio dos tritões, e por isso é referida como a “Dafne em beira-mar”; nas Metamorfoses (I, 451-568), perseguida por Apolo, a ninfa Dafne pede ao pai, Peneu, que seja transformada em um loureiro, no que é atendida de imediato.

Por fim, em versos tão marcados pelas mutações e transformações, Pound não poderia deixar de se referir diretamente a Proteu, a elusiva deidade da mudança. Nesse sentido, o segundo Canto serve à perfeição para sedimentar uma das características mais marcantes do estilo do poeta, essa capacidade proteica de recriar diversos personagens e situações. Com o passar do tempo, isso será cada vez mais refinado e, em alguns momentos, radicalizado.

……

¹ Agamêmnon. São Paulo: Perspectiva, 2017.

Um esquema de XXX Cantos (1930)

CANTO I
Nekyia homérica via Andreas Divus. Preparação.
Invocação da Musa: Afrodite.

CANTO II
Metamorfoses em sucessão: Proteu.
Sordello(s), Eleonora, Helena.
Dionísio reconhecido por Acetes.

CANTO III
Pound na Itália. Morada(s) de Koré.
Perséfone, El Cid, Inês de Castro.

CANTO IV
Ruínas troianas, ruínas amorosas.
Tereu, Procne, Filomela: Et ter flebiliter, Ityn.
Cabestan. Actéon/Peire Vidal. Danaë.
Tamura, Takasago.
A poesia como Centauro.

CANTO V
Neoplatônicos. Sexto inverte Catulo.
Poicebot, de Tierci, de Maensac: “Troia em Auvergnat”.
“John” Borgia (ecos de Agamêmnon) e Alessandro de Médici, R.I.P.
Fracastoro, Navagero, Cotta.

CANTO VI
Odisseu – Guillaume.
Eleonora redux: Carlos, Raymond, Saladino (!), Henrique.
Cunizza da Romano alforria os escravos dos irmãos.
Teseu salvo pela espada.

CANTO VII
Ecos flaubertianos. Henry James.
Suicidas: Cravens, Ione, Niceia, Dido.
Camões veste Vasco da Gama.
Ecos de Lorenzino em D. Fitzgerald.
Obizzo nada no inferno.

CANTO VIII
Primeiro Canto MALATESTA:
Sigismundo Pandolfo Malatesta.
Verdade e Calíope: pesquisa histórica e levada épica.
Ferrara: João VIII Paleólogo, Gemisthus Plethon (ossos no Templo).
Peolo & Francesca: Parisina & Ugo.
Atridas, Malatestas.

CANTO IX
Segundo Canto MALATESTA.
Domenico narra.
Conflitos variados (e outros reiterados): Sforza e cia.
Traições: Alfonso, Sforza, Siena.
Mala postal roubada: oito cartas.
O Templo em construção. Isotta.

CANTO X
Terceiro Canto MALATESTA.
Æneas Silvius Piccolomini, papa Pio II, inimigo de Sigismundo.
A “oração” de Andreas Benzi. Excomunhão e queima da efígie.
Giacomo Piccinino: inimigo, depois aliado.
Nicolau de Cusa sendo fdp. Pasti numa enrascada.

CANTO XI
Quarto Canto MALATESTA.
Derrocada. Roberto Malatesta.
Tarento. A perda de Fano. Moreia.
Plano (frustrado) para assassinar Paulo II.

CANTO XII
Eliot & Pound na Arena di Verona (06.1922).
Frank Bacon, o Calvo, e seu esquema com os centavos cubanos.
José Maria dos Santos, o mercador português.
O Marinheiro Honesto e a esterilidade da usura.

CANTO XIII
Um passeio com Confúcio. Ordem interior.

CANTOS XIV e XV
Inferno poundiano: banqueiros, editores de jornais, escritores picaretas
e outros “perversores da linguagem” e da ordem social.
Dante e Plotino como guias.
O escudo de Perseu: comprometimento com a razão
e defesa possível em um ambiente intelectualmente depauperado.

CANTO XVI
Purgatório terrestre: Sordello, Peire Cardinal, Blake, Dante.
A Grande Guerra. Amigos perdidos no front.
O testemunho de Fernand Léger.
O início da Revolução Russa pelos olhos de Lincoln Steffens.

CANTO XVII
Reinício. Busca gnóstica.
Medianias: entre a vida e a morte,
entre os mundos divino e mortal.
Delírios, e um lento despertar: rumo a Veneza.

CANTOS XVIII e XIX
Exploração financeira e guerra.
Marco Polo e Kublai Khan.
Zaharoff, negociante de armas.
Encontro com Arthur Griffith. Lincoln Steffens e as revoluções.
Mensdorff, Benckendorff e a estupidez que levou à Grande Guerra.

CANTO XX
Homero, Catulo, Propércio, Ovídio,
Cavalcanti, Ventadour, Arnaut:
todos somam para a clareza da canção e seu ritmo.
NOIGANDRES.
Mais avatares de Helena: Zoe, Marózia, a Elvira de Lope de Vega.
Os lotófagos dão lugar à descrição
de um afresco de Francesco del Cossa:
terceiro paraíso — triunfo.

CANTOS XXI e XXII
Médici: Giovanni fala com Cosimo.
As conspirações contra a família:
Diotisalvi e cia.; depois, Pazzi & Baroncelli.
Ascensão de Lorenzo. Jefferson.
Dança daquelas levadas por Hades.
XXII: Douglas encontra Keynes;
viagens a Gibraltar.

CANTO XXIII
Intelecto humano. Formas de conhecimento.
De Ficino aos Curie.
Outro sono/passeio. Hélio desce à escuridão.
Peire de Maensac segundo Austors.
Anquises e Afrodite.

CANTO XXIV
Parisina e Ugo revisitados. A família Este de Ferrara.
Niccolò, o “pacificatore”, vai a Jerusalém.
Palazzo Schifanoia.

CANTO XXV
Livro do Conselho Superior: a burocracia veneziana.
A sensaria de Ticiano.
Sulpicia e Tibulo. Ecos de Sexto Propércio.
O mural de Ticiano.

CANTO XXVI
Pound relembra sua primeira visita a Veneza.
Malatesta revisitado(s).
A história veneziana entrevista.

CANTO XXVII
Spahlinger, Brisset, Curie.
As Graças.
Cadmo semeia a terra com os dentes do dragão.
Retorno a Ventadour.

CANTO XXVIII
Provincianismos: da Pensilvânia à Emilia-Romagna.
Viagem aos Pirenéus.
Os Massimo, o Discobolus, a queda do papado.
Aviadores e aviadoras: de Lindbergh a Elsie.

CANTO XXIX
Penella Orsini.
Cunizza revisitada.
Arnaut, Eliot e o “pecado”.
Evocação de Ártemis.

CANTO XXX
Três casos sórdidos: Afrodite e Hefesto,
Pedro e Inês de Castro,
Alfonso d’Este e Lucrécia Borgia.
Soncino e a edição de Petrarca.
Morre o papa Borgia, enterra-se os Malatesta,
encerra-se a primeira parte dos Cantos.

Canto I

 

Pound inicia a obra com uma tradução de parte do canto XI d’A Odisseia de Homero. Ele não recorre diretamente ao original grego, mas à tradução latina do renascentista Andreas Divus, datada de 1538. Ou seja, trata-se da tradução de uma tradução. Em todo caso, ler ou reler o referido canto (sugiro a tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011) será de grande ajuda aqui.

No canto XI, Odisseu e seus companheiros, orientados por Circe, vão à boca do Hades ter com os mortos. O herói precisa questionar Tirésias sobre como retornar a Ítaca, seu lar, mas acaba falando com outras “sombras” nessa jornada ínfera: o companheiro Elpênor, morto há pouco em um acidente estúpido; a mãe, Anticleia; Agamêmnon, que conta como foi assassinado pela própria esposa, Clitemnestra, e por Egisto; Aquiles (“Não queiras / embelezar a morte, pois preferiria / lavrar a terra de um ninguém depauperado, / que quase nada tem do que comer, a ser / o rei de todos os defuntos cadavéricos”, 487-491); etc. Trata-se, em suma, de uma nekyia, rito pelo qual os mortos são invocados (não confundir com a catábase, em que o indivíduo desce ao Hades e por lá passeia).

Não é por acaso que Pound inicia Os Cantos com esse consórcio com os mortos, pois eles — representando o passado — serão cruciais para a constituição da obra e de seu projeto, que, novo, aponta para o futuro, é inteiro possibilidade(s).

“E pois com a nau no mar”: o primeiro verso se inicia com um “e” que aponta desde o começo para tal continuidade.

“Assim:”: o derradeiro verso (o uso dos dois pontos é uma escolha (feliz) de Grünewald, pois Pound se limita a não colocar um ponto final, o “So that” seguido pelo espaço em branco, espaço a ser preenchido, espaço convidativo) nos lança para o que virá e, ao mesmo tempo, encerra a preparação. Pound introduziu o herói e se introduziu na tradição, e invocou a musa, a deusa Afrodite.

Note que Pound acena para Divus, explicitando sua tradução-da-tradução, ao usar alguns termos latinos, e não gregos — como Avernus, que nos remete para o canto VI (237-42) da Eneida de Virgílio (desta, sugiro a tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2016) —, e então, ao final do Canto, dirige-se a ele: “Divus, repousa em paz, digo, Andreas Divus, / In officina Wecheli, 1538, vindo de Homero”.

E depois chegamos à invocação: “Venerandam, / Na frase em Creta, e áurea coroa, Afrodite, / Cypri munimenta sortita est, alegre, orichalchi, com dourados / Cintos, faixas nos seios, tu, com pálpebras de ébano / Levando o ramo de ouro de Argicida. Assim:”.

Aqui, temos outra tradução de tradução, de alguns fragmentos do Segundo Hino Homérico para Afrodite, via Georgius Dartona, que Pound encontrou no mesmo volume em que estava a Odisseia de Divus.

O “Argicida”, no caso, é Hermes, sendo o termo a forma latina de seu epíteto Argeiphontes, “assassino de Argos”; o ramo de ouro é o seu caduceu, aqui trazido/levado por Afrodite.

Tradução livre dos trechos em latim: “Veneranda, com uma coroa dourada”; “A quem concederam as fortalezas do Chipre”; orichalchi, “de cobre”.

A “officina Wecheli” foi onde a tradução de Divus da Odisseia foi impressa.

“E assim:” — continuemos.

……

Imagem: tela de Johannes Stradanus,
Odisseu na entrada do Hades (c. 1600-05).

‘Os Cantos’, de Ezra Pound

A partir de hoje, e paulatinamente, passo a coligir neste espaço notas e informações sobre Os Cantos, de Ezra Pound. A ideia é que isso sirva a outros leitores de primeira viagem, em especial àqueles que não são fluentes em inglês e, portanto, não têm acesso à extensa bibliografia existente sobre a obra.

Minhas fontes principais são o site The Cantos Project e o clássico A Companion to The Cantos of Ezra Pound (Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 1980), de Carroll F. Terrell (tenho esse livro em PDF; quem quiser, é só pedir). Quaisquer outras fontes serão devidamente citadas nos posts em que forem utilizadas.

As edições de que disponho da obra de Pound são Os Cantos (tradução: José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002), única disponível em nosso português até o momento, e The Cantos (Nova York: New Directions, 1986). A tradução de Grünewald foi reimpressa diversas vezes, inclusive em formatos de bolso, e pode ser facilmente encontrada por aí.

Farei um post sobre cada Canto (às vezes dois, quando forem complementares e/ou exigirem poucas notas), e vou incluir e atualizar os links conforme a leitura avançar. Os posts também serão revistos sempre que necessário, com mais informações e coisas do tipo. Logo, quaisquer sugestões e correções são muito bem-vindas. Farei as postagens conforme tiver tempo e disposição, de tal forma que a empreitada se prolongará por bastante tempo. É isso.

Tempus loquenditempus tacendi.

 

Sumário

 

UM ESQUEMA DE XXX CANTOS (1930)

ONZE NOVOS CANTOS (1934)

A QUINTA DÉCADA DOS CANTOS XLII-LI (1937)

CANTOS LII-LXXI (1940)

OS CANTOS PISANOS LXXIV-LXXXIV (1948)

SEÇÃO: PERFURATRIZ DE ROCHAS DE LOS CANTARES LXXXV-XCV (1955)

TRONOS DE LOS CANTARES XCVI-CIX (1959)

ESBOÇOS & FRAGMENTOS DOS CANTOS CX-CXVII (1969)