Canto XVI

 

Aqui, Pound emerge do inferno e chega ao purgatório terrestre. Nele, encontra alguns dos personagens que frequentaram os Cantos anteriores. Em seguida, o poema alude à Primeira Guerra Mundial e aos amigos de Pound que nela combateram, como Richard Aldington, T. E. Hulme, Henri Gaudier-Brzeska, Wyndham Lewis, Ernest Hemingway e Fernand Léger (cujo testemunho, inteiramente em francês, talvez seja a passagem mais importante do Canto; a tela que ilustra a postagem, os soldados jogando cartas, é de Léger). Por fim, temos uma transcrição do relato de Lincoln Steffens sobre o o início da Revolução Russa, e um epílogo acerca da ofensiva que encerrou a Grande Guerra.

Pound recorre bastante aos dois primeiros cantos do Purgatório de Dante. Mas, no lugar de Catão de Útica, Pound ecoa o apelo anti-imperialista por meio de outras figuras que aparecem no canto, como Sordello e William Blake.

“Vendo o inferno em seu espelho”: o “espelho” de Dante é, claro, A Divina Comédia.

“Contemplando-o em seu escudo”: Sordello da Goito (ca. 1200-1269) viu o inferno em suas carreiras como soldado e diplomata. Tanto o “espelho” quanto o “escudo” foram imprescindíveis para a emergência de Pound desde o inferno, conforme vimos ao final do Canto anterior.

“crimen est actio”, “crime é ação”. Em uma das versões anteriores do Canto, Pound foi mais explícito: “Crimen est actio, crime is an action/ evil a state of being”, “Crimen est actio, crime é uma ação / o mal, um estado do ser”.

“Palux Laerna”: Palus Lernae (“pântano de Lerna”), um lago na região de Argolis, na Grécia. Acreditava-se que ele fosse uma entrada para o mundo subterrâneao.

“a relvagem espessa”: referência ao Purgatório I, 94-105. Cato diz a Dante que ele precisa lavar o rosto e o envolva com “um junco liso” (“giunco schietto”).

“e agora um homem emerguiu…”: o homem é Victor Gustave Plarr (1863-1929), poeta inglês nascido em Strasbourg, trabalhava como bibliotecário no Royal College of Surgeons. Pound fez amizade com ele em seus primeiros dias em Londres. Plarr é o Mr. Verog em “Hugh Selwyn Mauberley”.

“muro… Estrasburgo”: referência ao poema “Strasbourg”, de Plarr, publicado em 1918, no qual celebrava a retomada da cidade pelos franceses ao final da Grande Guerra. A cidade fora invadida pelos prussianos em 1870. “Galliffet” é Gaston Alexandre Auguste, Marquês de Galliffet (1830-1909). Nesse trecho, usando o poema de Plarr, Pound remete à Guerra Franco-Prussiana de 1870, em especial à Batalha de Sedan, onde Galliffet ordenou à sua unidade de cavalaria, Les Chasseurs d’Afrique, que tentasse romper o cerco prussiano. Mesmo sabendo que cavalgavam para a morte, os soldados obedeceram às ordens.

“Aldington”: Richard Aldington (1892-1962), poeta e romancista inglês, vizinho e amigo de Pound, e partidário do imagismo. Serviu na Grande Guerra entre 1915 e 17. A partir dessa experiência, escreveu o romance Death of a Hero (1929).

“Henri Gaudier”: Henri Gaudier Brzeska (1891-1915), escultor francês e um dos amigos mais queridos de Pound. Alistou-se e morreu em Neuville St. Vaast no dia 5 de junho de 1915. Pound escreveu uma homenagem a ele, Gaudier Brzeska. A Memoir (1916).

“T. E. H.”: T. E. Hulme (1883-1917), britânico, foi crítico, poeta e teórico do modernismo. Suas palestras e traduções foram importantes na mediação dos pensamentos estéticos e filosóficos francês e alemão nos círculos intelectuais londrinos. Pound acrescentou os poucos poemas que Hulme escreveu ao seu livro Ripostes (1912). Lutou como voluntário e foi morto em 28 de setembro de 1917.

“Wyndham Lewis” (1884-1957), pintor e escritor britânico, outro amigo próximo de Pound, lutou na artilharia (como Hulme), mas sobreviveu à Grande Guerra. Pound manteve contato com Lewis no decorrer da guerra, organizando exposições e vendendo seus quatros, e o ajudou a publicar o romance Tarr.

“Windeler”: o australiano B. Cyril Windeler (1866-1961) foi um fazendeiro, criador de ovelhas e corretor de lã que Pound conheceu em Londres durante a guerra. William Bird republicou o conto “Elimus” (1918), de Windeler, em 1923, usando doze ilustrações de Dorothy Pound.

“Capitão Baker”: Lionel Guy Baker (c.1874–1918), um dos amigos de Wyndham Lewis. Morreu de influenza em 1918. Lewis fala sobre ele de forma afetuosa em sua autobiografia Blasting and Bombardeering.

“Fletcher”: Gareth Hamilton Fletcher (1895-1915), amigo de Dorothy Pound.

“Et ma foi (…) fabrique”: Fernand Léger (1881-1955) falando sobre a guerra. O célebre pintor combateu em Verdun e conversou a respeito com Pound. Seu relato contrasta com a narrativa de Plarr; este romantiza Galliffet e a vitória francesa na Grande Guerra, ao passo que Léger é impiedoso em seu realismo, destacando a impossibilidade de que haja glória e honra na guerra, mas apenas terror e loucura. Pound fez questão de que Léger lesse a passagem e aprovasse a sua inclusão no Canto. Segue uma tradução livre: “E, de fato, você sabe / todos os nervosos. Não, / Há um limite; os animais, os animais não / São feitos para isso, um cavalo não dura muito. / Homens de 34 anos, de quatro, gritando “mamãe”. Mas os fortes / No fim, lá em Verdun, havia apenas esses sujeitos grandalhões / E eles viam tudo com extrema clareza. / O que eles valem, os generais, o tenente, / eles não valem nada, / não há nada além de madeira, / Nosso capitão era muito, mas muito fechado em si mesmo, / um velho engenheiro, mas firme, / sua cabeça era firme. Lá, você sabe, / tudo, tudo funciona, e os ladrões, todos os vícios, / Mas os rapinadores, / havia três em nossa companhia, todos foram mortos. / Eles saíram para pilhar um cadáver, a troco de nada, / eles saíram só para fazer isso. / E os boches, o que você quiser, / militarismo, etcetera, etcetera. / Todas essas coisas, mas, MAS, / o francês só luta depois de comer. / Mas esses pobres sujeitos / No fim das contas eles atacaram para comer, / Sem ordens, bestas selvagens, foram feitos / Prisioneiros; os que conseguiam falar francês disseram: / “Por quê? É verdade, nós atacamos para comer.” // É o óleo, a graxa do eixo / os trens deles andavam a três quilômetros por hora, / E eles guinchavam e rangiam, dava para ouvi-los a cinco quilômetros de distância. / (Foi isso que acabou com a guerra.) // Lista oficial de mortos: 5.000.000. // Ele diz a você, bom, tudo cheirava a combustível. / Mas, Não! eu o xinguei. / Eu disse a ele: Você é um vigarista! Você perdeu a guerra! // Ah, sim! todos homens de bom gosto, eu admito, / Tudo isso de volta. / Mas um sujeito como você! / Esse cara, um tipo como ele! / O que ele poderia ter arranjado! / Ele estava numa fábrica.”

“leur trains”, “os trens deles”: o ponto da controvérsia entre Léger e seu interlocutor é que não foi o controle de combustível, mas a importância das linhas de abastecimento de alimentos que decidiu a Batalha de Verdun. Os alemães eram abastecidos por trens vindos de Metz; os franceses, por meio de caminhões que vinham pela Voie Sacrée (eram 60 km de distância entre Bar-le-Duc e Verdun). Andando a três quilômetros por hora, os trens eram muito lerdos, e a fome se tornou um sério problema para os alemães. Daí eles terem atacado “para comer”, “sem ordens, bestas selvagens”, e foram vencidos.

“terrasiers (…) exact”, o esquadrão de enterro, com suas cabeças / viradas para trás, desse jeito / arriscou suas vidas por uma pá de terra / [o buraco no chão] tinha que ser quadrado, preciso…”

“Dey vus…”: a imitação que Pound faz de um carregado sotaque russo sugere que a pessoa que fala seja o adido militar Nikolai Lavrentievich Golijewski, que, após deixar a Rússia em 1918, viveu em Londres, Paris e nos EUA, retornando a Moscou em 1954.

“Brest-Litovsk”: tratado firmado entre a Rússia e as potências centrais (Alemanha, Áustria, Bulgária e Turquia), assinado em 3 de março de 1918, pelo qual a Rússia se retirou da Grande Guerra. As condições impostas à Rússia foram draconianas, mas as potências perderam a guerra meses depois e o tratado foi revogado. Alguns territórios perdidos pela Rússia com o tratado, como a Bielorrússia e a Ucrânia, foram reanexados após a Guerra Civil Russa (1918-21).

“Un de posch”, “um dos boches”, isto é, dos alemães.

“Esse é o truque”: a partir daqui, Golijewski dá lugar a Lincoln Steffens, que relata o que observou em Petrogrado, na primavera de 1917, em meio à Revolução Russa. Steffens viajou de Nova York no mesmo navio em que estava Trotski. Este ficou detido em Halifax por um mês. Steffens seguiu viagem, chegou à Rússia em abril e assistiu aos primeiros discursos de Lênin — daí o verso “Lá estava um homem falando”. Os ministros do Czar, sabedores do aumento do ímpeto revolucionário, resolveram repetir a carnificina de 1905: reunir o povo nas ruas de Petersburgo (com a desculpa de que distribuiriam comida) e abrir fogo. Mas, na ocasião narrada, os cossacos foram gentis (“Pojalouista”, “Por gentileza”), demonstrando que não abririam fogo. No fim das contas, eles desobedeceram a ordem de atacar e se confraternizaram com o povo, “E aquilo foi a revolução…”.

“Haig”: Douglas Haig (1861-1928), comandanta da Força Expedicionária Britânica (BEF) durante a Grande Guerra. O “ataque” é uma provável referência à Ofensiva dos Cem Dias (agosto-novembro de 1918), que forçou a Alemanha a assinar o armistício de 11 de novembro e encerrar a guerra. A contraofensiva aliada foi coordenada pelo general francês Ferdinand Foch.