Canto VIII

 

Os Cantos VIII-XI abordam a história de Sigismundo Pandolfo Malatesta (1417-1468), condottiere, nobre, poeta, patrono das artes e lorde de Rimini e Fano a partir de 1432.

“Estes fragmentos que você guardou (preservou)”: “você”, no caso, é Eliot, e Pound se refere ao verso 431, um dos derradeiros d'”A terra devastada”, “These fragments I have shored against my ruins”, “Com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas” (na tradução de Ivan Junqueira, em Poesias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981). Assim, Pound inicia o Canto se referindo ao uso de fragmentos na poesia e do papel que eles representam na presentificação do passado, por assim dizer.

Calíope é a musa da poesia épica. Os Cantos Malatesta são a primeira tentativa de Pound de reconciliar a verdade história com a poesia épica. Aqui, à diferença do que fez em Cantos anteriores (como o V, no qual escreveu como um historiador contemporâneo, o VI, no qual compõe uma crônica fragmentada de eventos, ou o VII, em que o passado é reconstituído intuitivamente com o auxílio de traços materiais visíveis), Pound busca essa “verdade” por meio de uma rigorosa pesquisa histórica, complementada por uma recriação de ecos épicos dos fatos pesquisados. Assim, os Cantos Malatesta são “verdadeiros” enquanto relatos daquilo que Pound considera fascinante e relevante acerca de Sigismundo (distanciando-se da “objetividade” do historiador, portanto).

“sous les lauriers”, “sob os louros”.

Aquele Alessandro”: Alessandro de Médici, cujo assassinato foi relatado no Canto V. Ele, de fato, era filho de uma criada negra. Pound parece sugerir um contraste entre a inércia e o fatalismo de Alessandro, morto pelo primo Lorenzino, e a vida ativa de Sigismundo.

“Frater (…) carissime”: de uma carta de Sigismundo para Giovanni de Médici, de 7 de abril de 1449 — “Tão querido para mim quanto um irmão, a companhia mais querida”. Pound leu a carta no livro de Charles Yriarte, Un condottiere au XV siècle, e, depois de pesquisar no Archivio di Stato, em Florença, corrigiu dois erros cometidos por Yriarte: a saudação a expressão “buttato via”, “jogado fora”, “descartado”, “desperdiçado” (que Yriarte transcreveu erroneamente como “gettato via”). Na época em que escreveu a carta, Sigismundo estava sob contrato dos florentinos. Em outubro de 1448, eles o haviam liberado para liderar o exército veneziano na Lombardia. Veneza e Florença eram aliadas na guerra pela sucessão em Milão, contra Alfonso e o papa.

“(…) a paz entre você e o Rei de Ragona”: Sigismundo deveria fazer parte das negociações entre Florença e Alfonso, rei de Nápoles. Graças à vitória dele em Piombino, Florença devia muito a Sigismundo, coisa que até o papa Pio II, seu arqui-inimigo, não deixou de notar (v. Canto IX, 51-55). No entanto, quando a paz foi acordada em Lodi, em 1454, Alfonso (por conta da traição de Sigismundo em 1447), exigiu que ele fosse excluído das negociações, e os florentinos não objetaram. O “Rei de Ragona”, no caso, é Alfonso (1396–1458), Rei de Aragão, Valência, Maiorca, Sardeña e Córsega, Sicília, e Conde de Barcelona. Após a morte do Duque de Milão, Filippo Maria Visconti, em 1447, Alfonso reivindicou a cidade afirmando que o Duque, que não teve herdeiros homens, havia dito que ele o sucederia. A fim de reforçar sua reivindicação, Alfonso se mudou para a Toscana e contratou Sigismundo para lutar contra Veneza e Florença, que também reivindicavam a cidade. Como Alfonso pagou muito menos do que prometera, Sigismundo mudou de lado e assinou com os florentinos em dezembro de 1447. Pound narra esses eventos no Canto IX, 46-55.

“Maestro di pentore”: não se sabe ao certo a quem Sigismundo se referia. Yriarte supõe que fosse Piero della Francesca por causa da data em que foi pintado o afresco no Templo Malatestiano (a catedral de Rimini, construída no século XIII e inteiramente reformada por Sigismundo).

“affatigandose (…) mai”, “de tal modo que ele possa trabalhar como quiser, ou desperdiçar tempo como quiser, nunca faltando provisão”.

“In campo (…) contra Cremonam”, “No campo dos mais ilustres senhores de Veneza, 7º dia de abril de 1449, diante de Cremona”: Sigismundo, como general dos venezianos, liderou um cerco malsucedido a Cremona nos primeiros meses de 1449.

“… e porque o supracitado (…) dez do Bailio”: trecho do contrato firmado entre Sigismundo e os “dez do Bailio” (o conselho florentino) em 5 de agosto de 1452, pelo qual ele deixaria o serviço de Milão e lutaria por Florença, com a aprovação do Duque de Milão. Este, na época era Francesco Sforza (1401–1466), que iniciou sua carreira militar a serviço do Duque anterior, Filippo Maria Visconti. Ele se casou com a filha de Filippo, Bianca, em 1441. Após a morte do sogro, defendeu a cidade contra as reivindicações de Veneza e Alfonso de Aragão. Em 1450, vitorioso, ele se instalou como o novo Duque de Milão.

Penna e Billi: rochedos no Monte Carpegna, nos Apeninos. Entre eles, está a cidade originária dos Malatesta, Pennabilli.

“Lyra”: pastiche de um poema mais longo encontrado no livro de Yriarte, que este atribui erroneamente (embora Pound não soubesse disso) a Sigismundo. L. Rainey aponta, com base na crítica de Aldo Francesca Massèra, que esse longo poema citado no livro de Yriarte não foi escrito por Sigismundo, mas por Simone Serdini, poeta senês falecido em 1420 (quando Sigismundo tinha três anos, portanto).

“Sob as plumas…”: em maio de 1442, um mês após o casamento de Sigismundo com Polissena Sforza, Bianca e Francesco Sforza visitaram Rimini e foram esplendidamente recebidos. Sigismundo esperava que Sforza o ajudasse a tomar Pesaro de Galeazzo, o Inepto, um primo pertencente a outro ramo da família Malatesta.

“… as guerras ao sul”: Francesco estava a caminho de uma batalha em Ancona, ao sul de Rimini.

O “imperador grego” era João VIII Paleólogo (1392–1448), imperador bizantino que, em 1438, viajou para a Itália a fim de firmar de aliança com o papa e os príncipes italianos. Seu objetivo maior era vencer os turcos. Um concílio foi organizado para que as igrejas ocidental e oriental se reconciliassem e deveria ocorrer em Ferrara, mas, como esta cidade sofresse com a peste, foi transferido para Florença. As discussões teológicas e políticas se prolongaram até o ano seguinte, chegou-se a um acordo e o papa prometeu ajuda militar ao imperador. No entanto, quando ele voltou para Constantinopla, houve enorme revolta contra a possibilidade de reconciliação, e o acordo caiu por terra.

O bizantino Gemisthus Plethon (Georgios Gemistos, às vezes referido em português como Gemistos Pletão, c.1355–1452) foi um filósofo neoplatônico. Estabeleceu uma escola platônica em Mistras e era consultado pelos imperadores bizantinos acerca de questões filosóficas e legais. Participou como delegado do Concílio de Ferrara. Graças à impressão que Gemistos causou em Florença, Cosimo de Médici pediu a Marsilio Ficino que traduzisse as obras de Platão e dos neoplatônicos para o latim. Em 1466, depois de lutar contra os turcos a mando dos venezianos, Sigismundo levou os ossos de Gemistos para a Itália e os colocou em um dos sarcófagos do Templo.

“… a guerra ao lado do templo em Delfos”: Gemistos se refere às “quatro guerras sacras” entre cidades-estados gregas pelo controle do templo, o que permitiu que Filipe II da Macedônia, aproveitando a divisão interna, tomasse a Grécia após vencer a Batalha de Queroneia (338 a.C.). A analogia com o século XV é óbvia: apenas uma frente cristã unida poderia enfrentar os perigos externos.

“… POSÍDON, concrete Allgemeine“, “universal concreto”: segundo a teologia pagã de Gemistos, Posídon, “filho de Zeus”, seria a “causa primeira do universo”, entidade sem representação antropomorfizada e, portanto, a personificação da Ideia Platônica que se manifesta nas formas individuais.

“Com a igreja contra ele”: embora tenha tido uma relação passável com quatro papas (Martinho V, Eugênio IV, Nicolau V e Calisto III), Sigismundo entrou em rota de colisão com Pio II (seu maior inimigo) e Paulo II.

A filha de Francesco é, claro, Polissena, com quem Sigismundo se casou para reforçar a aliança com Sforza. Mas este, em vez de ajudá-lo a tomar Pesaro de Galeazzo, mediou a venda da cidade para seu irmão, Alessandro Sforza, por 20 mil florins, em 1444 ou 1445.

Broglio: Gaspare Broglio Tartaglia (1407–1493) foi um dos conselheiros e comandantes mais leais de Sigismundo. Escreveu um relato da vida do chefe intitulado Cronaca Malatestiana del secolo XV (cujo manuscrito Pound consultou em Rimini, em março de 1923).

“templum aedificavit”, “construiu o templo”: frase dos Comentários de Pio II. Trata-se, é claro, da Igreja de San Francesco, também chamada de Templo Malatestiano, em Rimini. Uma das razões alegadas por Pio II para excomungar Sigismundo está o fato de que ele encheu o templo de imagens pagãs. Pound usa a frase de Pio II num sentido inverso, louvando a grandeza de Sigismundo.

“… até os 50”: 1450 foi o ano em que Francesco Sforza se tornou Duque de Milão e no qual ele traiu Sigismundo com relação a Pesaro. Com o fim das guerras pela sucessão em Milão, Sigismundo perdeu dinheiro e sua posição ficou mais e mais vulnerável.

“Galeaz”: Galeazzo, o Inepto. Além de Pesaro, ele também vendeu Fossombrone para Federico de Urbino por 13 mil florins. Foi excomungado pelas vendas dessas cidades consideradas “papais”.

Pound cita “Guillaume Poictiers” para traçar uma analogia entre ele e Sigismundo, sendo ambos seriam aristocratas, guerreiros e poetas.

“Mastin”: apelido de Malatesta da Verucchio (1212–1312). Verucchio é uma cidade próxima de Rimini.

“Paolo il Bello”: já citado no Canto V (quando o encontramos no Inferno, ao lado da amada Francesca da Rimini), eis Paolo Malatesta, (c.1250–1283), terceiro filho de Malatesta da Verucchio.

“Parisina”: uma história similar à de Paolo e Francesca. Parisina Malatesta (1404–1425), filha de Andrea Malatesta, casou-se com Niccolò III d’Este em 1418. Ela se apaixonou pelo enteado, Ugo. O marido descobriu e executou ambos em 1425. Quando morreu, Parisina já havia dado à luz três crianças. Sua filha mais velha, Ginevra (1419–1440), seria a primeira mulher de Sigismundo.

“Atridas”: a exemplo dos Malatesta, os atridas foram uma família célebre por membros trucidando uns aos outros: Agamêmnon sacrificou a própria filha, Ifigênia, e depois foi assassinado pela esposa, Clitemnestra, que, por sua vez, foi morta pelo filho Orestes — Ésquilo nos conta tudo isso na trilogia Oresteia).

“… naquele tempo”: setembro de 1429, quando morreu Carlo Malatesta, tutor e protetor de Sigismundo.

“… nenhuma dívida”: em janeiro de 1430, o papa Martinho V ameaçou confiscar as terras do Malatesta pelo não pagamento de dívidas, o que provocou uma grande reação da população local e dos irmãos Malatesta e seus aliados, a família Este de Ferrara. Por conta disso, o papa se dispôs a negociar e, em março, os irmãos cederam as terras de Ancona, San Sepolcro e Cervia, além de pagar 4 mil ducados, mas mantiveram Rimini.

“… lutaram nas ruas”: alusão à tentativa de Carlo II Malatesta de anexar Rimini, Cesena e Fano, em 1430.