Canto XVII

 

“Assim”: usando a mesma expressão que encerra o Canto I (“So that”), Pound dá início à série seguinte.

“… as vinhas se despencam de meus dedos”: o ato sagrado da manifestação divina (aqui, dionisíaca), deus e homem se tornando um só. Isso é reiterado em outras passagens do Canto. Algo similar ocorre no Canto VI, na passagem com Guillaume de Poitiers.

“E as abelhas pesadas de pólen”: o mel (ou os favos), outro componente dos rituais gregos em homenagem aos deuses.

“um som felino”: Pound conjurando um mundo embalado pelo sono, com suas “abelhas pesadas” e “pássaros sonolentos nos galhos”. (E a pantera está no emblema de Zagreus.)

“ZAGREUS”: a primeira hipóstase de Dionísio. Filho de Zeus e Perséfone. Como Hera estivesse com ciúmes, a criança foi despedaçada e devorada pelos titãs. Atena salvou o coração e o levou para seu pai. Zeus comeu o coração e gerou o filho outra vez com Semele, que deu à luz Dionísio. Daí ele ter esse nome, δίγονος, “digonos”, o “nascido duas vezes”. Ele também é Dionysos Khthonios, Dionício Ctônico. Tendo morrido, guarda certa afinidade com o mundo ínfero — a manifestação de um deus da vida como (e potencialmente) um deus dos mortos.

A “deusa dos belhos joelhos” é Ártemis (Diana, na mitologia romana), a deusa grega da caça, da natureza e da castidade, protetora das mulheres, das crianças e dos nascimentos. Ela já marcou presença no Canto IV e retorna nos Cantos XXI, XXIX e, sobretudo, XXX.

“palazzi”, “palácios”: a visão de Veneza irrompe oniricamente. A cidade é o destino do viajante recém-egresso do mundo ínfero, a saída para a “água conhecida” que será mencionada ao final do Canto. Ainda no começo, o sonhador vê “as árvores crecendo n’água”, os troncos “de mármore gerados na quietude”. Mais adiante, ele encontra um “homem sustento sua vela” que espelha e enriquece a visão dessa “floresta de mármore”. Por fim, após três entre a vida e a morte, os braços de Koré sobre seu ombro, o viajante navega para “o lugar de pedra”, relembrando figuras que também foram para Veneza (Borso, Carmagnola, Sigismundo).

“Chrysophrase” é a calcedônia, uma pedra semipreciosa.

“Gruta de Nerea”: ninfa marinha criada por Pound, contraparte de Nereu. Ir à gruta é uma alegoria de uma alegoria, pois remete à catábase. O primeiro estágio da revelação é de confusão e erro, e só então ocorre a iluminação. Para Pound, há um elemento(-chave) sexual na catábase, que reencena os processos férteis e reprodutórios da natureza.

“Hermes”: na cultura helênica, o deus grego do comércio, da comunicação e das estradas, mensageiro entre os mundos divino e mortal. Os gregos passaram a identificá-lo com o deus egípcio Thoth, tido como o revelador, profeta e intérprete da divina sapiência e do divino logos. Nessa hipostasia, Hermes foi chamado de Hermes Trismegisto (“três vezes grandíssimo”) e ligado à escrita do Corpus Hermeticum, conjunto de textos iniciáticos, concebidos (provavelmente) entre os séculos I e III, e que se tornaram uma fonte de inspiração para os pensamentos hermético e neoplatônico renascentista. Na época, acreditava-se que a obra remontasse à antiguidade egípcia, fosse anterior a Moisés, prenunciando inclusive o cristianismo. Atena: deusa da sabedoria, nascida da cabeça de Zeus.

“Como agulha de bússola”: apontando, no caso, para um lugar entre o mundo helênico (governado por Atena) e o mundo egípcio-helênico (presidido por Hermes). Essa mistura corresponde ao espírito do Canto, ao seu caráter fronteiriço e algo difuso, entre “lá” e “cá”.

“Para a esquerda”: para o mundo greco-romano, das florestas, ninfas e ciprestes. Depois, temos a “grande aleia de Memnons” (o rei etíope que foi a Troia ajudar Príamo e acabou morto por Aquiles), que talvez esteja à direita, na direção do Egito (reforçando a distinção Hermes/Atena) — “Além, mar, crinas divisadas sobre as dunas”. Pound também pode ter pensado nas duas estátuas de Amenhotep III, na necrópole de Tebas, chamadas de Colossos de Mêmnon.

“Zotar”: figura mítica inventada por Pound como uma espécie de contraparte marítima das ninfas que dançam nas florestas. O nome reaparece no Canto XX.

“Aleta”: deidade marinha inventada por Pound. As algas (“sea-wrack”) nas mãos sugerem que ela preside sobre as tumbas dos marinheiros, uma espécie de Perséfone marítima.

O “irmão de Circe” é o próprio místico, que erra em todo o Canto entre a vida e a morte, antes de emergir para a luz do sol do mundo real.

“esplendor de Hermes”: remete à ideia de que a busca enfocada no canto é uma busca gnóstica, em que há um renascimento espiritual, com plena consciência de si, e a contemplação do esplendor da divindade.

“Sigmisundo, depois do naufrágio na Dalmácia”: após a derrota na Senigaglia, em 1462, Sigismundo viajou ao sul para ter com seus aliados. Ao retornar para Rimini, seu navio naufragou na costa da Dalmácia, e muitos acreditaram que tivesse morrido. Ele, contudo, voltou para Veneza, para quem então trabalhava, e dali retornou para Rimini, em outubro de 1462.