Queimando

Queimando

Um trecho do meu romance
Terra de casas vazias
(Rocco, 2013).

wylma martins

Aureliano contornou um Monza preto que alguém estacionara sobre a calçada e já se preparava para bater palmas quando notou a figura sentada no meio-fio, alguns metros abaixo. Soube de imediato. Aproximou-se da garota. Ela mexia os dedos dos pés descalços e tinha os olhos inchados de tanto chorar. Pequena também. Isopor junto ao fogo. Ele não precisou dizer nada. Sentou-se ao lado dela e fitou a rua vazia. Estavam todos do outro lado do quarteirão, o mais próximo possível do matagal, do corpo. Pescoços esticados. Curiosos. Querendo ver. Aureliano ficou ali junto dela e não disse nada por um bom tempo. Ela chorava um pouco, parava, xingava, tremia, chorava mais um pouco. O rosto era redondo e as lágrimas escorriam por toda a extensão das bochechas, dois filetes se encontrando no queixo para formar uma única e grossa gota que então caía direto no asfalto, passando por entre seus joelhos magros. Um suicida caindo por um abismo estreito. Aureliano não conseguia desviar os olhos do queixo dela. O queixo gotejava. Foi ela quem falou primeiro:
— Você viu os joelhos dela? Prestou atenção neles, nos joelhos dela?
Ele balançou a cabeça, tinha prestado atenção, claro que tinha.
— Não foi a primeira vez — ela continuou, a voz aparecendo e sumindo como se algo fosse ligado e desligado na garganta dela. Aureliano pensou em Asmodeu morrendo. Na voz dele. Caixa de som com mau contato. — Os joelhos dela, eles. Contam tudo. Aqueles arranhões e marcas. Como se ela tivesse sido, sei lá. Queimada. Eu vi. As marcas, perguntei. Mas ela. Ela não disse. Nada. Tinha alguém machucando, mas ela. Ela. Nada.
Calou-se. O choro voltando com força. Soluços muito altos, tremendo inteira. Desmontando a olhos vistos. Implosão.
Camila naquela cama de hospital, desmontada a olhos vistos.
Quis estar lá com ela, sentado junto à cama, dizendo qualquer coisa que lhe ocorresse. Oferecendo-se para pegar um copo d’água. Os olhos fechados de Camila. Guardando os olhos fechados de Camila. Guardando os seus próprios olhos no bolso da camisa, depois de arrancá-los. Estaria em silêncio junto à cama, quieto e inútil, mas próximo dela, o melhor que poderia fazer, a única coisa que poderia fazer naquele momento.
Morrer não devia ser tão complicado.
Tão demorado.
Olhou para a garota.
Ela se dobrava de dor, quase tocando o asfalto com a testa, ia e voltava, chorando.
É sempre complicado, de um jeito ou de outro.
Também não lhe ocorria nada para dizer à garota. Melhor assim. O que poderia dizer? A melhor amiga violentada e estrangulada e depois desovada na porra de um matagal. Os joelhos dela. Foi a primeira coisa que viu, não? As queimaduras ali, do atrito com o tapete. Alguém forçando o corpo dela, empurrando e arremetendo com toda a força. Por que você está fazendo isso comigo? Dor nas extremidades, dor em seu meio. Que foi que eu te fiz? Dor em toda parte. O corpo inteiro, uma enorme bola de dor. Por favor, para. Queimando. Não havia nada que pudesse dizer, evidente que não.
Olhou para os lados.
A rua vazia. O sonho de um deserto, o meio do nada. Estavam sozinhos ali e não havia mais nada. Uma certa paz a despeito de todo o maldito sofrimento. Da gratuidade da coisa toda.
Das queimaduras.
Ele esperou.
Esperou o choro arrefecer, a respiração ficar menos entrecortada. E então falou pela primeira vez desde que se sentara ali, junto dela:
— Qual é o seu nome?
Ela disse algo ininteligível.
— Desculpa, eu não entendi.
Ela limpou a garganta, tossiu um pouco, e só então conseguiu repetir:
— Maria.
— Maria — ele repetiu e ela balançou a cabeça. — Você tem o mesmo nome que a sua amiga.
— Tenho — ainda balançando a cabeça, a voz ameaçando embargar outra vez. — Tenho. Tinha.
Tentou limpar os olhos com as costas das mãos. As lágrimas, contudo, não paravam. Porra, ele pensou. Quantos anos você tem? Eu te ofereceria um cigarro, se pudesse. Se tivesse. Se pudesse.
— Vocês eram como irmãs — disse. — Amigas a vida inteira. Desde pequenas. Desde sempre.
Ela não conseguiu mais falar. Enorme bola de dor. Balançou a cabeça. Sim. Mais lágrimas. Sim. As melhores amigas. Elas eram como irmãs. Ela deve ter dito alguma coisa. Qualquer coisa.
— Você precisa me contar, Maria. Precisa me contar quem você acha que fez isso.

…………

Imagem: “Casas nº 1”, xilogravura de Wylma Martins.

Distopia cotidiana

Resenha publicada em 20.09.2014 no Estadão.

sperling

Ao contrário do que em geral acontece, há uma verdade na orelha do livro de contos Um Homem Burro Morreu: “O escritor Rafael Sperling é sem noção”. A falta de noção não é um problema, mas o combustível que alimenta os 27 contos (mais um epílogo) deste que é o segundo livro do autor carioca de 29 anos. As histórias primam pelo absurdo, pela escatologia, pelo nonsense e por uma capacidade imaginativa impressionante.

O conto de abertura, por exemplo, é um pastiche do pseudojornalismo especializado em perseguir celebridades e “noticiar” seus mínimos movimentos. Em Caetano Veloso se Prepara Para Atravessar Uma Rua do Leblon, o sujeito, de fato, atravessa uma rua, vai a um restaurante, come, usa o banheiro do lugar e por aí afora, sempre acompanhado por uma voz onipresente que lhe faz perguntas inócuas como as de um apresentador de talk-show (“Como você se sente após ter atravessado a rua, Caetano Veloso?” “Eu estou muito feliz”).

Em Insônia, um menino fantasia sobre espancar os coleguinhas para chamar a atenção de uma menina enquanto, no quarto ao lado, seus pais mantém uma ruidosa relação sexual. A convergência dessas duas ações resultará numa ocorrência grotesca e numa mudança de atitude por parte do menino. A ironia não está no acúmulo delirante de absurdos, mas na “normalidade” que insiste em se instalar desde o tom da narração.

Assim, uma simples ida à padaria (em Eu Queria Comprar Pão) resulta numa briga violenta, uma criança fala sobre o quanto aprecia as histórias picantes contadas pela babá (“Eu gosto de sexo, embora tenha apenas 3 anos. Eu nunca fiz, mas sei como é o sexo. Já vi na internet”, em Eu Gosto das Histórias Que a Minha Babá Conta) e um casal que se ama demais não consegue fazer mais nada além de chorar: “No dia seguinte fomos direto para a nossa lua de mel, em Cancún, e passamos uma semana inteira deitados na cama do hotel, chorando, olhando nos olhos um do outro” (em Emoção).

Sperling também recorre a reimaginações hilariantemente brutais de contos de fadas (em A Branca de Neve Era Um Tanto Bonita), faz com que Jesus Cristo trucide Adolf Hitler com uma violência tremenda e que se pretende reconfortante (em Jesus Cristo Espancando Hitler), narra Um Dia Comum na Vida de Dante Alighieri (o qual se dá num lar sórdido e envolve assassinatos e canibalismo) e lança mão de uma Fábula Kafkiana, que inicia com o escritor checo “em casa, trabalhando, sentindo-se um inseto imundo, quando seu pai frio e opressor aparece”, e o que se desenrola a partir daí é um pesadelo em que o sujeito é anulado pela perversidade alheia.

Ancorado no deserto sombrio que nasce e cresce entre as pessoas, o humor escandaloso de Um Homem Burro Morreu não é, em si mesmo, gratuito, mas refere-se à gratuidade que frequentemente resume as relações humanas. Com isso, Rafael Sperling ilustra muito bem a distopia nossa de cada dia.

Paz na Terra entre os monstros

Ficção (*).

Schiele

I

POEIRA E FANTASMAS

Sozinha e cheia de coisas na espelunca (à espera do fim?), a garçonete ajeita o vestido e os cabelos e considera cuspir de lado. Reconsidera e não cospe, farta de porcas porcarias.
Estatelada sozinha e cheia de coisas na espelunca, à espera do fim, só que ainda não sabe – talvez desconfie.
Uma última talagada e a lata ganha altura e depois perde e é claro que cai a dois metros e meio do maldito cesto de lixo. A vida, tão imprevisível. Acontece e nada mais? Acontece que nada mais.
Sentada a uma das mesas com um livro aberto sob o queixo, olha ao redor e que desgraça de marasmo, de vidinha mais rasteira, e a lata termina de rolar ruidosa parando junto da parede encardida que – quando foi mesmo que eu limpei da última vez?
Não importa, fregueses ali são acidentais desde que a vizinhança morreu porque fecharam duas fábricas que funcionavam nas redondezas.
Poeira e fantasmas.
Na rua outrora movimentada só passam agora um ou outro bêbado, estudantes aventureiros e desocupados, nunca em qualquer horário mais ou menos estratégico e sempre em direção a qualquer outro lugar que não aquela espelunca.

GIGANTETAS E OS MENINOIDES

Maldito fecho dianteiro do sutiã quando gigantetas é o que se tem. Fica torta a coisarada toda e parece que o maldito fecho vai estourar e tudo vai abrir e dois meninoides molengões sairão dançando fellinianamente às vistas de todo mundo.

TODO MUNDO?

Os fregueses. Acidentais desde a morte da vizinhança, uns poucos cadáveres insepultos aproveitando os aluguéis quase dados (nada é dado) desde o fechamento dos gigantescos animais cuspidores de fumaça. Abertos os seus portões, empregados e operários enchiam o recinto à hora clara do almoço e à escura do happy hour. Poeira e mais poeira agora.

RUMO AO NORTE

O patrão mandou avisar seis dias atrás: mais duas semanas e só. A garoçonete cogitou procurar outras coisas, inencontráveis. Velho jogo de fazer continhas: trinta e oito anos, superior interminado, nenhum saco para o que quer que seja. Daí que avisou ao já quase ex-patrão:
— Vou me mandar.
— Pra onde?
— Norte.
— Tem parentes lá?
— Não.
— Então vai fazer o quê?
— Não sei.
— Por que não dá um tempo aqui? Te arrumo outra coisa.
— Não quero outra coisa. Só quero dar o fora.
Nenhuma explicação razoável à mão, mas ele tampouco insistiu. Ninguém veramente interessado em ninguém. Pessoas perguntando e respondendo sem dar a mínima para o que perguntam e respondem. Vozes se esborrachando gratuitas em tudo que é lado.
Poeira e fantasmas.

CUS DE MÃES

Quando as fábricas fecharam e a vizinhança morreu, as putas que atendiam nas quitinetes das redondezas foram as primeiras a se mudar. Putas alforriadas, sem gigolôs. (Que foi feito dos gigolôs?) Alugavam quitinetes, botavam anúncios nos jornais e esperavam ligações. Deram o fora, todas. Então, mães solteiras com suas crianças geralmente pequenas se mudaram e se mudam para o bairro atraídas pelos alugueis baratos. Algumas, eventualmente desempregadas, logo se veem e são vistas dando os rabos para os senhorios tão sem escrúpulos quanto desgostosos dos largos e flácidos materiais que têm em suas casas. Na falta de dinheiro, eles exigem os cus e nada mais. Os cus, não as largas bocetas vitimadas por parimentos recentes. Lógico que não propõem a todas, só às efetivamente solteiras e cujos filhos são ainda bem pequenos. Há as que sequer esperam a proposta e já se oferecem. As engrenagens do universo capitalista ocidentário catraqueando nas pregas das bocas dos cus daquelas pobres tão pobres senhoras.

TIROS PRÓXIMOS NA NEGRA ALVORADA

No que a garçonete, ela mesma, sente as pregas da boca do próprio cu avisando que é chegada a hora da qual não se foge e para a qual se corre. Azulejos verde-musgo incruentos de gordura, lâmpada de luz amarelada, espelho quebrado no armário, tampa rachada da privada, vazamentos — o santuário onde ele (cu) dela (garçonete) tem lugar.
Ela entra, acende a luz, ergue o vestido, baixa a calcinha e se coloca a postos.
Tambores, tiros próximos. Negra alvorada do vir-a-ser.
Primeira bateria eminentemente líquida. Sonora. Ela pensa em oceanos e mares, ela pensa no Mar Morto. Ela pensa em marinheiros. Ela pensa em cataratas. Ela pensa no próprio mijo.
Então, o primeiro dos pelotões de elite. Negro alvorescer do fim dos tempos. Sobranceiro, fornido; majestoso, gorducho — mas sólido. Fibras e líquidos, em verdade, em verdade vos receito. Cheiro sadio por aqueles lados. Sadio, familiar, todo dela. O segundo pelotão, menos sólido, dividido em dois grandes agrupamentos redondões: ploc, ploc. Ainda um pequeno grupo de paraquedistas, e pronto.
Batalha ganha.
Monstruoso alívio intestinal, o ânus disfarçando o biquinho e — reiteram as vísceras — pronto, pronto, pronto.
Chuveiradinha localizada, papel higiênico macio e o mundo voltando a girar. Claro, a descarga. Belos exemplares aqueles. Rígidos, bem constituídos, quase sorridentes. Filhos da gente. Tchau, tchau. Dando o fora goela-da-privada abaixo. Vou dar o fora feito vocês, ela pensa. Fora mesmo. Longe, longe: para outra estação.
Mas isso já não é ela pensando.

A ANUNCIAÇÃO

Oito da manhã quando o garoto entra arrastando sua mochila e se senta à primeira mesa, bem defronte ao caixa. Ele não parece um marginalzinho; marginais sabem que ali não há dinheiro. Não: metido no uniforme da escola pública de alguns quarteirões acima, a medonha camiseta amarela com o mapa do estado pintado de verde nas costas, ele veio, estritamente, ou pelo menos a princípio, tratar de negócios:
— Tem suco de quê?
— Laranja e caju.
Está parada diante dele, já o viu passando pela rua. Dezesseis, no máximo dezessete. Alto para a idade, mas o que ela entende disso?
— Laranja.
— Gelo e açúcar?
— Pode ser.
— E pra comer?
— Nada.
Seis minutos depois, o suco desce que é uma beleza. Uma beleza também o decote, ela sentada ao balcão pelo lado de dentro com um livro aberto debaixo das fuças e que beleza de gêmeos crescidões jogados amistosamente um contra o outro e o suco desce mesmo que é uma beleza.
— Que livro é esse?
Ela ouve e não ouve. Levanta a cabeça bem devagar e encara o garoto com uma expressão pesadona, francamente imbecil, de quem olha sem ver.
— Que livro é esse? — ele repete, olhos presos nas tetas brancas e vastas, vastíssimas, quase uma só.
O castelo — a voz tão ausente quanto possível, e, de fato, não o encara para valer, ao menos não ostensivamente; responde como se respondesse a uma cadeira que, pro um milagre tedioso e inútil, de repente lhe dirigisse a palavra.
O garoto, excitado, tenta adivinhar a idade dela e ao mesmo tempo em que a observa com o máximo de atenção, ansioso por cravar na memória cada mísero detalhe do que entrevê dos peitos e do colo e do rosto, o rosto muitas vezes sendo tão importante quanto as tetas e as pernas e o traseiro, pois, quando trancado no banheiro ou no quarto, calças arriadas e a respiração descompassada, ele entende que uma boceta é só uma boceta, mas uma boceta com um rosto é quase uma epopeia, e também a voz, a voz sendo parte do que ele, dadas as circunstâncias masturbatórias vindouras, terá de mais palpável, justo quando a palpabilidade é tudo.
Mas ele não foi ali apenas para isso. Há algo a dizer. Um anúncio. A informação que o fez criar coragem e adentrar a espelunca e encarar a garçonete. Deixar de ser uma cadeira, portanto, é essencial.
— Tenho que te contar uma coisa — diz a cadeira no momento em que ela vem buscar o copo e cobrar a conta, e ela pensa que não quer saber de uma coisa nem de coisa alguma. Mas a cadeira é educada e parece mesmo ter que lhe falar uma coisa e não apenas encarar os gêmeos como ela percebeu despercebendo quando veio anotar o pedido, e o que ela faz? Fica parada diante dele (cadeira-que-fala) com o copo vazio suspenso no ar decidindo se ouve ou não a coisa que inclusive já começou a ser dita: — Eu moro na rua de cima e passo todo dia aqui na porta quando vou pra escola. Essa rua tá sempre vazia, mas de uns dias pra cá eu vi um carro parado ali do outro lado com um coroa todo bem vestido dentro. Isso foi por três dias seguidos, sempre na mesma hora, quando eu tô subindo pra escola. O mesmo carro, com o mesmo sujeito fazendo a mesma coisa: sacando esse lugar.
Não é a cadeira, ela pensa, mas o garoto. O garoto que fala. Ela não viu carro nenhum, ou viu e não deu a mínima. Talvez tenha confundido com um poste, e esse poste agora cai na sua cabeça: ele vem sobre ela e a cobre de sombra.
— Quando é que foi isso?
— No começo da semana. Segunda, terça e quarta.
Ao ouvir isso, ela se perturba refletindo sobre o que, afinal, essa conversa significa. E pergunta justamente o que não interessa:
— Como… como é que era o sujeito?
— Um coroa. Terno e gravata. Cabelo grisalho.
O garoto, não a cadeira. Dezesseis, dezessete anos. Uniforme de escola pública. Olhos no decote. Medindo, desmedido. E falando uma coisa muito, muito séria. Cabulando aula para isso (decote, falar). Por quê? E por que ela sente como se o poste caísse sobre a sua cabeça, sem escalas ou amortecimento?

LIGANDO PONTINHOS

O cérebro humano gosta de ligar pontinhos, falsos ou não. O pobre sujeito estressadinho que acha que a mulher o está corneando liga um monte de pontinhos até o momento em que a executa com um pedaço de pau no alpendre da casa da sogra.
Coisas que podem ou não estar acontecendo.
O cérebro, na verdade, caga para a “verossimilhança” e só quer mesmo saber é de ligar pontinhos, e o faz numa velocidade tão estupidamente alta que o que passa a importar são os pontinhos em si, os que já estão ligados, os que falta ligar e o desenho da coisa toda. Eles se tornam autossuficientes, uma realidade em si, e o resto que se dane.
Portanto, no momento em que ela saca que é o garoto e não a cadeira quem lhe fala “uma coisa”, e que essa coisa pode muito bem ser UM pontinho que ela sinceramente esperava NUNCA ter que ligar, mas que sabia (sempre lá no fundo) que mais cedo ou mais tarde ele seria, sim, ligado, bem, é mais ou menos aí que o mundo começa a girar (parado fazia um tempão) e a girar tão rápido, mas tão rápido, que ela não apenas sente como sabe que ele (mundo) não só pode como vai (feito o tal poste que na verdade era, é, um carro com um coroa dentro) cair na sua cabeça.
— Um carro?
O que ela esperava que o garoto dissesse? Um poste, dona. Tinha um poste lá fora sacando o lugar e eu acho que ele vai cair na sua cabeça. Porque ela encara o garoto com uma expressão imbecil de todos-os-pontinhos-estão-ligados-e-brilhando, a expressão de quem entendeu bem demais o recado.
Ela deixa o copo sobre a mesa e senta-se diante do garoto. Um amontoado de gestos mecânicos, nada naturais. Naturalmente, mesmo percebendo que alguma coisa vai muito errada, ele não consegue tirar os olhos do decote. Daí que:
— É algum ex?
— Hã?
— O coroa. É algum ex-namorado? Ex-marido?…
Ligando os pontinhos: — N-não, eu… não acho…
Ela se levanta e vai até o balcão. Coloca o copo ali em cima e fica um momento parada. Aquele momento. Fosse uma coisa boa, o momento epifânico em que todos os pontinhos se encontram solidamente ligados, e ela só consegue pensar que a coisa toda faz sentido demais, e ela fica ali encostada e tudo o que consegue fazer é tremer, e tremer um bocado. Meio perdida, encara o garoto embaçadamente e percebe o que ele continua encarando, apesar de tudo. Gratuitamente. Troca de olhares o escambau. Ela cambaleia de volta para a mesa e senta-se. Respira fundo.

NÃO IA ADIANTAR PORRA NENHUMA

— Você tá bem? — ele pergunta olhando-a (acredite) direto nos olhos.
Ela balança a cabeça afirmativamente, um milímetro para cima, outro para baixo, e diz que: — Mais ou menos.
— Vai… vai chamar a polícia?
“Polícia”: a palavra faz com que ela volte e enxergá-lo. E sorri: — Pra dizer o quê?
De fato. O momento, aquele, que passou e levou um pedaço dela, agora parece de volta. Lucidez. Entendimento geral e irrestrito de tudo. Do que está havendo, do que houve, do que haverá. Bom-dia, seu guarda. Alguém num carro, do outro lado da rua. Há alguns dias. Não. Me contaram. Não, eu não vi. Ele viu. É, aquele menino. Não, não fez nada. Ficou lá. Parado. Olhando.
— Não. Não ia adiantar porra nenhuma.
E lágrimas rolam pelo rosto dela. Mas ela não soluça, nem geme, e parou de tremer. Esfrega os olhos com as duas mãos e os antebraços, assim juntinhos, imprensam os peitos e os olhos dele são adolescentemente atraídos de novo para eles, de tal forma que,

(TÁ DE PAU DURO?)

quando abaixa as mãos e o encara, ela finalmente percebe, e percebe para valer, processa e saca e computa e entende e compreende e vê (oceano de carnes quase que inteiramente à mostra logo abaixo do próprio queixo), e saca de imediato a semgraceza dele e sorri maternaltristemente e o vê abaixar a cabeça e olhar as próprias — dele — mãos sobre a mesa, pensando seriamente em dar o fora.
— Ficou sem graça?
Ele sorri. Sem graça, ele. Claro.
— Qual a sua idade?
— Dezesseis.
E é isso. Todos os pontinhos como se fossem um só, inextrincáveis. Objetivamente: ela pensa no que está para perder e no que muito provavelmente pode ganhar antes de perder o que tem. Assim, seguindo pontinho por pontinho até a Luz, só há uma coisa que ela pode e deve dizer, e diz:
— Tá de pau duro?
O garoto, sem parar para pensar sobre (e perceber e processar e computar e entender e compreender) o que está em curso, encara corajosamente a garçonete (olhos nos olhos, quero ver) e faz que SIM com a cabeça.
E o que está em curso? O que está acontecendo?

RELATÓRIO/RECAPITULAÇÃO/CAPITULAÇÃO

Num nível estritamente corpóreo ou mesmo epidérmico (por enquanto), é uma foda que se anuncia — a primeira dele e a última dela.
Recapitulando, sem medo de soar gratuito, impreciso ou (vá lá) inverossímil: o garoto passa todo dia (ou quase) por aquela rua deserta, abandonada; ele passa por ali porque gosta de passear por aquele cenário desolado e, claro, porque notou a garçonete. Não é bem o caminho para a escola, mas as mulheres passam quando passamos por elas e, bem, são mulheres. Para alguém com dezesseis anos, virgem, muito mais do que mulheres.
E a garçonete?
Ora. A conta sempre chega. De um jeito ou de outro. E todo mundo se fode, seja pelo “certo”, seja pelo “errado”. A coisa vem pegar. Sempre.
Agora, a trepada.
O garoto vinha encarando os peitos dela desde que adentrou o lugar, inclusive enquanto pronunciava (ignorante disso e de quase todo o resto) a sentença de morte dela. Pequeno anjo do bem, mensageiro anunciando o mal, de pau em riste sem ter consciência do mal ou do bem, e sim dos peitos dela, e aí:
— Tá de pau duro?
E ela vai se entregar porque já entregou todo o resto.

A FODA

A última foda, quando sabemos que é a última, pode ser um monte de coisas. A última foda, sendo mesmo a última, e tendo-se consciência de que é a última, pode ser:

a) animalesca;
b) técnica;
c) triste;
d) animalesca e triste;
e) triste e técnica.

E é a na cozinha que eles se bastam. Uma foda a princípio animalesca (mordidas com uma frequência muito acima do razoável e mais do que razoáveis), depois apenas triste (ela trabalha o último pau que vai ter na vida jogando a boceta na cara dele num meia-nove inusitado e ele não sabe muito bem o que fazer com a coisa toda e ela fez isso menos por querer ser chupada e mais para que ele não a veja chorando outra vez) e, afinal, técnica (ela o cavalga e logo ele goza e ela se deita sobre o peito dele e, mesmo ele nunca tendo feito aquilo, a coisa toda tem cheiro e gosto de rotina).

ADEUS, ESTRANHO

Ela está com a cabeça e a alma no seu destino irremediavelmente próximo (anunciado), estupidamente presente, mais palpável até do que o garoto, do que a foda, do que todo aquele maldito lugar.
Ela o beija na boca e sorri.
Ele ainda está tentando sacar o que aconteceu. Vestem-se, ela sorri e ele sorri.
Despedem-se com beijos nos rostos, ele pensando que talvez o deixem entrar para a terceira aula.
E vai.

NÃO É O CASO

Encolhida na privada, ela limpa a porra deixada na boceta com a própria calcinha e pensa se não é o caso de abreviar a brincadeira.
Não.
Não é o caso.
Esperar ali.
E que se foda.

II

JÁ ME SINTO BEM MELHOR

Mas não é por falta de fé ou de atenção que a garota, tendo já fechado os olhos e jogado os cotovelos sobre a mesa no instante imediatamente posterior ao que a garçonete colocou à frente dela e de seu acompanhando os pratos com os sanduíches e os dois copos com suco de laranja com gelo & açúcar e perguntou a ela e ao acompanhante se queriam mais alguma coisa e ante as negativas de ambos disse com licença e voltou para detrás do balcão, enfim, não é por fata de fé ou de atenção que a garota não sabe como começar.
Quer falar com Deus ou, ao menos, tentar, mas o gosto na boca é o quem lambeu as costas e o traseiro do diabo e engoliu a saliva. O diabo fazendo hora, como sempre. Ela sabe que até o fim da vida o gosto só vai piorar, mas exerce o seu direito de juntar as mãozinhas, fechar os olhinhos e resmungar qualquer coisa assim supostamente elevada (é, crueldade) para as próprias pálpebras fechadas: de si para si. Não que ela esteja pensando para valer em si mesmo ou em Deus, não, o lance é apenas se concentrar nas palavras e ver se sai alguma coisa desse pseudomonólogo insano e pretensamente deiforme. Então, ela se arrasta ruidosamente de um canto a outro da cabeça, um salão desprovido de janelas onde cadeiras são arrastadas ininterruptamente e pequenos, quase imperceptíveis suicídios são cometidos pelos cantos a cada sinapse desperdiçada na busca por Ela, sim, pela Palavra.
Fora dali (da cabeça da moça), o acompanhante ignora aquela (dela) posição estou-pensando-em-deus-estou-pensando-no-amor e morde o sanduíche como se fosse dar cabo dele em no máximo outras duas abocanhadas similares. E é no meio da segunda mordida (dele) que ela pensa que porra!, não lembro direito da ordem, do que vem depois do quê, de como é que se organiza essa coisa e daí que pode dar errado se eu não seguir o script direitinho, mas foda-se!, lá vai:
Painossoqueestaisnocéusantificadosejaovossonomevenhaanósovossoreinosejafeitaavossavontadeassimnaterracomonocéueopãonossodecadadianosdaihojeperdoaiasnossasofensasassimcomonósperdoamosaquemnostemofendidonãonosdeixeiscairemtentaçãoelivrai-nosdetodomal, AMÉM.
No momento em que ela diz AMÉM, ele, mastigando, pensa AMÉM, e pensa ainda que falar e pensar com a boca cheia são coisas muito parecidas, a voz interior pastosa e ininteligível como seria se a exteriorizasse, sílabas cuspidas com pedaços de hambúrguer e ervilhas feito pequenos anjos verdinhos, e, no que diz AMÉM, ela abre os olhos e o encara.
— Acha que eu faço?
— O quê?
— O sinal.
— Que sinal?
— O sinal da cruz.
— Faz quem quer.
— Não é bem assim.
— Você é católica?
— Sempre quis ser.
— Isso deve bastar.
— Tecnicamente, eu sou.
— Como assim?
— Fui batizada e tal.
— Sua mãe fez questão.
Então, tecnicamente, ela faz o sinal pensando em Jesus esbagaçado na cruz e em crianças e bebês nos braços das madrinhas enfileiradas em direção ao altar e ao líquido benzido e todos berrando que é pra Deus ouvir, e no momento em que ela emnomedopaifilhoedoespíritosantoamém, como era de se esperar: nenhum milagre, nenhuma desgraça no silenciosíssimo quarteirão.
Findo o processo católico apostólico romano, ela se concentra no sanduíche, mas não sem antes atestar que:
— Já me sinto bem melhor.

VERIFICAÇÃO CÍCLICA DE REDUNDÂNCIA

Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, em edição vagabunda comprada uma semana antes numa banca de revistas por míseros doze reais, e nenhuma daquelas palavras, lidas isoladamente ou em conjunto, nenhuma delas significava nada para ela, e, no entanto, comprara o livro e vinha lutando com e contra ele com todo um esforço de imersão, toda uma boa vontade para com aquela que mais lhe parecia uma língua estrangeira, incorpórea, alheia, alienígena.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, sentindo ainda as circunvoluções da própria (de quem mais) boceta (na qual, poucas horas antes, metera o garoto, ou parte dele) e do estômago aparvalhado diante do que logo ocorreria, quando decidiu que trepada, sim, tinha sido boa, e, dadas as circunstâncias, só agora ela viu e viu que era (tinha sido) bom, boa a coisa, e ela pensa que não devia ter chorado — ela pensa que não, e não na frente dele.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando, horrorizada, percebeu que não se lembrava mais do rosto do garoto, do pau dele, sim, mas não do rosto, o rosto que beijara e lambera tanto quanto o pau, o rosto que confundira com uma simples cadeira que por acaso ou por uma piada infame (Deus?) lhe dirigira a palavra de repente (Deus…) para lhe trazer as piores notícias possíveis (Deus!).
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando lhe ocorreu ter gozado junto com o garoto-sem-rosto que iniciara tão sem-cerimoniosamente, o rosto tomado por lágrimas, o coração dele aos pulos e a alma dele como que dependurada no pau feito uma toalha que alguém colocara ali para que ela enxugasse a sua própria; ele, tão novo e tão direto, um atropelo hormonal indeciso entre o clitóris e os grande lábios, atabalhoado, ansioso, mas que a fizera gozar e se esquecer e se lembrar outra vez, agora para sempre.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, e sentiu as pernas estremecerem como se pedissem por mais uma visita do nobilíssimo mensageiro que lhe socara goeladentro as piores notícias e que ela tratou logo de socar bocetadentro como se uma coisa anulasse a outra, como se assim matasse o mensageiro e a mensagem e os visitantes que, bem, ela
estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando o coroa bem-vestido e de cara amarrada e uma garota cujo rosto parecia tomado por todo o enfado do mundo entraram e se sentaram à mesma mesa que o garoto escolhera horas antes e pediram dois sanduíches e dois sucos de laranja, gelo & açúcar, e ela os atendeu e serviu, e a garota, comicamente, uniu as mãozinhas e, após um momento, desandou a rezar.
Estava atrás do balcão, encalhada na página 8 d’O castelo, quando os viu entrando, e sentiu primeiro uma tontura imbecil, e depois uma estúpida e urgente vontade de mijar, a qual não tratou de aliviar, e respirou fundo, fechou o livro e foi até a mesa em que eles se acomodaram e perguntou, voz funda de terror:
— O que vão querer?
Está atrás do balcão, expressão esvaziada na cara, brinca de supergêmeosativar e assume a forma de uma pacatíssima vaca; já que não dá a mínima — o que não quer dizer que não sinta medo ou terror ou mesmo a velha vontade de mijar — e trata de se ocupar traçando linhas, umas sobre as outras, num guardanapo com uma esferográfica vermelha, enquanto pensa que pode ser a qualquer momento, que pode ser no próximo segundo, que pode já ter sido, e quem seria se já tivesse sido!
Mede-se o tempo com a Luz. Ela viu a Luz quando montada no garoto, um pouco antes e um pouco depois.
Seu tempo é mesmo curto, afinal.

PRIMEIRO, RAPIDAMENTE

Lote cercado por pedaços de muro. Lados inteiros caídos para dentro ou para fora, montes de tijolos quebrados, um lixão logo adiante disfarçando o cheiro de mijo e de vômito que ela exala. Ela: ajoelhada no fundo do lote. Acabou de se ajoelhar. A garota em pé logo atrás dela. O coroa sequer saiu do carro e pensa seriamente em acender um cigarro no momento em que é dado o primeiro tiro. No alto da cabeça. Estilhaços de dentes e de crânio voam direto para o chão e para os lados. Colorindo o mundo e a vida. Outros cinco, todos nas costas. A garota dá meia-volta, até o carro e é bye, bye.

AGORA, COM ALGUMA CALMA

No que as pernas não responderam de todo, foi arrastada primeiro para fora da lanchonete, depois para o carro, e de carro até o meio do nada, e, uma vez no meio do nada, para fora do carro, quando se desequilibrou e deu com as fuças direto na terra, e
— Porra!
vomitou um portentoso jato amareloesverdeado justo nos pés da garota que já a puxava pelos cabelos a fim de colocá-la de pé.
Caminhou molemente, empurrada pela garota, olhando estritamente para o chão, os neurônios enlouquecidos a ponto de se ver e sentir atravessando um corredor polonês particularmente ensandecido, uma turba logo acima numa espécie de arquibancada improvisada sobre os restos do muro, vaiando e gritando. Não levantou a cabeça por nada, e a multidão de espectadores só calou no momento em que sentiu o cano da arma no alto do crânio, entendendo que, estourada aquela cabeça que habitava e contra a qual zurrava, ela, multidão, desapareceria também.
Não fechou os olhos.
Arregalou-os até o embaçamento total das vistas, gradativamente cega até o estouro fatal.

UMA FLOR QUE SE ABRE

Uma flor que se abre: para quem observa assim de fora, a impressão é de que a cabeça estoura de dentro para fora, o que é verdade, na medida em que a bala, tendo entrado no topo do crânio, sai detonando a mandíbula e o que mais houver abaixo, numa festa barulhenta de cores e de sons e de líquidos.

GÊNESIS

Os cinco tiros nas costas: nada que os justifique, certo? Não. Imagine a Criação. Tivesse Deus dado conta de tudo no primeiro dia, teria os seis dias seguintes para foder com a coisa toda. Porque, e isso só Deus sabe (e agora eu e você), a perfeição é indecente. Por mais que a Criação tenha inaugurado um processo complexíssimo que, no nosso planeta de merda, redundou, num dado momento, no Homo sapiens.
Então, a garota e a garçonete: duas Homo sapiens. Uma explodindo, a outra sendo explodida. Ambas (convenhamos) não muito satisfeitas com a situação. Daí que talvez seja o caso de rever o termo INDECENTE. No caso específico do que está sendo narrado, INDECENTE seria:

a) o crime (homicídio);
b) a causa do crime (ignorada);
c) o fato de a garçonete, sentada na privada depois de trepar com o garoto limpando a porra deixada nela por ele, ter optado por esperar;
d) os tais cinco tiros, todos dispensáveis (nada profissionais, portanto;
e) T.D.A., incluindo a mais anterior de todas, ou a anterior a todas elas, isto é, a Criação.

GABARITO

Caso o leitor tenha assinalado a letra “e”, estamos conversados, pois é exatamente disso que se trata.

E DO QUE É QUE SE TRATA, AFINAL?

Aquilo de enxergar uma escrotidão desgraçada em tudo e todos. Todos animais. No caso específico do que está sendo narrado: trata-se de NÃO dar o fora, de levar um tiro na cabeça e outros cinco no lombo, de assistir à própria assassina juntar as mãozinhas e rezar antes de comer, de, enfim, celebrar toda a aventura e beleza e grandiosidade humanas inerentes a todos esses momentozinhos.

EM RESUMO

Em resumo, toda a Criação resumida num dedo que aperta o gatilho e numa cabecinha que explode, e

AMÉM

Amém.

E ENTÃO

Seis perfurações de balas, o corpo bem detonado. Especialmente a cabeça, espalhada pelo lugar: um lote abandonado, o muro caíderrubado aqui e ali. Fragmentos de dentes e do crânio perto do muro e no próprio muro, no mato, na terra e pelo ar (respire fundo e tire a prova). As costas muito bem premiadas, cinco furos atrás e um enorme na frente. O tronco grudado no chão de tal forma que não se sabe o que é roupa, o que é couro, o que é carne, o que é terra. Uma mulher. No lugar dos peitos, a tal cratera. Vestido de terceira, deixaram os sapatos: execução. Os joelhos dela, ela se ajoelhou e então BANG, primeiro uma (cabeça), depois cinco vezes (costas). Os joelhos dela e a terra remexida debaixo deles, como se os usasse para cavar a própria cova. Menos de quarenta anos. Traseiro mais ou menos firme. Branca, sem calcinha. Foram profissionais. Longe do centro, de qualquer lugar habitado, próximo de um lixão. O lugar em que ela teve lugar. Um professor de Biologia e sua turma em excursão pouco ortodoxa ou ortodoxa demais pelos dejetos do Ocidente, seus próprios. Um casalzinho desinteressado escapuliu até o lote. Ele chupava os peitos dela, escorados num pedaço de muro, quando ela viu. Um corpo detonado de mulher, pedaços dele e de coisas dele (do corpo) por toda lado: fisiologia ao invés de ecologia. Céus e terra passarão, mas cérebro, sangue, couro e vísceras — não. Claro que ela gritou, e, no que gritou, assustou o rapaz que, assustado em pleno ato de sucção, sugou com mais força do que deveria — o que a fez BERRAR. Ela, com ânsia de vômito, e ele, com os olhos no cadáver e o gosto dos peitos ainda vivíssimo na boca, e ela quase se esquecendo de descer a blusa, pois a turma vinha correndo, o professor atrás pedindo calma gente calma. A polícia chegou meia hora depois de chamada, falou com o rapaz, com a moça e com o professor e depois mandou todo mundo dar o fora. Corpo e coisas transportados para o IML. Enterrada como indigente dias depois. O tipo de coisa que acontece, que todo mundo quer e não quer ver e saber. Evento orgânico em mundinho de plástico.

…………

(*) Conto originalmente publicado na coletânea homônima.

Assis Brasil sobre o "Dia Morto"

Abaixo, o texto que o escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil escreveu para as orelhas de Hoje está um dia morto, meu romance de estreia, agraciado com o Prêmio Sesc de Literatura 2005.

Catherine Anyango

AS IDEIAS E AS FORMAS DE DIZÊ-LAS

Esta ficção trata de um tema bastante comum na vida moderna: a falta de utopias, da qual decorre a ausência de perspectivas existenciais. Não é um reviver clássico do tedium vitae, que vem exemplarmente retratado na náusea sartriana, mas algo mais denso, que engloba não apenas o indivíduo, mas toda a sociedade, minando-a em seus fundamentos e negando-lhe um futuro. A quebra de paradigmas decorrente da queda do Muro de Berlim levou-nos a um grande ponto de interrogação, a ser respondido pela Literatura, mesmo que esta se desvincule do comum das ruas. Aliás, Benjamin já nos demonstra que toda obra literária niilista é, no fundo, um sintoma de grave desconforto social.

Para que isso aconteça, porém, é preciso que seu autor seja um esteta (no melhor sentido da palavra), e que saiba jogar com seus materiais técnicos; tal acontece, de modo visível, em Hoje está um dia morto. Ninguém desdiz que o estilo é o homem, como queria Buffon, mas também é certo que o estilo é o conteúdo (le sujet) da obra. O fundo condiciona a forma. Melhor artista não é o que “escreve melhor”, mas aquele que sabe condicionar sua escritura ao material narrado. Um tema como o deste romance, em mãos inseguras, redundaria num vazio; mas o autor, aqui, consegue captar seu leitor pela sedução da palavra certa e da sintaxe perfeita. Se a vida é seca, também é seca a maneira de contá-la.

Estamos, portanto, perante uma obra valiosa no cenário das letras brasileiras, obra que consegue, sem negar a tradição multimilenária da Literatura, sem experimentalismos inócuos e já exasperantes, abrir novos caminhos para a compreensão da vida, do homem e da sociedade. Mesmo que sejam caminhos intransitivos.

Luiz Antonio de Assis Brasil
Porto Alegre, outono de 2006.

Teatro

teatro

O programa estava perto do fim quando a entrevistadora perguntou à atriz se a atriz usava salto ou rasteirinha e a atriz disse que preferia rasteirinha, mal conseguia andar de salto, era uma tortura, e além disso é bom manter os pés bem perto do chão, não é mesmo?, e elas riram um pouco. Em seguida, a entrevistadora perguntou se ela malhava e a atriz disse que sim, com seu personal, é impossível não malhar, você precisa estar bem consigo mesma e confortável com seu corpo. Foi a última pergunta, e a entrevistadora pediu à atriz que deixasse uma frase ou pensamento ou citação, e a atriz deixou e repetiu quando a entrevistadora pediu, porque era muito profundo e as pessoas tinham que ouvir direitinho e guardar aquilo muito bem guardado na lembrança. A gravação terminou e a atriz agradeceu à entrevistadora e à produtora e ao resto da equipe e todos agradeceram à atriz. Na saída da emissora, a atriz aceitou posar para um selfie com a recepcionista e agradeceu pelo carinho. O taxista olhou pelo retrovisor e a reconheceu e fez alguma piada sobre o beijo gay (ele usou a expressão “beijo lésbico”) protagonizado pela atriz no último capítulo da novela, tanto homem querendo beijar vocês duas e vocês duas lá se grampeando, hein? A atriz era muito boa atriz e conseguiu rir com o taxista, que depois disse não ser muito noveleiro, o comentário morrendo à míngua, entre o banco dianteiro e o traseiro, e a atriz pensou na entrevistadora perguntando a ela sobre os pais, como eles reagiram ao beijo lésbico (ela usou a expressão “beijo gay”), e a atriz respondeu sorrindo que muito bem, eles não têm problema com isso, meu irmão mais novo é gay e todos ceamos juntos no Natal, eu, meus pais, meu irmão e o companheiro dele, e a entrevistadora disse que lindo, que exemplo, que coisa. A atriz pagou pela corrida, agradeceu ao taxista, que lamentou o fato de a câmera do celular estar estragada, e desceu. O hall estava vazio. A atriz entrou sozinha no elevador. Sobre a mesa de centro da sala, o roteiro de um filme cujas filmagens começariam dali a oito dias, no litoral do Rio Grande do Norte. Ela viajaria para lá na manhã seguinte. A atriz descalçou as rasteirinhas, foi à cozinha e se serviu de um pouco d’água. A entrevistadora também perguntou sobre banhos, se ela curtia uma ducha bem gelada no meio do inverno, e ela mentiu que sim, claro, é revigorante, um ótimo jeito de começar o dia. A atriz deitou-se no sofá da sala, ligou a televisão e começou a zapear. Um Jesus Cristo escandinavo era pregado na cruz. Um Adolf Hitler rechonchudo dava um chilique. Um repórter falava ao vivo do CT do Palmeiras. Billy gritava destruir legal, destruir legal, destruir legal, destruir legal. Matt Damon perseguia alguém e era perseguido pelas ruas de Moscou. Um professor universitário discorria sobre o conflito em Gaza para um âncora de expressão abestalhada. O celular vibrou dentro da bolsa que ela deixara sobre uma das poltronas. A atriz não se levantou para atender. Diane Keaton contava para Al Pacino que não tinha perdido coisa nenhuma, tinha era abortado o filho deles. Ela apertou o mute, de tal modo que o tapa de Pacino na cara de Diane não foi ouvido, alcançou o roteiro, abriu na página que deixara marcada e começou a ler ou, como ela disse à entrevistadora, quando estou em casa, gosto de relaxar e estudar os roteiros, de tal modo que a atriz estava ali, em sua casa, relaxada, estudando o roteiro do filme. O filho de um pescador e a menina de família rica. Algumas cenas de sexo. Na praia, por exemplo. Na areia. Os seios vistos de relance. Já fizera na areia? Assim, na vida real? Não, nunca fizera. Podiam ser gays. O filho gay de um pescador e o menino gay de família rica. Mas daí ela não teria o papel, pois interpretaria a menina (heterossexual) de família rica. O telefone voltou a vibrar. Certa vez ela vira a entrevistadora em uma cantina nos Jardins, a entrevistadora ainda não a conhecia, uma atriz iniciante jantando com o produtor e a diretora de seu primeiro filme, ele ansioso para impressioná-las e ela (a atriz) ansiosa para impressioná-lo. A entrevistadora estava com um sujeito alto e muito jovem, e o produtor disse maldosamente que não é o filho dela, não, eu conheço o filho dela, estudei com ele. Ela pediu espaguete à marinara e comeu tudo, depois foi ao banheiro e, enquanto mijava, ouviu a entrevistadora entrar falando ao celular, irritada com a assessora de alguém. A atriz esperou que a entrevistadora desligasse, soltasse uns palavrões e saísse. Quando voltou à mesa, recusou a sobremesa e agradeceu ao produtor pelo jantar e pela chance oferecida. O produtor disse que ela era a pessoa certa para o papel, com o que a diretora concordou. O celular continuava vibrando dentro da bolsa. Ela largou o roteiro aberto sobre a mesa de centro, alcançou a bolsa e resgatou o celular. Era o diretor do novo filme. As filmagens adiadas. O ator que interpretaria o filho do pescador tinha sofrido um acidente nas dunas do Cabo de São Roque. Parecia sério, parecia grave. A atriz lamentou e perguntou se havia algo que ela pudesse fazer. O diretor disse que não e que a manteria informada. A atriz recolocou o telefone na bolsa e voltou a se deitar no sofá. O ator era jovem e bonito e meses antes fora ao mesmo programa e a entrevistadora lhe perguntara sobre como ele mantinha a forma e coisas do tipo, mas não pedira a ele que repetisse a frase ou pensamento ou citação ao final. Sempre correram boatos sobre a suposta homossexualidade do ator e ele começou a aparecer em festas acompanhado por uma outra atriz, com quem ainda passou um réveillon em Angra antes que deixassem de ser vistos juntos, ambos se recusando a comentar o que teria acontecido. A atriz conhecia a outra atriz desde os tempos em que interpretaram papéis secundários em uma novelinha adolescente, as duas em início de carreira, e não hesitou em perguntar sobre o namoro. A outra atriz encolheu os ombros e disse que ele era um sujeito bacana, mas que o lance não tinha funcionado, e foi tudo, mas a outra atriz não era tão boa atriz e a atriz ficou com a impressão de uma impostura, de um teatrinho reles, ou talvez estivesse ficando por demais desconfiada, contaminada por um meio no qual tudo às vezes parecia se resumir a imposturas, a teatrinhos reles. Você está animada para trabalhar com ele?, perguntou a entrevistadora, referindo-se ao ator, ao que a atriz respondeu que é claro que sim, ele é um ator de muita intensidade, muito sério, está há um mês no nordeste, convivendo com pescadores, aprendendo, pesquisando, trabalhando na composição do personagem, e ao dizer isso ela se lembrou das histórias que corriam à boca pequena, festinhas, porres, essas coisas. E agora um acidente nas dunas. Um acidente que parecia sério, que parecia grave. A atriz respirou fundo e se levantou, calçou as rasteirinhas, deixou o apartamento. O elevador vazio. Lá embaixo, perguntou ao porteiro sobre as correspondências, chegou alguma coisa pra mim? O porteiro olhou para ela e sorriu e disse que não, senhora, hoje não tem nada. Ela sorriu de volta e rumou para o elevador, os braços cruzados; a atriz sentia um pouco de frio.

Ao redor e de volta ao começo

Resenha publicada em 26.07.2014 no Estadão.

luminares

Os Luminares é uma espécie de quebra-cabeças que vai se esfarelando. É como se, no decorrer da montagem, perdêssemos o interesse pelo todo da paisagem e nos atêssemos a determinadas peças e conjuntos de peças, a certos recortes. Com suas quase novecentas páginas que se permitem ler sem maiores dificuldades e com enorme prazer, o segundo romance de Eleanor Catton, filha de neozelandeses nascida no Canadá em 1985, transporta-nos para outro continente e outro século, em meio à corrida pelo ouro na Nova Zelândia, no que o leitor é instado a olhar não para o chão, mas para o firmamento.

A autora estruturou a narrativa seguindo parâmetros astrológicos. Cada um dos personagens é associado a um dos signos do zodíaco ou a um corpo celeste. A partir daí, algumas de suas características e seus encontros, relações, conflitos e desencontros obedecem ao plano geral daquela ordenação. Cada uma das 12 partes do livro é introduzida por um mapa zodiacal e os capítulos têm títulos como Vênus em CapricórnioLuz Crescente em Áries e Nó Verdadeiro em Virgem. Não é algo gratuito e tampouco novo: Chaucer estruturou seu poema Troilo e Créssida de modo semelhante.

N’Os Luminares, Catton usa essa formatação para erigir uma história que envolve garimpeiros, prostitutas, chineses, traficantes de ópio, marujos e vários outros personagens, todos direta ou indiretamente metidos em um enredo repleto de fraudes, chantagens, assassinatos e naufrágios. O epicentro é um vilarejo recém-fundado chamado Hokitika, “uma mancha em movimento, que ia e vinha conforme a neblina”, cidade cuja descrição guarda uma similitude com a própria estrutura do romance, posto que, nos dizeres de um personagem, a tradução de seu nome, uma palavra maori, é algo como “ao redor” e “então de volta ao começo”.

Para tentar resumir a intriga, cuja maior parte se dá entre meados de 1865 e 1866, é necessário demarcar alguns eventos de que somos informados na primeira parte do livro, quando o escocês Walter Moody chega a Hokitika com a intenção de prospectar e se depara com uma heterodoxa reunião de (claro) 12 homens. Depois de ganhar a confiança deles contando parte da própria história, Moody é inteirado da morte de um ex-garimpeiro, em cuja residência foi encontrada uma grande quantidade de ouro, do desaparecimento de um jovem e rico empreendedor e de como uma prostituta requisitadíssima foi achada no meio da estrada, sob efeito do que parece uma dose cavalar (ou envenenada) de ópio. Em meio às impressões trocadas, às coincidências e ao mistério, impõe-se a figura ameaçadora de Francis Carver, capitão de uma embarcação que arrancara de um político proeminente por meio de chantagem, com a ajuda de sua parceira, Lydia Wells. O casal é ligado a um sem-número de crimes, e a extensão de sua perversidade é primeiro sugerida, depois explicitada e, por fim, já na parte final (quando acontecimentos anteriores aos do início são abordados diretamente, como a chegada e a cooptação da prostituta, Anna, por Lydia, e a tal chantagem), destrinchada.

Para dar conta dessa constelação narrativa, Catton recorre a uma prosa definida por alguns como “neovitoriana”, altissonante e absorvente. Ao mesmo tempo em que acorrenta o leitor às ramificações e reviravoltas da história, com direito, inclusive, a uma longa cena de tribunal (cujo desfecho chocante envolve um assassinato), a autora aponta para a incapacidade de um esclarecimento completo, seja dos eventos narrados, seja dos personagens envolvidos, seja do próprio ato de contar uma história. Por mais que se debruce sobre o que e como aconteceu e com quem, Catton sempre deixa algo no ar, como se o mistério maior não dissesse respeito aos acontecimentos e, sim, à nossa incapacidade de abraçá-los em sua totalidade. E é justamente essa compreensão da beleza quimérica intrínseca à literatura que faz d’Os Luminares um romance irretocável em sua incompletude essencial.

Da memória à ficção

Resenha publicada no Estadão em 13.07.2014.

Dois novos livros da contista canadense Alice Munro, premiada com o Nobel de Literatura em 2013, chegaram às livrarias brasileiras. Fugitiva é, na verdade, um relançamento, com nova tradução, de uma irrepreensível coletânea de contos. A Vista de Castle Rock é, conforme definido pela autora no prefácio, um conjunto de histórias surgidas a partir de uma pesquisa feita sobre um ramo da família e, em sua segunda parte, inspiradas em acontecimentos de sua própria vida.

Comecemos por A Vista de Castle Rock. Ali, tanto no mergulho na história familiar quanto na reimaginação de sua vivência, Munro externa o quanto “o passado está cheio de contradições e complicações, talvez iguais às do presente, embora habitualmente não pensemos assim”.

As histórias da primeira parte, intitulada Sem Proveito (referência ao Vale do Ettrick, na Escócia, onde seus ancestrais foram pastores), trazem não só os antecedentes familiares, mas também a história da passagem ao Novo Mundo, no começo do século 19, e do assentar-se nele. A narrativa título descreve a viagem de navio, contrastando o velho James (tataravô de Munro), afeito aos causos folclóricos da terra natal e da família (logo, afeito ao passado), compartilhados com quem quer que se disponha a ouvir, e um de seus filhos, Walter, que prefere registrar solitariamente e por escrito a viagem (ou seja, o presente, com vistas ao futuro).

Illinois traz outro deslocamento, agora já no interior da América. O trisavô de Munro, William, “em 1839 ou 1840”, morre de cólera no mesmo dia em que sua esposa, Mary, dá à luz uma menina. Seu cunhado Andrew vai, então, buscá-la em Illinois, e tem início a viagem para o Canadá: “Aqui era tudo chão, era tudo o que você podia achar e fazer e entender sobre o mundo real sob seus pés”. A mudança não se dá sem percalços, e é curioso como, outra vez, eles parecem se referir àquele contraste entre passado e futuro, ir e ficar, mudar e não mudar.

Munro segue discorrendo sobre esses e outros parentes, mais ou menos excêntricos (como o casal de irmãos que passam a viver juntos em As Inexploradas Terras de Morris), pinçando trechos de memórias e outros documentos – a cada geração, alguém da família parece se dispor a registrar o que acontece –, até chegar a seus pais em Trabalhando para Viver. Algumas das melhores páginas do livro estão nessa história, sobretudo quando a autora tenta se aproximar dos pais, vistos com um misto de ternura e estranhamento. Eles criavam raposas e outros animais e comercializavam as peles, até o negócio desandar. Depois, a mãe já doente, o pai ganharia a vida como vigia noturno em uma fundição e também se dedicaria a “escrever reminiscências e a converter algumas delas em histórias”, chegando a escrever um romance sobre os pioneiros.

A segunda parte de A Vista de Castle RockLar, traz aquele esforço reimaginativo, em que memória e ficção se embaralham ao máximo, justo quando Munro se dedica à sua própria vida. Sucede-se, assim, a descoberta da sexualidade e, por decorrência, do outro (em Deitada Sob a Macieira), a vida contrastante dos ricos (em Empregadinha), a angústia pré-casamento ilustrada por um desencontro amoroso vivido pela avó (em O Bilhete), a perspectiva da morte do pai (em Lar) e, por fim, da própria morte (em Para Que Você Quer Saber?).

É claro que esses e outros temas retornam (ou, no caso, já se faziam presentes) nos contos de Fugitiva. Família, memória, sexo, amor, escolhas, desencontros, morte. No conto que dá título ao livro, por exemplo, uma mulher ensaia fugir do marido, envolvendo uma compreensiva vizinha; ao final, temos uma epifania e a sua negação. OcasiãoDaqui a Pouco e Silêncio trazem uma mesma personagem em momentos distintos e mais ou menos excruciantes: o encontro (mediado por um suicídio) com seu futuro companheiro; uma visita aos pais, já com a filha pequena (conto que deveria ser lido em conjunto com Lar, do outro livro); e, por fim, apartada da filha, por decisão desta, e de si mesma. Ofensas adentra o seio de uma mentira familiar e da percepção desta por uma criança, atirada ali com violência. Em Paixão, uma garçonete se envolve com um rapaz rico e é muito bem acolhida em sua família, até o momento em que a gratuidade ou desmotivação de seus atos ganha uma reverberação trágica.

Fugitiva A Vista de Castle Rock são, portanto, ao mesmo tempo distintos e próximos. São distintos em seus pontos de partida, a base factual de um deles assumida logo de cara para, depois, ser melhor subvertida. E eles se aproximam por expressar um mesmo esforço compreensivo, por parte da autora, de si mesma e do mundo que a cerca.

A antipornografia de Jelinek

Resenha publicada em 23.08.2013 no Estadão.

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O romance Desejo, de Elfriede Jelinek, é um dos mais polêmicos da escritora austríaca, agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2004. Quando lançado na Alemanha, em 1989, e a exemplo de outros trabalhos da autora, a reação crítica foi controversa, para dizer o mínimo. Muitos até hoje consideram sua ficção gratuita, doentia ou obscena. Ao conceder-lhe a máxima honraria literária, contudo, a Academia Sueca saudou o “fluxo musical de vozes e contravozes em romances e peças que, com extraordinário zelo linguístico, revelam o absurdo dos clichês sociais e seu poder subjugador”.

Vendo por esse lado, Desejo foi muito bem definido por alguns como um romance antipornográfico: o tom é explícito e não raro escatológico, mas as descrições estão ali para nos lançar a anos-luz de uma qualquer zona de conforto. Elas causam repulsa, não excitação. Não há gratuidade.

A protagonista é uma mulher de meia-idade chamada Gerti. Ela é casada com Hermann, diretor de uma fábrica de papel, e mãe de um garoto. É abusada diariamente pelo marido, descrito como alguém “inescapável como a morte”, que está “sempre pronto para arrancar-lhe o coração, colocá-lo sobre a língua como uma hóstia e mostrar que também o restante do corpo está preparado para o senhor: é o que espera de sua mulher”. A única linguagem conhecida por ele é aquela “que o animal conhece”. As descrições abrasivas falam de opressão; ele “usa e suja sua mulher como o papel de fábrica”.

Com sua prosa febril, Jelinek não distingue o mecanismo machista, reificador, de dominação sexual, da engrenagem fabril que, também gerenciada por Hermann, mastiga os empregados. Nesse sentido, a economia sexual reflete a economia capitalista (o que não equivale a dizer que o capitalismo os tornou assim, por favor), ambas parecem expressões de um mesmo apetite violador, impossível de ser preenchido a contento.

Perambulando pelas imediações de um resort de esqui, bêbada e perturbada, Gerti conhece Michael, um jovem estudante, e entrega-se a ele. Quando volta a procurá-lo, no entanto, ele não só a descarta em favor de uma mulher mais jovem como, auxiliado por um bando de colegas, violenta Gerti a céu aberto. O desfecho do romance, horrendamente familiar, traz ainda outro crime, o pior de todos. Como se trabalhasse em uma devastação em andamento, Jelinek compõe a narrativa em um crescendo brutal. As notas finais são ensurdecedoras.

A imagem de um lugar, interior e/ou exterior, em pleno processo de devastação serve bem à leitura. Se o desenvolvimento do romance é, conforme dissemos, o lento e laborioso desenrolar de uma série de violências, o crime que tem lugar em suas páginas finais atira Desejo para além do discurso meramente anticapitalista ou feminista. Nós nos deparamos com o mal. O ser humano, homem ou mulher, irrompe carregado tanto daquele vazio inexorável referido há pouco quanto de uma qualidade metastática, que a tudo transforma em terra arrasada, os outros e a si próprio.

Grosso modo, correndo o risco de simplificar em demasia o que é proposto, a vida tornou-se uma espécie de doença e o sexo, tal e qual exercitado pelos personagens de Desejo, transformou-se em uma epidemia que resulta em doença e morte, jamais em satisfação.

Em tempos nos quais a literatura soft-porn (ou nem isso) de Cinquenta Tons de Cinza e produtos similares reiteram a vulgaridade dos clichês e o machismo mal disfarçado, Jelinek articula uma reação violentíssima, valendo-se de uma prosa impecável para desnudar o estado degenerativo de nossas relações.

Crônica de devastações

Resenha publicada em 13.06.2014 no Estadão.

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Desde que estreou na literatura com No bosque da memória, agraciado com um prestigioso Edgar Award em 2008, Tana French vem se dedicando a esquadrinhar a fictícia Divisão de Homicídios da polícia de Dublin. Ela o faz alternando os narradores-protagonistas de suas longas e minuciosas narrativas. Porto Inseguro é seu quarto romance, o detetive da vez é o veterano Mickey Kennedy e o crime reverbera de forma perturbadora a crise econômica que assola a Europa e, particularmente, a Irlanda.

O título original é Broken Harbour e diz respeito a uma vila litorânea, outrora povoada por pescadores, transformada em um pretenso condomínio de luxo: Ocean View, Brianstown. Com a quebradeira imobiliária, o lugar se transformou numa desolada cidadezinha-fantasma: “Havia uns poucos carros estacionados, mas a maior parte das entradas de carro estava vazia (…). Dava para se olhar diretamente através de três de cada quatro casas, para ver janelas sem cortinas e nesgas de céu cinzento”.

O crime investigado por Kennedy e seu parceiro neófito, Richie Curran, no tal condomínio é um triplo assassinato: o pai e o casal de filhos pequenos foram mortos em casa, e a mãe, ferida gravemente. As crianças foram sufocadas em suas camas; os adultos, esfaqueados na cozinha. As circunstâncias que envolvem a tragédia são agravadas pelo fato de que, meses antes, o pai havia perdido o emprego e vinha se dedicando, com obsessão crescente, a caçar um animal que estaria pelo sótão e mesmo pelas paredes da casa. Desnecessário dizer que as finanças familiares estavam esgarçadas. Além disso, um amigo de outra época estaria usando uma das inúmeras casas inacabadas e/ou abandonadas do condomínio como base para espioná-los.

O passado diz muito das escolhas feitas por Kennedy no decorrer da investigação. Muitos anos antes, ele, os pais e as irmãs costumavam passar as férias em Broken Harbour. A mãe era uma mulher devastada pela depressão. Ao final de um daqueles verões, quando Kennedy estava com 15 anos, “ela estava mais feliz do que nunca. Só fui saber o motivo depois. Ela esperou até a última noite das nossas férias para entrar mar adentro”. O suicídio da mãe ecoa sobretudo na irmã caçula, Dina, que sofre da mesma doença e, agora, não reage bem à investigação na qual Kennedy trabalha.

Perturbado pelo trauma causado pela desaparição da mãe, os surtos da irmã e o crime com o qual tem de lidar, o protagonista precisa se movimentar por um cenário arruinado, em que vivos e mortos só lhe trazem perguntas difíceis e respostas impossíveis, se e quando trazem. Com isso, Porto Inseguro transcende a mera investigação (ainda que esta seja descrita nos mínimos detalhes) para se colocar como uma crônica de devastações presentes e pretéritas.

No desfecho, o consolo e a resolução relativos ou possíveis (dadas as circunstâncias) alcançados por Kennedy guardam, ao menos, o sentido original de Broken Harbour: o nome viria de breacadh, “o romper do dia”. Como sabemos desde as páginas iniciais, o lugar não existe mais. Exceto, é claro, interiormente.