Antes de dormir

Antes de dormir

Trecho do meu romancemprogresso.

ceu-estrelado

As coisas trazidas aleatoriamente pela conversa à mesa do jantar se interpuseram entre Cristiano e o sono. Deitado na cama, a mesma cama de outros tempos, aqueles tão falhamente evocados, percorreu de novo alguns dos tópicos da conversa, procurando se aproximar do que assinalavam, fosse o que fosse.

*****

Era a mãe quem o acompanhava naquela noite em que, orgulhoso da jaqueta nova (a que se referia como “japona”), descuidou-se da calçada maltratada da rua José Delfino (foram visitar uma prima da mãe na Cel. Vicente Miguel e deixaram o carro por lá, optando por caminhar uns poucos quarteirões até a igreja), tropeçou e deu com a testa no chão. A mãe se abaixou de imediato, trazendo-o para junto de si, virando o corpo enrijecido pelo susto, assoprando a testa que inchava, o corte deitando sangue, ele agora sentado na calçada, afinal livrando as mãos dos bolsos da japona. Era a mãe, embora Lázaro tivesse se colocado no lugar dela ao relembrar o acontecido, ia com ele para a missa, tinha o quê?, cinco, seis anos, não, não ia, era a mãe, o pai restringia as idas à igreja às datas festivas (Páscoa, Natal) e fúnebres (missas de corpo presente, missas de sétimo dia), e aquela não era uma data fúnebre ou festiva, mas um domingo qualquer, em que Lázaro permanecera em casa, sentado diante da TV, as pernas esticadas, o pai, avô de Cristiano, resmungando de sua poltrona surdamente próxima do tubo, não viveria muito mais, o velho. A mãe, ela o levantou. Voltaram ao carro, foram ao hospital, o ferimento limpo, dois pontos, a médica sorrindo e dizendo que podia ser pior, a médica que depois assinaria o atestado de óbito da mãe, que depois cederia o apartamento goianiense para Cristiano, você podia ter caído de boca e arruinado os dentes, os lábios, o nariz, seria bem pior, muito mais doído, mas você foi esperto, não foi?, sim, ele fora, oferecendo ao chão o que tinha de mais duro, mais resistente, inquebrável até, o rapazinho mais corajoso e esperto que eu já vi, disse a médica, muito espero, muito corajoso. Não voltaria a usar a japona; os respingos de sangue a inutilizaram.

*****

Soube do suicídio de Jonas no pátio da escola, em pleno recreio. Os colegas de sala, quatro ou cinco deles, formavam uma roda e falavam de futebol, quando outro se aproximou, o elo eletrificado de uma corrente que tinha estourado lá dentro, nos corredores, olhos arregalados, perguntando se estavam sabendo. Sabendo do quê? A notícia de um suicídio não era incomum na cidade. As pessoas se matavam o tempo todo em Silvânia. Mas, exceto por um parente da mãe, um tiro no peito ao descobrir que o filho da esposa era de outro, e pela professora do jardim de infância, que ensinara Cristiano a colorir com menos força e mais precisão e que se enforcara com um cinto amarrado à grade da janela do quarto (coisa muito comentada, muitos julgavam impossível se enforcar daquela maneira, a uma altura tão baixa, as pernas dobradas, os joelhos quase tocando o chão), ninguém assim próximo de Cristiano integrava, até então, as estatísticas. Ele ficou em silêncio, os braços cruzados, enquanto os colegas comentavam que, em se tratando de Jonas, louco como era, um troço daqueles era até esperado.

*****

O vereador teria dito que a mulher do dono da loja de tecidos sorria feito uma puta (Cristiano tentou imaginar o traço distintivo do sorriso de uma puta, sem sucesso) ao deixar o motel com o funcionário do Banco do Brasil, no carro dele, em plena luz do dia. Segundo Marta, ela fora expulsa de casa e, não tendo outra opção, vivia de novo com a mãe, em Pires do Rio. O dono da loja de tecidos teria dito que mataria o funcionário do Banco do Brasil, mas este, a despeito das ameaças do marido traído e dos comentários e risinhos e gozações das outras pessoas, levava a vida de sempre, atendendo os correntistas das dez às quinze, jogando futebol às terças e quintas (era um zagueiro relapso no time dos solteiros) e bebendo cerveja de terça a domingo, na AABB e em outros locais, às vezes sozinho, às vezes acompanhado, mas sempre em grande quantidade.

*****

O carro capotou. Estava a uma velocidade absurda, disseram, e capotou em algum lugar entre Caldas e Vianópolis, os dois ocupantes mortos ali mesmo, um deles atirado para fora, noite adentro, o outro esmigalhado ao volante, o peito afundado, uma das pernas seccionadas. Ex-colegas de escola de Cristiano. Mesas de boteco, também. Mas não os via ou falava com eles havia dez anos. O carro ganhando vida e, aliando-se ao asfalto, insurgindo-se contra as mãos bêbadas que o conduziam.

*****

Lázaro e Cristiano caminharam estrada acima e depois entraram no pasto. A noite estava muito clara. O pai apontou para o céu, um ponto específico, e disse que o cometa era aquilo lá, está vendo? Bem ali? Cristiano olhou, mas não conseguiu divisar nada. Estrelas, pontos brilhantes, mas qual deles era o Halley? Está vendo?, o pai perguntou, braço ainda esticado. Cristiano sentiu vergonha e disse que sim, estava vendo. É bem bonito, pai. Bem bonito mesmo.

*****

Deitado ali no escuro, estendido na velha cama de solteiro, sem que tivesse um corte aberto na testa, sem que estivesse à beira do córrego e prestes a se matar, sem que fosse um marido corneado ou a mulher exposta e alijada de casa e da cidade ou o reles bancário em sua vidinha nula e alcoolicamente afogada ou o vereador ansioso por ver e contar, sem que fosse atirado para fora de um carro que capotava ou destroçado dentro do veículo, com o veículo, sem que olhasse para o céu estrelado, na esperança de testemunhar um evento cósmico e não visse nada além do mesmo céu de todas as noites, Cristiano levou as mãos ao rosto e sentiu e pensou que cairia no choro, mas isso não aconteceu. Ficou ouvindo o vento lá fora, e era como se as árvores caminhassem ao redor da casa, velhas e pesarosas.

Adobe

Excerto do meu romancemprogresso.

adobe

Pai e filho permaneceram ali por mais um tempo. Mais notícias de conhecidos, o refrão separando cada uma das estrofes da conversa. Então, Lázaro perguntou se ele não queria dar uma volta pelo terreiro. Encheram e levaram os copos consigo. Ziguezaguearam por entre as árvores, olhando ao redor, para baixo, o chão, a terra úmida, quando entrevista nas falhas do tapete de folhas e frutos apodrecidos, machucados. Logo seria noite. Desceram à meia-luz até o córrego. Era o mesmo e não era, claro. Alguns metros dele cobertos por uma densa vegetação, as árvores debruçadas sobre a margem e parte da água formando uma espécie de cabana ou tenda. Cristiano costumava se esconder ali quando criança; deitado na areia, cochilava ao som da água corrente a um braço de distância. Era uma faixa de areia escura de uns dois metros por três, se tanto, escondida do mundo. Quando chovia muito, ficava submersa, os galhos das árvores mergulhados no córrego, como se tivessem perdido alguma coisa e procurassem ali dentro.
Quando voltaram à cozinha, Cristiano perguntou por Marta. — Foi à cidade — respondeu Lázaro. — Mas já deve estar voltando. Quer tomar um banho? Descansar um pouco? Seu quarto continua no mesmo lugar. A gente trocou o guarda-roupa, as cortinas, os criados, mas a cama é a mesma.
— E por que não trocaram a cama, também?
— Parecia inteira. Achei melhor não trocar.
Cristiano atravessou a casa, sala de TV, corredor, outra sala, saiu pela porta da frente e caminhou até o carro. Quase noite agora. Pegou a mala que deixara no banco traseiro, depois olhou ao redor e respirou fundo. O céu estava escuro logo acima de sua cabeça e avermelhado no horizonte, um vermelho-escuro, meio sujo. Imaginou uma divindade pagã atraindo o sol para detrás das montanhas e o degolando lentamente, com uma lâmina cega. O muro de adobe que margeava um pedaço da propriedade também não existia mais. A história é que fora erguido pelos escravos. Mesmo quando era criança, ele se lembrava, restava apenas um pedaço, a alguns metros daquela mangueira, passando por onde agora estava a garagem e dali até o começo do terreiro. Ele se sentava no muro e lia gibis. Era um muro baixo e carrancudo, que originalmente circundava o casarão, o primeiro, derrubado pelo avô tão logo adquirira as terras, mais de meio século antes. Não gostava da localização da casa e optara por construir outra, abaixo da mangueira em vez de ao lado, num terreno um pouco mais plano. Por algum motivo, quando da construção, deixara intacta parte do muro. A nova casa era aquela em que Cristiano crescera. E que Lázaro reformara e, havia pouco, os dois sentados à mesa da cozinha, dissera ser dele também. Não sentia que fosse, embora não duvidasse da sinceridade do pai. O que faria se assumisse a fazenda? Talvez desfizesse o que o pai e o avô fizeram, colocasse abaixo a nova casa e reconstruísse a original, ou construísse outra mais ou menos por ali. Quanto ao muro, entretanto, não haveria nada que pudesse fazer. O muro erguido pelos negros, havia dois séculos ou mais. Erguido e depois derrubado, como se não fosse importante, ou como se devesse ser esquecido. Apenas um muro velho e inútil. Seus restos. Os restos de um muro circundando uma casa que não estava mais lá, que já não existia, que fora derrubada. Um cadáver estendido ao redor de um fantasma. Cristiano balançou a cabeça, sorrindo com tristeza. Colocar abaixo, erguer. Reformar. Coisas desfeitas e feitas e refeitas para ocupar o tempo ao mesmo tempo em que o sinaliza. Olhou uma última vez na direção do horizonte. Em seguida, fechou a porta do carro e voltou para dentro da casa.

Odisseia mundana

Resenha publicada em 29.10.2014 no Estadão.

hosana

O romance Hosana na Sarjeta, de Marcelo Mirisola, não é bem uma história de amor, claro, mas uma odisseia mundana que, embora não tenha uma Ítaca à vista, traz de volta aquele inconfundível narrador-protagonista e, com ele, um par de “sereias”. Dada a intensidade com que ele se envolve com essas duas mulheres, e tendo em vista os desdobramentos disso, custa a crer que o amor não seja algo como uma experiência de quase morte. Não por acaso, depois de sobreviver a si mesmo outra vez, o narrador afirma: “A vida fisgada pela morte. Resumidamente, esse é o enredo das histórias de amor”.

Por outro lado, ou nem tanto, também estamos diante de um longo processo de aceitação da irredimível solidão, uma solidão “crua e óbvia”, do “nosso erro em estado de urgência”, que constitui esse personagem.

Ele conhece Paula na porta da boate Kilt (que não existe mais), no centro de São Paulo, e a confunde com uma prostituta. Ela desfaz o mal-entendido (para, irônica e inadvertidamente, reinstaurá-lo, já no terço final do romance) e, a despeito da breguice (leitora de esoterismos e bobagens variadas) e do “chapéu de poodle que ela aninhava em cima da carapinha oxigenada”, ele se apaixona por ela, alguém que “absorvia os despojos e as esperanças de quem as solicitava, engolia tudo”.

Ariela, por sua vez, era “o oposto vertiginoso de Paulinha”, um “compêndio de todos os meus pontos fracos”, uma “Lolita avançada tecnologicamente” que “carregava um potencial de destruição visível, mas sabia escamotear o mal atrás de uma cumplicidade que não oferecia perigo iminente”, mãe, casada com um “príncipe” de quem, eventualmente, apanhava e com quem morava, “de favor”, na casa da sogra, em Guarulhos.

Lançado entre uma e outra, mas jamais inteiramente com uma ou outra, Marcelo, o protagonista, enxergará a própria mentira na mentira alheia (e vice-versa, num espelhamento infinito), constituindo, no fim e a muito custo, uma verdade desoladora. Tal verdade não diz respeito propriamente à impossibilidade do amor (até porque “lá no fundo de sua escrotice, o animal agoniza, gosta e ama de verdade”), mas, antes, à aceitação daquela solidão em toda a sua crueza.

Hosana na Sarjeta coloca-se entre os melhores trabalhos de Mirisola (O Herói Devolvido, Bangalô) e sinaliza um interesse real ou, melhor dizendo, uma urgência pelo outro, sobretudo quando ele não está mais lá. Nesse sentido, a despeito do humor insano de algumas passagens, é também um romance desarvorador.

Harris, Foley

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James B. Harris foi sócio de Stanley Kubrick e produziu O Grande Golpe, Glória Feita de Sangue e Lolita. Depois que a parceria acabou, Harris enveredou pela direção. Foram cinco longas entre 1965 (O Caso Bedford) e 1993 (Boiling Point). Gosto particularmente de Cop (1988), com James Woods acordando a filha pequena para, animadamente, falar sobre os casos escabrosos em que trabalha. A mulher eventualmente o abandona, levando consigo a criança, é claro, e Woods está livre para perseguir um assassino em série. É um filme seco, com um protagonista desagradabilíssimo (Woods em seu melhor), aferrado ao gênero, que ecoa Don Siegel e é encerrado com uma fala tão estupidamente boa que anula o clichê polícia vs. bandido de sua sequência final. O roteiro é chupado de um romance de James Ellroy (Sangue na Lua, o primeiro de uma trilogia com o personagem), adaptado pelo próprio Harris. Vi pela primeira vez há uns vinte anos, na Globo, com o título Um Policial Acima da Lei. Gravei quando reprisaram.

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Ao contrário de Harris, James Foley segue na ativa (dirigiu vários episódios de House of Cards), mas acho que o seu melhor está em 1985, no segundo longa que realizou. Caminhos Violentos (At Close Range) é baseado numa história real, sobre o pai criminoso (Christopher Walken) primeiro acolhendo o filho (Sean Penn) debaixo de suas asas e depois cobrando um preço alto demais por isso. O que torna esse filme realmente estupendo é a incontornabilidade que comporta. Não há redenção, fuga ou decisão eticamente aceitável que afaste ou atenue a violência. A hybris paterna carrega uma brutalidade poucas vezes vista. O pai se aproxima, seduz, devora. A tela larga, preenchida com paisagens rurais, sugere uma imensidão que escapa aos personagens. É como uma promessa que não se cumpre. Ou uma mentira.

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Artesão da memória

Resenha publicada em 17.10.2014 no Estadão.

 

A certa altura de Minha Vida sem Banho, novo romance do paulistano Bernardo Ajzenberg, lemos (e peço desculpas pela citação um tanto longa): “Penso muito na paciência e na perseverança dos maratonistas ou na calma e autoconfiança dos nadadores de longos percursos, aquelas pessoas que avançam devagar numa piscina, indo e voltando, sempre cientes de que chegarão ao seu destino, mantendo a velocidade e o ritmo das braçadas, sabendo que cumprirão aquilo que tinham se proposto fazer”. Creio que essa descrição também vale para o estilo do autor. Por mais que esse não seja um romance longo (189 páginas que se permitem ler com extrema fluidez), ele, contudo, aprofunda-se em temas tão díspares quanto o ambientalismo, o mais recente período ditatorial brasileiro e o holocausto.

Em sua estrutura, alternam-se três vozes: Célio, funcionário de um “instituto” que luta pela preservação do meio ambiente; Débora, namorada de Célio, em viagem para Manaus; e Wiesen, amigo dos pais de Célio, Waisman e Flora, sobre os quais discorrerá a fim de esclarecer, até onde for possível, alguns segredos inerentes à sua longa relação.

O mote da obra é a decisão tomada por Célio de não tomar mais banho, e que, embora intempestiva, não é gratuita: além das razões ambientais, explanadas com cuidado, há outras, não exatamente mensuráveis, mas que dizem respeito à sua vida, descrita como “um riacho franzino que passava sem graça por um terreno de mata descolorida”. Ele e Débora se desentenderam antes que ela embarcasse para Manaus. Agora, à distância, ela investe, por e-mails e cartas, num furioso e desesperado diálogo de surdos, buscando compreendê-lo e a si própria.

O terço narrado por Wiesen diz respeito, primeiro, ao seu passado e ao de Waisman como militantes contrários à ditadura militar brasileira, e depois, ou paralelamente, no que inclui Flora, ao triângulo amoroso que eles mantiveram por décadas. Waisman é um personagem particularmente conflituoso, e em sua constituição (ou também como elemento desagregador) está o fato de que seu pai era um refugiado austríaco, judeu, que escapara por pouco do genocídio nazista. Desiludido com os ideais revolucionários que nortearam um bom pedaço de sua vida, Waisman se entrega a uma extensa pesquisa sobre o holocausto, como “se estivesse preparando a defesa de uma tese acadêmica”. Flora, colocada entre os dois amigos, é uma espécie de centro irradiador de perturbação; diagnosticada com câncer, opta por não fazer nenhum tratamento, entregando-se à doença e à morte.

Ajzenberg articula muito bem essas diversas vertentes narrativas, com a paciência e a perseverança dos maratonistas, indo e voltando no tempo. Ele jamais se perde nas ramificações, mas trabalha para que elas convirjam no desfecho, quando, inclusive, a própria estrutura do romance é, por assim dizer, justificada. Assim, mesmo relatos paralelos, como aqueles sobre o pai de Waisman ou acerca de um jornalista que também se colocou em rota de colisão com a ditadura, Koichiro, são passagens de enorme força narrativa, capazes de iluminar momentos históricos distintos e tão sombrios quanto essenciais para compreendermos melhor os personagens. Noutras palavras, é o cuidado artesanal do autor que impede o romance de se dispersar, garantindo sua coesão e seu impacto.

Articulado dessa forma, pela convergência das vozes que o constituem, pelo alinhavar de experiências e vidas diferentes entre si, mas complementares na medida em que se iluminam umas às outras, Minha Vida sem Banho reinveste a memória e a imaginação da força que, às vezes, parecem perder; elas são, afinal, os ingredientes da melhor literatura e, consequentemente, o antídoto contra a ensurdecedora derrisão da barbárie.

 

Beleza idiossincrática

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O pintassilgo, de Donna Tartt, ganhou o Pulitzer, mas não a unanimidade crítica. Teve o que os garçons do Village chamam de mixed reviews. Até aí tudo bem. O problema é quando fica muito claro que alguns desses resenhadores não percorreram todo o caminho. Quer dizer, o livro não é salingeriano (o narrador é adolescente durante o quê? Um quarto das setecentas e poucas páginas do calhamaço?) ou dickensiano (ele perde a mãe e depois o pai, mas boa parte dos percalços pelos quais passa é fruto de suas escolhas; noutras palavras, é um moleque viciado, ladrão e inconsequente, que depois se transforma num fraudador, para não dizer mais — e incorrer em spoilers), não é ou quer ser “fácil” e nada tem de “autoajuda”: “(…) ninguém, nunca, jamais, vai conseguir me convencer de que a vida é uma coisa incrível e gratificante. Porque, esta é a verdade: a vida é catástrofe. O fato básico da existência — de sairmos por aí tentando nos alimentar, encontrar amigos e o que quer mais que façamos — é catástrofe” (p. 715). Acho saudável encarar o romance (qualquer romance) como uma pessoa, um alguém em vez de um algo. A “pessoa” em questão é idiossincrática, neurótica, ela se arrasta quando quero que corra, ela se cala quando preciso que fale, ela fala quando deveria calar a boca. Boa parte de sua beleza deriva dessa inconformidade, dessa despreocupação quanto aos limites, quaisquer que sejam, feito uma visita que se comporta mal, mas da qual não conseguimos nos livrar porque ela também sabe ser encantadora. Passagens estupendas (o atentado, a viagem de Vegas a Nova York, o confronto em Amsterdam, o longo acerto de contas com Boris, em que até mesmo O idiota, de Dostoiévski, e uma discussão sobre o mal se fazem presentes) são assim estabelecidas justamente pela desmedida da narração como um todo, pelos riscos que Tartt assume em sua falta de comedimento, em sua paixão pelo que está sendo contado ali, naquele momento, e depois, e depois, e depois. O pintassilgo é um romance em que os traços se sobrepõem, mas não conseguem (nem intentam) esconder o abismo sobre o qual os personagem se equilibram, e nós com eles, “rindo na fúria santa”. Parafraseando um trecho (p. 714) que se refere à pintura de Fabritius que lhe empresta o nome (e o mote), o romance olha para nós; não há moral, há apenas um duplo abismo — entre a autora e o romance; entre o romance e nossa experiência com ele. Esse duplo abismo remete ao abismo maior, entre o mundo e a nossa experiência com ele. Aqui, não há equilíbrio possível. Mas há (pode haver) beleza.

A suíte de Ali

Resenha publicada em 11.10.2014 no Estadão.

Ali-Smith-007

No coração da premissa que anima Suíte em Quatro Movimentos, quinto romance da escocesa Ali Smith, jaz um pesadelo: o casal Genevieve e Eric Lee tem o hábito de organizar um “jantar alternativo anual” em sua mansão localizada no bairro de Greenwich, em Londres: “eles gostavam de convidar pessoas que fossem um pouco diferentes das pessoas com quem eles normalmente falavam, bem como os amigos que viam o tempo todo”, porque achavam “interessante dar uma variada” recebendo, por exemplo, um casal muçulmano, ou um palestino, ou, como é o caso do jantar que precipita a narrativa, um gay. Ocorre que, dessa última vez, “estava um homem que, entre o prato principal e a sobremesa (…), subiu as escadas e se trancou num dos quartos” para não sair mais.

O pesadelo, no caso, é o jantar em si, narrado minuciosamente na segunda das quatro partes do romance, um redemoinho interminável de filisteísmo, no qual uma convidada particularmente lesada chia sempre que falam de arte, outro descreve os microdrones produzidos pela empresa em que trabalha e vendidos à polícia como brinquedos e eles mal esperam que o convidado da noite deixe a mesa momentaneamente para cometer indiscrições, falando sobre o suicídio de sua mãe. O mal-estar provocado por essa conversa desgovernada, maldosa e de ecos fascistoides é tamanho que não chega a surpreender a decisão daquele convidado de se trancar no quarto. Ele permanecerá ali, atraindo a atenção da mídia e de uma multidão de curiosos e oportunistas variados.

Em suas quatro partes ou “movimentos”, o romance evita abordar diretamente Miles, o personagem recluso. Assim, nós o entrevemos por meio de outras pessoas: uma conhecida com quem estivera numa excursão pela Europa, décadas antes; o amigo gay que o arrasta para o tal “jantar alternativo anual”; uma senhora de idade, enferma, que ele costumava visitar; e, por fim, uma garota de dez anos de idade, filha de um casal de acadêmicos, que consegue estabelecer uma relação de proximidade com ele e decide escrever sobre “um homem num quarto que fica no quarto e nunca sai”, ao que o pai dela comenta: “Que história mais virada do século”.

De fato, Smith transpõe sem muita sutileza (o que, nesse caso, não é ruim) a estupefação experimentada por qualquer pessoa com um mínimo de discernimento quando confrontada com a estupidez que escorre das situações mais banais. Ela o faz com sua prosa inventiva, repleta de jogos verbais, trocadilhos e rimas muito bem traduzidos por Caetano W. Galindo, sobretudo quando ligada à personagem da menina. Na verdade, pela maneira como se aproxima dessa personagem em particular, é como se a autora sugerisse que todos nós deveríamos nos distanciar do mundo por um momento, a exemplo de Miles, procurando uma reaproximação ulterior, ancorada em questionamentos tão simples quanto essenciais, como faz a garota. Seria como voltar a encarar a realidade com os olhos limpos de uma criança, mantendo a fé na palavra como uma via imperfeita, mas a única de que dispomos, para nos situarmos em um mundo tão conflagrado quanto absurdo.

Chandler

Raymond-Chandler

“Raymond Chandler (1888-1959) é, ao lado de Dashiell Hammett, um dos alicerces da literatura noir norte-americana, especialmente no âmbito do que se convencionou chamar de hard-boiled. Espécie de subgênero, o hard-boiled é muitíssimo bem representado por personagens como os detetives particulares Sam Spade (criação de Hammett) e Philip Marlowe (concebido por Chandler). Nas narrativas protagonizadas por esses dois, o que muitas vezes importa não é tanto a solução dos mistérios e assassinatos que se vão acumulando pela trama afora, o popular whodunit (ou “quem fez isso?”), mas a caracterização de uma atmosfera corrupta, repleta de opressão, incerteza e brutalidade.”

Escrevi sobre um dos meus autores prediletos para a edição de hoje do Estadão. Leia AQUI na íntegra.

Todas as coisas doces demais

Um conto natalino, escrito há uns dois ou três anos.

Natal

Para a Caroll.

……

The waiting drove me mad
You’re finally here and I’m a mess

Pearl Jam, Corduroy.

Algo precisava ser dito, mas talvez já fosse tarde demais.
Estavam à sombra, ele sentado observando uma mulher gorda que passava com um golden retriever e ela deitada de costas, os olhos bem abertos. Estavam ao mesmo tempo muito próximos e a uma enorme distância um do outro. O céu começava a fechar, o cinza-concreto aos poucos preenchendo tudo.
— Vai chover — ela disse, embora não acreditasse nisso. As nuvens que via não eram tão escuras ou carregadas. — Não sei. Talvez mais tarde.
Ele permaneceu calado. A mulher e o cachorro desapareceram na distância e ele já não fitava nada em particular. Com um gesto, levou a garrafinha de água mineral à boca e tomou um gole, depois outro; reteve o terceiro e, virando o corpo, debruçou-se levando a boca até a dela. No momento em que os lábios se tocaram, ela abriu a boca e, em seguida, ele também. A água desceu direto, um gole inteiro, e então eles se beijaram prolongada e ruidosamente.
— Isso foi bom — ela disse quando o beijo terminou. Ele voltou à posição anterior; ela continuou deitada. — Eu estava pensando.
— No quê?
— Acho que não quero tomar hoje, não.
Virou um pouco a cabeça e fitou as pernas dela, esticadas. — Por quê? — perguntou. Os joelhos ou os pés talvez soubessem. Ou a grama ali debaixo. — Pensei que a gente fosse tomar junto.
— Não sei. Hoje é domingo. Sei lá.
Ele levantou a cabeça, voltou a olhar para frente. O parque se esvaziava. Respirou fundo, pensando na viagem de ônibus no dia seguinte. Ir embora. Não ter vindo.
— Eu vou tomar — decidiu. — Você se importa?
Agora o céu restava inteiramente concretado. Ela fechou os olhos, virando a cabeça para o lado como se tentasse pegar no sono. O vento frio parecia vir a meio centímetro do chão, deslizando. Se eu me importo? Abriu os olhos. As costas dele ao alcance da mão esquerda. Pensou em acariciá-las, mas não se mexeu. Chegou a ver a mão percorrendo os ombros, a coluna. Não. A mão pequena e muito magra e branca, as costas largas, a camiseta amarela. Não, não. Odiava aquela camiseta amarela. Solar. Olhou para cima e sorriu para a ausência do sol. O espaço deixado por um e não preenchido pelo outro. Por nada, por ninguém. Coisa alguma.
— Se você for tomar, eu também vou.
Não pensou no que dizia até ser tarde demais. Por que eu me importo? Sentou-se quando ele levou a mão a um dos bolsos e puxou a carteira. Porra. Estava ali dentro, ela sabia.
— Fica — ela disse, forçando um sorriso. — Vai ter doce.
Um quarto do troço dividido entre os dois, depois ele guardou o resto na carteira e a carteira no bolso, dois gestos tão rápidos que ela mal pôde acompanhar. Quase que um só gesto. Sim, um só gesto maior, mais extenso, dividido em dois gestos menores.
Ela voltou a se deitar.
Concreto armado sobre as nossas cabeças, pensou. Fechou os olhos. Concreto armado prestes a despencar. Ele permaneceu sentado. Uma chuva de concreto arrebentando quem estivesse no caminho. Ela o ouviu respirar fundo mais uma vez.
— Acho que não vai chover agora — disse.
Ele concordou: — É. Acho que não.
Então, eles esperaram por quase uma hora, mas o troço não bateu.

O que eles disseram (enquanto esperavam que o troço batesse) quando já era tarde (ou cedo) demais —
(ela) eu estou aqui por você;
(ele) eu sei, mas;
(ela) mas o quê?;
(ele) eu não sei, eu;
(ela) eu estou aqui, mas e você, onde é que você está?;
(ele) eu não sei onde é que eu estou, e esse é o problema;
(ela) mas eu estou aqui (por você), e isso devia bastar (por enquanto);
(ele) eu não estou pronto, eu não sei (eu não sei);
(ela) pois é. a desgraça é que eu sei. eu sei muito bem. eu sei direitinho;
(ele) então me diz o que é;
(ela) você também sabe. você finge que não, mas eu sei que você sabe, e eu sei que você sabe que eu sei;
(ele) (olhando para cima) acho que vai chover;
(ela) já tá chovendo. cala essa boca.

Algo foi dito, e então era tarde ou cedo demais.
Eles resolveram ir embora, muito próximos e a uma enorme distância, e só quando chegaram à Paulista tomada por uma horda de corinthianos é que começou a bater. A avenida sangrava luzes natalinas de uma ponta a outra e o colorido tornou-se ensurdecedoramente intenso. O vermelho e o amarelo, ela parecia senti-los por sob a língua, derretendo, e era como se tudo brotasse de seus próprios globos oculares, como se fossem emanações deles, ondas e mais ondas indo e vindo, escorrendo, arrastando-se pelos concretos acima e abaixo, céu e asfalto.
— Caralho — disse. — Acho que bateu.
— Bateu? — ele sorria.
— Caralho. Nossa. Bateu, sim. Caralho.
Seguiram pela calçada, lerdos e imprecisos. Na esquina com a Pamplona, viram um policial montado. Ela se aproximou. O cavalo era de um marrom borrado, como se tivesse sido colorido por uma criança manuseando um giz de cera sem ponta. As mãos brancas e finas acariciaram de leve o animal. Perguntou qual era o nome dele.
— Conhaque — respondeu o policial.
Aquilo era realmente engraçado, um cavalo chamado Conhaque. Ela começou a rir bem alto e ele a puxou, seguiram viagem.
Ainda estava rindo, e agora ele também, quando, uns poucos quarteirões acima, um moleque se aproximou pedindo que pagassem um lanche. O amarelo de um McDonald’s resplandecia à direita e, sem pensar, ela entrou na lanchonete. As cores todas pareciam recém-inventadas e se movimentavam à sua frente, efusivas. Fez o pedido o mais rápido que pôde, o amarelo caindo sobre ela feito uma falange de espartanos. Aquilo não era jeito de ver as coisas. Era cansativo e exigente demais. Talvez se eu fechar os olhos. Entregou o lanche para o moleque, ouviu um agradecimento distante e saiu da lanchonete.
Ele esperava lá fora, na calçada. Por alguma razão, sentiu-se decepcionada. Por que você ainda está aqui? Por que você veio? Dois sistemas autônomos, isolados, incomunicáveis, inintercambiáveis: próximos e distantes ao mesmo tempo.
Voltaram a caminhar, a calçada apinhada de outros sistemas isolados. Não entrem naquele McDonald’s, ela pensou em dizer a todo mundo em quem esbarrasse dali até a Augusta, e pela Augusta abaixo, até a Dona Antônia, não entrem no maldito McDonald’s, aquele amarelo é capaz de matá-los. Os globos oculares explodindo ou implodindo, um pipoco seco e já era – não vejo mais, nunca vi nada. No entanto, olhou para o lado. Ele caminhava cabisbaixo, as mãos enfiadas nos bolsos da bermuda. Por que ainda te vejo aqui? Aqui, comigo? Não. Como se você estivesse aqui. Não, não. Seu grandessíssimo filho-da-puta.
Dobraram à direita na Augusta e desceram em silêncio até a esquina com a Antonio Carlos, quando ele:
— Do que é mesmo que a sua amiga te chama?
— Oi?
— Aquele apelido engraçado.
Ela abaixou a cabeça e sorriu. Não queria sorrir. Nunca mais. Respondeu:
— Bebê Grunge.
Ele riu, depois pediu desculpas. Carros e mais carros e mais carros. Ele riu mais um pouco. Os faróis deixavam uns riscos finos, arranhões numa vidraça. Uma mesma nota musical, aguda e branca, impossivelmente sustentada por um tempo demasiado longo. Eu queria te dizer uma coisa. Eu queria não te dizer nada. Eu queria não te dizer mais nada, nunca mais. Eu queria não ter dito porra nenhuma.
O sinal aberto para eles.
Ela apertou o passo, mas ele fez o mesmo.

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