A suíte de Ali

Resenha publicada em 11.10.2014 no Estadão.

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No coração da premissa que anima Suíte em Quatro Movimentos, quinto romance da escocesa Ali Smith, jaz um pesadelo: o casal Genevieve e Eric Lee tem o hábito de organizar um “jantar alternativo anual” em sua mansão localizada no bairro de Greenwich, em Londres: “eles gostavam de convidar pessoas que fossem um pouco diferentes das pessoas com quem eles normalmente falavam, bem como os amigos que viam o tempo todo”, porque achavam “interessante dar uma variada” recebendo, por exemplo, um casal muçulmano, ou um palestino, ou, como é o caso do jantar que precipita a narrativa, um gay. Ocorre que, dessa última vez, “estava um homem que, entre o prato principal e a sobremesa (…), subiu as escadas e se trancou num dos quartos” para não sair mais.

O pesadelo, no caso, é o jantar em si, narrado minuciosamente na segunda das quatro partes do romance, um redemoinho interminável de filisteísmo, no qual uma convidada particularmente lesada chia sempre que falam de arte, outro descreve os microdrones produzidos pela empresa em que trabalha e vendidos à polícia como brinquedos e eles mal esperam que o convidado da noite deixe a mesa momentaneamente para cometer indiscrições, falando sobre o suicídio de sua mãe. O mal-estar provocado por essa conversa desgovernada, maldosa e de ecos fascistoides é tamanho que não chega a surpreender a decisão daquele convidado de se trancar no quarto. Ele permanecerá ali, atraindo a atenção da mídia e de uma multidão de curiosos e oportunistas variados.

Em suas quatro partes ou “movimentos”, o romance evita abordar diretamente Miles, o personagem recluso. Assim, nós o entrevemos por meio de outras pessoas: uma conhecida com quem estivera numa excursão pela Europa, décadas antes; o amigo gay que o arrasta para o tal “jantar alternativo anual”; uma senhora de idade, enferma, que ele costumava visitar; e, por fim, uma garota de dez anos de idade, filha de um casal de acadêmicos, que consegue estabelecer uma relação de proximidade com ele e decide escrever sobre “um homem num quarto que fica no quarto e nunca sai”, ao que o pai dela comenta: “Que história mais virada do século”.

De fato, Smith transpõe sem muita sutileza (o que, nesse caso, não é ruim) a estupefação experimentada por qualquer pessoa com um mínimo de discernimento quando confrontada com a estupidez que escorre das situações mais banais. Ela o faz com sua prosa inventiva, repleta de jogos verbais, trocadilhos e rimas muito bem traduzidos por Caetano W. Galindo, sobretudo quando ligada à personagem da menina. Na verdade, pela maneira como se aproxima dessa personagem em particular, é como se a autora sugerisse que todos nós deveríamos nos distanciar do mundo por um momento, a exemplo de Miles, procurando uma reaproximação ulterior, ancorada em questionamentos tão simples quanto essenciais, como faz a garota. Seria como voltar a encarar a realidade com os olhos limpos de uma criança, mantendo a fé na palavra como uma via imperfeita, mas a única de que dispomos, para nos situarmos em um mundo tão conflagrado quanto absurdo.