Outback

Outback

rover

Pena que só tenha visto The Rover – A Caçada ontem. Por certo, estaria na cabeça da minha listinha de melhores de 2014. É o segundo longa de David Michôd (que antes nos dera o ótimo Reino Animal). Ele se volta para aquela aridez australiana, de estradas, tiros e carros, que constitui não só um gênero, mas toda uma maneira de pensar e fazer cinema, cuja raiz estaria na década de 1970, com o Ozploitation e a “nova onda australiana”, de filmes como Walkabout (Nicolas Roeg, 1971), Wake in Fright (Ted Kotcheff, 1971, baseado num puta romance de Kenneth Cook), Long Weekend (Colin Eggleston, 1978) e, claro, o estupendo Mad Max (George Miller, 1979).

Um fiapo de história nos arrasta pelo outback enquanto um sujeito (Guy Pearce) persegue um trio de assaltantes que, em fuga, lhe rouba o carro. No trajeto, depara-se com o irmão (Robert Pattinson) de um dos ladrões, deixado para trás pelos comparsas, que o julgaram morto. A caçada cria uma aliança improvável entre esses dois. A importância do carro para o perseguidor só é esclarecida no epílogo, e, não sei vocês, mas eu achei a coisa toda justificadíssima. A gente se agarra ao (pouco) (nada) que tem.

Não é um detalhe menor o fato de que o mundo colapsou. Michôd cria, assim, uma aventura pós-apocalíptica que, em momento algum, explica como as coisas foram pro saco. Até porque isso (a “explicação”) não tem a menor importância para a narrativa, na forma como ela se desenrola. O papo do protagonista com um soldado, a certa altura, é um exemplo perfeito dessa economia criativa: é a única vez em que sabemos algo do personagem, mas o que ele nos conta, dado o contexto, diz mais respeito ao outro em sua “normalidade”, até porque a “normalidade” fora suprimida, extinta.

Ele está solto num mundo em que as ações mais terríveis não têm quaisquer reverberações ou consequências exteriores. O homem está sozinho em/com seu horror. Enquanto os cadáveres se amontoam sob o céu impassível, Michôd mostra um (não) estado de coisas em que somos deixados à mercê do outro e sem quaisquer instâncias intermediárias e/ou supraindividuais. É a morte da temporalidade que se segue ao deicídio.

(Em tempo: quem quiser saber um pouco mais sobre o Ozploitation, sugiro o doc Além de Hollywood.)

Novo

Trecho inicial de Abaixo do Paraíso,
meu novo romance.

Roseli Vaz

Cristiano soube tão logo abriu os olhos: não estava em casa. Ele sentiu a camisa grudada nas costas, depois o peito congestionado, a testa empapada. Os olhos ardiam. Desacostumara-se com a atmosfera febril do lugar. Ela o adoecia, ou talvez fosse a ressaca. Em todo caso, o calor não esperava o dia avançar, havia um pequeno intervalo ao fim da madrugada (não estava tão quente quando ele despencou ali, por exemplo), mas antes e depois era a mesmíssima investida crematória, o castigo ensolarado do Criador.
Levou a mão esquerda à testa. Tremia um bocado.
Os ponteiros do relógio de parede, um metro e meio acima do encosto do sofá, estacionaram às três e pouco de alguma tarde ou madrugada (como saber?). Seria possível que alguém tivesse testemunhado o momento exato em que o relógio pifara? Por acaso, atravessando a sala, olhando naquela direção no instante em que o ponteiro mais fino desistia? Esfregou os olhos, que arderam mais. A impressão de que o tempo para quando olhamos diretamente para ele.
Ele se sentou, bocejando. Onde foi que eu meti o celular? Apalpou os bolsos das calças, o vão entre o braço e a almofada do sofá, mas não encontrou nada. Talvez estivesse na mochila, ou no carro, no banco do carona, no porta-luvas, descansando sobre a Bíblia, talvez jogado no painel ou caído no assoalho. Melhor não ter esquecido em alguma birosca, a bebedeira da tarde anterior invadira a noite e ele e os outros se entregaram a uma odisseia etílica Taguatinga adentro, pulando de boteco em boteco, três, quatro, nem se lembrava mais, as mãos trêmulas agora, o estômago substituído por uma família de roedores.
Não.
Usara o celular ao chegar a Goiânia, claro, a ligação intempestiva a que Paulo atendera assustado (eram cinco e dez da manhã), quer me matar do coração, fidumaégua?
— Onde foi que você se meteu?
Deu uma rápida olhada no chão, ao redor dos pés e da mochila, podia ter caído por ali, ou se jogado, as coisas ganhando vida enquanto ele dormia e o celular pulando no vazio, animado pelo relógio estanque, é a melhor opção, amigo, acredite, um suicida cansado da estrada, saltando. Aqui eu termino. Lá estava: dentro do calçado, o pé esquerdo, confortavelmente aninhado sobre a meia suja. Uma espécie de manjedoura. Ele o alcançou. Morto, de fato. Descarregado. Parecia refletir a inércia do relógio pregado na parede. Dois entes silenciados. Entre a manjedoura e a cruz, um cansaço enorme.
O barulho do liquidificador se espalhava desde a cozinha, misturando-se à notícia televisiva de um assassinato, a repórter de olhos arregalados e braços duros escandindo uma ou outra sílaba como se fosse ela a vítima dos tiros e um dano neurológico se insinuasse no corpo e na fala — as palavras esvaziadas, reafirmando a gratuidade de seu uso.
Ainda é cedo, pensou Cristiano. E era mesmo.

…………

Imagem: Roseli Vaz.

O romance sairá pela Rocco, mas ainda não tem data de lançamento. Sigo acertando uns detalhes, revisando uns trechos, arredondando o troço. Mas acho que está quase pronto.

Gerrard

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Steven Gerrard é o maior ídolo que tenho, no esporte e fora dele.

Talvez seja o último atleta cuja história se confunde com a do clube que defende. Até hoje, e desde os oito anos de idade, quando chegou às categorias de base do Liverpool, Gerrard jamais jogou por outro time. Gerrard é o Liverpool. E ontem se noticiou que, aos trinta e quatro anos de idade, ele está de saída. Vai para os EUA, disseram. Jogar por lá nos estertores da carreira.

Deixa um espaço, um rombo, impossível de ser preenchido. É o maior jogador da história do clube. Um meio-campista completo, classudo, capaz de lançamentos soberbos, desarmes e chutes certeiros de fora da área. Para além das conquistas (Champions League, Liga Europa, FA Cup, Copa da Liga), está o que sua figura representa, o líder irrepreensível e inspirador, o capitão, o maestro daquela reação inacreditável sobre o Milan, em Istambul, o catalisador da energia que emana do Kop.

Gerrard é enorme, tão grande quanto o Liverpool, tão grande quanto as glórias e as dores do clube (afinal, entre as 96 vítimas fatais do desastre de Hillsborough, estava um primo seu). É difícil acreditar que ele esteja indo embora. É difícil aceitar.

Talvez pese a perda do título na temporada passada, quando estivemos tão próximos de conquistar o único troféu que faltou ao capitão, o da Premier League. Talvez pesem as críticas que ele tem recebido nos últimos meses, por atuações abaixo da média, mas é inegável que o time inteiro está sofrendo para se encontrar e Brendan Rodgers, o treinador, com erros e acertos, faz o que pode para recuperar a intensidade e a vibração perdidas.

Em fins de abril, irei à Inglaterra, ao Anfield Road, para ver um jogo dos Reds. Quando organizei a viagem, meses atrás, não imaginava que veria o penúltimo jogo do nosso capitão em casa. Dada a irregularidade da temporada, é impossível prever o Liverpool que encontrarei então. Torço para que seja um time assegurando uma vaga na próxima Champions e, quem sabe, perto de conquistar uma das Copas. Gerrard merece levantar mais um troféu em sua última temporada no clube do coração. E, dada a sua enorme generosidade, aposto que ele está pensando que somos nós, os torcedores, que merecemos um título. Como se ele nos devesse alguma coisa.

Você não nos deve nada, capitão. Você nos deu tudo. YNWA.

Gerrard

Modiano

modiano

“Na escrita de Patrick Modiano, o tempo flui em todas as direções e as personagens são, muitas vezes, construções precárias que desmancham e escorrem pelas frestas, por entre os dedos, noite adentro. Tal precariedade não é um problema, mas, antes, um índice de seu desvanecimento em tempos opressivos. Há, assim, uma insistência por parte do autor em reter algo delas, por mínimo que seja, e a despeito da noite. Dora Bruder é um esforço nesse sentido.”

Assim começa o posfácio que escrevi para a novíssima edição do romance Dora Bruder, de Patrick Modiano (agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2014). O livro é relançado pela Rocco com um novo projeto gráfico, junto com outras duas obras do autor: Ronda da noite (leia AQUI o posfácio de Flávio Izhaki) e Uma rua de Roma (posfaciado por Bernardo Ajzenberg). Os volumes são vendidos separadamente ou em um box.

A paisagem possível

Caderno

“As minhas rasuras são muito bonitas, aliás. Ninguém rasura como eu. Não me limito a rabiscar ou riscar, isso é para amadores e relapsos. Eu lanço mão de um pincel atômico preto e oblitero a palavra, frase ou parágrafo, com força, quase criando uma passagem para a Zona Negativa. Acho, inclusive, que escrever um romance equivale a rasurar outros quatro ou cinco que jamais serão terminados, e, no que diz respeito a Abaixo do paraíso, é impressionante como ele foi mudando até se transformar noutra coisa muito diferente da que planejara no começo. O mais incrível é que, nesse caso, a premissa inicial, aquilo que me levou à escrivaninha no dia 31 de janeiro de 2013, bem, ela foi pelos ares.”

Escrevi sobre o meu romancemprogresso para o blog da Rocco. Leia na íntegra ACOLÁ.

As ruínas de Maggie

Resenha publicada em 06.12.2014 no Estadão.

Skagboys

O romance Skagboys (Rocco), do escocês Irvine Welsh, é um prequel, ou seja, um retorno aos personagens de Trainspotting Pornô, mas situando a narrativa em um período anterior ao dos outros livros que, agora, formam com ele uma trilogia. Assim, retornamos à prosa inventiva, escatológica e coloquial do autor, com frequência calcada no dialeto do Leith, bairro de Edimburgo, e outra vez traduzida com apuro por Daniel Galera e Daniel Pellizzari. Eles circulam bem pelos diferentes narradores e registros que constituem o romance, transmitindo com eficácia o humor e o horror que colorem as suas quase 600 páginas.

Skag é uma gíria para heroína, a meia-noite na qual os então jovens Renton, Sick Boy e Spud, entre vários outros, adentram na primeira metade da década de 1980. Muito embora o thatcherismo esteja a pleno vapor, destroçando a classe trabalhadora britânica, nem todos eles recorrem à heroína por falta de perspectivas. Renton, por exemplo, é um universitário promissor, em um dado momento comprometido com uma bela garota e que afirma “que é muito bom ser quem ele é”, um “jovem inteligente de classe trabalhadora que mora nessas ilhas maravilhosas”. Ao optar pela heroína, abandonando a universidade e a namorada (e uma das razões desta decisão será dolorosamente esclarecida apenas na parte final), mergulha em uma espiral autodestrutiva jamais enfocada de forma melodramática ou moralista.

Há uma alternância de narradores, dentre os quais citamos Sick Boy (que, para começo de conversa, não hesita em viciar e prostituir a filha menor de idade da vizinha), Spud (o mais ingênuo, afetuoso e tragicômico; sua noite com uma cantora holandesa avançada em anos é engraçadíssima), o psicopata Begbie (viciado não em heroína, mas em trucidar o próximo), Alison (garota arrasada pela morte da mãe, vitimada por um câncer, envolve-se sexualmente com o chefe e é paulatinamente engolfada por aquela mesma espiral) e Nicksy (sua jornada por uma montanha de lixo, em busca de um cachorro que jogaram ali, quando se depara com algo muito pior, é uma das melhores passagens do livro), além, é claro, de Renton.

A estrutura permite que o leitor vislumbre não só os narradores de cada trecho, como também os outros personagens, de perspectivas diversas e não raro conflitantes. Além disso, essa alternância (há também capítulos narrados em terceira pessoa, como o derradeiro, longo e excruciante como poucos) mantém o romance em alta voltagem, sem que haja tempo para quedas de ritmo.

E, por mais violentos e nojentos que sejam os acontecimentos narrados, Welsh jamais se distancia dos personagens ou os julga. Mesmo em seus piores momentos, quando se assemelham às “árvores apodrecendo de um lado da West Grand Road”, às “pessoas dentro de apartamentos varicosos”, pessoas que também se encontram “em decomposição” ou, pior, lançada nas ruas para, por assim dizer, decompor o outro, os personagens não são desumanizados. Pelo contrário, a irrefreável aproximação empreendida pelo autor como que nos força a um entendimento de que, querendo ou não, somos “parceros” na medida em que habitamos uma mesma e ruinosa realidade.

Por fim, seguindo por esse mesmo espírito compreensivo, convém recorrer às linhas traçadas por Renton em seu diário de reabilitação: “Passo o resto da manhã escrevendo, escrevendo, escrevendo. Sinto prazer o tempo todo sentindo a ponta afiada e macia da caneta puxando minha mão por cima da página. Comecei a acreditar que tudo que a gente escreve, não importa quão tosco e banal, possui algum tipo de significado”. Belas palavras. Lendo Skagboys, que nada tem de tosco ou banal, é difícil discordar do jovem Renton.

Surfando no horizonte de eventos

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Ontem, assistindo a Interestelar numa sala IMAX povoada por (outros) nerds (mais ou menos) barrigudos, pensei não em Dylan Thomas, Albert Einstein ou no status deprimente do beisebol no mundo futuro e empoeirado do filme, mas no silêncio. Algo que os melhores filmes de ficção-científica (2001, o primeiro Alien, o recente Gravidade) utilizam e que tem muito a ver com a imensidão, o imponderável e o horror. O silêncio é deiforme. Mas Christopher Nolan não consegue calar a boca.

Nolan, cineasta afeito a uma picaretagem, acha que ser complexo é ser confuso e é responsável por alguns dos piores filmes do cinemão norte-americano neste início de século XXI, estando o risível A Origem e o terceiro Batman no pico desse Everest (não-)criativo. Sem entrar no mérito dos roteiros desses orcs audiovisuais, basta dizer que Nolan não sabe enquadrar e decupa como um macaco com DDA: ele é incapaz de perceber o filme como um organismo que respira e se move, investindo em planos que se sucedem, mas não conversam entre si e com o todo, imprensados pela música e, no limite, forçados por ela a estabelecer algum sentido (em geral reducionista e melodramático).

Em um planeta no qual um dia tivesse 67 horas de duração (e a noite outras 67), Interestelar talvez até fosse confundido com uma obra-prima (as pessoas vivem em cada lugar, não é mesmo?). A premissa é que a Terra está se tornando inabitável e é urgente encontrar um novo lar. Um ex-piloto, viúvo, é inadvertidamente recrutado (são dois minutos de papo para decidirem que ele é o cara, o equivalente, aqui, ao “desenha um labirinto” d’A Origem), deixa a fazenda, o sogro e o casal de filhos e parte numa expedição para, em tese, verificar a habitabilidade de três planetas, vizinhos de um buraco negro giratório (quem nunca?) e localizados a uma distância tão grande que se faz necessário o uso de um buraco de minhoca (superfaturado) para chegar lá.

Em sua canalhice melosa, o filme até flerta com a escuridão, mas se recusa a abraçá-la. É quando a coisa desanda de vez, a rapaziada surfando no horizonte de eventos do buraco negro e, eventualmente, mergulhando nele. Nolan recorre à multidimensionalidade para calçar o que, no fim das contas, é uma fabulazinha bem vagabunda em que o amor vence tudo (literalmente) e as coincidências não são coincidências, mas “sinais” ou mesmo a boa e velha “comunicação” entre o papai e a filhinha — por mais que qualquer idiota saiba que, bem, comunicação entre pais e filhos é, tipo, uma impossibilidade física, não é mesmo?

Fiquei pensando como acho muito mais honesto o embate com os nossos Engenheiros e a constatação final de um dos personagens (“Não há nada.”) em Prometheus (que revi ontem, aliás), por mais que o filme de Ridley Scott tenha lá os seus problemas (menores, a meu ver). Lançar-se no espaço e internamente (ou, no caso de Prometheus, visceralmente) é um tatear que produz maravilhamento e horror, beleza e morte em iguais medidas. A protagonista, naquele filme, opta por seguir viagem, ancorada em sua fé, está certo, mas também porque nada mais lhe resta por aqui. A gente se lança para o alto quando o chão desaparece.

Voltando a Interestelar, com o didatismo típico do diretor (“Lázaro”, diz alguém; “Ele voltou dos mortos”, outro complementa), o filme explica, demonstra e desenha conceitos básicos de Física (até para melhor distorcê-los e barateá-los), de tal modo que até o menos capacitado dos espectadores julgará ter compreendido alguma coisa; mais do que isso, o cidadão achará plausível o coelho que salta do buraco negro ali no terço final. O problema é que o amor só é uma grandeza física, quantificável, no distinto Cabaré da Dona Gaga, em Fortaleza-CE, e em estabelecimentos similares. O resto, amigos, é escuridão. E silêncio, graças a D’us.

Aventura humana

Resenha publicada em 21.11.2014 no Estadão.

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Há livros que é melhor encarar como aventuras literárias extremas. São extensos, exigentes, tidos pelos preguiçosos como ilegíveis, mas que podem ser — e são — muito divertidos, além de conseguirem, cada qual a seu modo, morder nacos inteiros da experiência humana. Cito três: Ulysses, de James Joyce, O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, e Graça Infinita, de David Foster Wallace, lançado há 19 anos e que agora chega ao Brasil, traduzido por Caetano Galindo.

A história se passa num mundo futuro (ou, do nosso ponto de vista, alternativo), em que EUA, México e Canadá formam um superestado, a Organização das Nações da América do Norte (isso mesmo, Onan), e um bom pedaço do continente foi transformado num depósito de lixo tóxico. A Onan é presidida por uma paródia grotesca de Reagan chamada Johnny Gentle, responsável por essa “Reconfiguração” (o leitor encontra uma reconstituição da formação da Onan na forma de um filme – com bonecos – a partir da pág. 392). Com a Reconfiguração, o tempo passou a ser subsidiado, isto é, o governo negocia os naming rights de cada ano; assim, temos o Ano do Whopper, o Ano do Frango-Maravilha Perdue, o Ano da Fralda Geriátrica Depend (em que se passa boa parte do livro), etc.

Muito do romance gira em torno de uma família, os Incandenza. O pai, James Orin, referido pelos filhos como Sipróprio, foi (ele se matou) um cientista óptico, fundador da Academia de Tênis Enfield (ATE) e cineasta de après-garde (sic). A mãe, Avril (“Mães”), uma acadêmica respeitada, assumiu a ATE junto com o irmão adotivo (ou meio-irmão, mas que é mais do que isso) Charles Tavis, após o suicídio do marido. Os filhos são o caçula Hal (aluno da ETA; narra alguns capítulos), Mario (deficiente físico, assistente de direção do pai, realizador de alguns filmes, incluindo o supracitado sobre a formação da Onan) e o primogênito Orin (jogador de futebol americano, ex-namorado de Joelle Van Dyne, estrela de alguns dos filmes do patriarca).

Outro núcleo narrativo está na clínica de reabilitação Ennet, localizada proximamente à ETA (numa cidadezinha fictícia da área metropolitana de Boston). Joelle é internada ali após tentar “eliminar seu próprio mapa” e se aproxima do ex-viciado, ex-capanga de gângster e agora conselheiro Don Gately. Há um terceiro núcleo que, com liberdade, associo a Marathe, membro dos Assassins des Fauteuils Rollents (AFR), ou “Assassinos Cadeirantes”, um dos vários grupos separatistas surgidos após a Reconfiguração. Marathe repassa informações a um oficial da Onan chamado Steeply como forma de conseguir um tratamento médico adequado para a esposa. A grande ameaça perpetrada pelos separatistas é a veiculação do Entretenimento ou samizdat, na verdade o filme derradeiro de James O. Incandenza, intitulado Graça Infinita (V?), algo tão inconcebivelmente divertido que as pessoas “expostas” a ele não conseguem desviar os olhos e ali ficam, mesmerizadas, até morrer.

Para dar conta da enorme teia de relações, lembranças, idas, vindas e digressões, David Foster Wallace recorre a vários registros. Além das notas que tomam 133 páginas ao final (e nada ali é prescindível; vide a descrição da filmografia de James O. Incandenza na nota 24), temos cartas, relatórios, testemunhos, interrogatórios e descrições de filmes. Mas em nenhum momento se tem a impressão de um exercício estilístico gratuito. Graça Infinita não é cifrado ou hermético. O romance institui uma realidade alternativa, brinca com o caos político, mas jamais se desvia da matéria humano-afetiva que o anima.

O tom pseudoenciclopédico, de um detalhismo maníaco, jamais soterra o que importa: o olhar tristemente lúcido sobre as relações familiares (vide o monólogo avassalador do pai de James O. para o filho pequeno, as conversas telefônicas entre Orin e Hal sobre o pai suicida ou as lembranças de Gately sobre a mãe), os vícios (note-se os testemunhos dos residentes na Casa Ennet e/ou ouvidos por eles em reuniões do AA, NA, etc.) e a depressão (destaco a excruciante descrição de uma personagem: “É tipo horror mais que tristeza. É mais tipo horror”).

Graça Infinita se abre a partir do material humano que pipoca em suas páginas, infenso ao solipsismo. Por mais insana e pynchoniana (há até um Bodine por ali) que seja, sua aventura remete, sobretudo, a um tatear interno, anímico, do que nos constitui, bom e mau, saudável e não, e nos liga ao outro. Observe-se que o acerto de contas final (ao som de Linda McCartney, sua voz desafinada e o pandeiro que chacoalha bisonhamente isolados) é uma orgia ultraviolenta, mas deságua na imagem de Gately deixado numa praia deserta, sob a “chuva de um céu baixo”. Não obstante as circunstâncias, ou em vista delas, eis aí um belíssimo convite ao recomeço e à aceitação de si e do outro.

Eldorado

“Então eu felicito os mortos que já morreram, mais que os vivos que ainda vivem.”
Eclesiastes, 4:2.

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Eldorado é o episódio final de Boardwalk Empire e traz as duas mortes de Enoch Thompson, seu protagonista. A primeira morte é moral. A segunda, um estilhaço do passado que lhe arranca, de vez, a cabeça. Há uma circularidade sutilmente tecida no decorrer de toda a quinta e última temporada. Acompanham-se os motivos do salto e os estragos da queda.

Desde o piloto, soberbamente dirigido por Martin Scorsese, a série institui suas correntes, por assim dizer. O período é o da Lei Seca (1920-1933), durante o qual o crime efetivamente se organizou e figuras como Charlie Luciano e Meyer Lansky ascenderam, sistematizando as atividades ilícitas, solapando as velhas lideranças e o modo como as coisas eram feitas e, por fim, formando a famigerada Comissão. Colosimo, Torrio, Rothstein, Masseria, Maranzano, Capone e Thompson vão ficando pelo caminho.

Nisso, há duas coisas geniais na condução da série. A primeira delas é o modo como os roteiristas se apropriam do período e dos personagens históricos; muito do que se vê realmente aconteceu (a recriação da morte de um dos irmãos Capone, em meados da quarta temporada, é particularmente abrasiva), e o que não aconteceu (Thompson é livremente inspirado em Enoch L. Johnson, “dono” de Atlantic City de 1910 a 1941) serve para melhor desvelar essa “outra história americana” em todo o seu brutalismo. A segunda é como a série explicita que, na prática, não há distinção entre essa “outra história” e a “oficial”, entre o mundo e o submundo. O senador Joseph Kennedy, figura proeminente na quinta temporada, que o diga.

O desfecho de Boardwalk Empire não se traduz em um fechamento. Encerra-se o círculo narrativo de Thompson (uma vez que o fim ecoa o início, e o início está bem ali, no fim, na própria imagem dele, garoto, mergulhando no mar e alcançando uma moeda que jogaram), mas, observando-se o contexto maior, compreendemos que houve, desde o começo, a preparação para um mundo que se abre. Num certo sentido, o período enfocado é um interlúdio sangrento que leva à constituição de um novo modo de ser e estar na América.

A formação e solidificação da América corporativa também se deram no âmbito do submundo, como se vê e se sabe. O período entre-guerras comporta primeiro um tatear nas trevas (Lei Seca, Depressão) e, depois, não uma superação, mas um entendimento melhor, mais amplo e profissional de como proceder no interior das sombras. Luciano e Lansky são os criadores e capitães desse novíssimo modus operandi.

Mas, para além disso, Boardwalk Empire é também a narrativa (íntima, intimista, interior) sobre alguém vacilante entre o mundo que se esfarela e o novo estado de coisas. Thompson aprendeu, talvez um pouco tarde demais, o que Luciano e Kennedy parecem saber naturalmente: não é possível ser “meio gângster”. (Em verdade, para alguém como Kennedy, tal distinção sequer existe, é uma bobagem.) No entanto, seu destino não é definido por essa vacilação (levada ao extremo justo quando ele toma uma atitude que considera “ousada” e sequestra “Bugsy” Siegel) e, sim, pela escolha resoluta tomada anos e anos antes, quando se deu conta de que sua metade “não gangster” era contraproducente.

O descompasso entre o homem e seu mundo, ou o mundo que julgava seu, transforma o legado de uma vida no prêmio para os que souberam caminhar no fogo. Os cadáveres que se vão amontoando refletem o descompasso desses que ficam pelo caminho e o esforço dos que assumem o topo da cadeia alimentar. O equilíbrio é precário, as variáveis são inúmeras. A violência pontua a dinâmica da coisa. O Eldorado é uma sucessão de valas comuns.

Grimm

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“Nossa mãe nos falava sobre uma enorme floresta ao norte. Situava algumas das histórias que nos contava nesse lugar. Seria o mesmo? Seria aquela a tal floresta? Histórias sobre pessoas que se perdiam.
“Histórias sem fim.”

Trecho do conto “Animaizinhos”, minha contribuição à antologia Grimm: Releituras. Organizada por Cláudia Ribeiro Mesquita, Fabio Weintraub e Graziela R. S. Costa Pinto e lançada pela Edições SM, também conta com Luisa Geisler, Ana Paula Maia, Paloma Vidal, Veronica Stigger, Andréa del Fuego e outros.