Cartografia humana

Cartografia humana

Resenha publicada em 07.06.2014 no Estadão.

ZADIE

Em seu quarto romance, a londrina Zadie Smith ajoelha-se no asfalto da cidade, cola o ouvido no chão e, a partir do que escuta, traça uma bela cartografia humana. Desde o título, NW se refere a uma região específica da capital inglesa (Noroeste) e acompanha seus personagens enquanto eles se afastam e se aproximam uns dos outros, de si próprios e, acima de tudo, do passado tornado comum pelo lugar.

Eles são Leah, formada em Filosofia (que nunca teve paciência para estudar realmente) e casada com um cabeleireiro negro, o francês Michel; Natalie, outrora Keisha, uma advogada bem-sucedida, esposa de um investidor; Nathan, ex-colega de escola das duas primeiras, antes um rapaz boa-pinta por quem Leah era apaixonada, agora um viciado que vive pelas ruas; e, por fim, Felix, desconhecido pelos outros personagens, mas cuja trajetória diz muito sobre como todos eles se relacionam com o passado.

Há dois aspectos responsáveis, em parte, por tornar o romance tão bom. O primeiro, é a forma como a cidade se faz presente, um organismo dinâmico, quase uma criatura sonhando aqueles personagens ou, pelo contrário, uma criatura sonhada por eles, cada qual a seu modo. Aquele quinhão urbano é, assim, a tapeçaria sobre a qual Smith trata de mobiliar o ambiente narrativo, arrastando mesas e cadeiras conforme lhe apetece. E, jamais, mudança alguma é despropositada.

O outro aspecto diz respeito, justamente, a essa movimentação. NW é dividido em quatro partes, e cada uma delas se aproxima de um determinado personagem. Quando estamos com Leah (sentindo-se estagnada e debatendo-se sobre ter ou não um filho, magoada com a amiga Natalie, cuja ascensão social e profissional as afastou), temos blocos narrativos curtos, disruptivos. Com Natalie, há uma maior precisão, mesmo que superficial, em que cada trecho é titulado, denotando uma busca por organização, propósito. Há solidez maior quando adentramos o espaço de Felix, talvez porque ele nos pareça imbuído de honestidade maior para consigo e os outros. Nathan, por fim, é um personagem marginal até em relação ao desenrolar do romance, transita nas margens dos outros, sem jamais ocupar um lugar só seu.

Como se vê, a autora, que em seu romance anterior, o também ótimo Sobre a Beleza, assumiu uma atitude menos radical, aqui recorre a formas variadas ao construir a narrativa. Tal efervescência estilística, além de atestar seu domínio técnico, é imprescindível para dar conta daquilo a que já nos referimos como uma cartografia humana. Ela não escreve como se precisasse abordar os itens de uma agenda politicamente correta ou sequer “multiculturalista”, como, aliás, já foi acusada de fazer, mas como quem nutre um interesse real pelos personagens e, o que talvez seja o mais importante, coloca-se à altura deles, ao nível do calçada. É um mergulho que a prosa opaca de um Jonathan Franzen, por exemplo, é incapaz de perpetrar, contaminada por uma visão de mundo restritiva. Diferentemente dele, Smith é aberta ao que lhe dizem as esquinas e seus habitantes, nossos iguais.

'2666' aos 10

2666

Embora lamente muito a morte precoce de Roberto Bolaño, creio que 2666 não poderia ser outra coisa que não um romance inacabado. Sua qualidade tenebrosa, sobretudo no que tange aos corpos de mulheres horrendamente violadas e assassinadas que se amontoam em suas páginas, mas também às guerras europeias e ao nazismo (revisitados na derradeira parte), parece dizer respeito ao próprio Mal em andamento, operando, pela via da metástase, nos corpos do Velho e do Novo Mundos. O Mal é elusivo (ainda que brutalmente visível), e Bolaño procura cercá-lo aqui e ali, em abordagens, personagens e contextos distintos, nos livros que compõem o Livro. A incompletude de 2666 acaba por refletir a incompletude fundamental, ontológica, do humano, incompletude que não raro resulta na mais absurda violência.

Depoimento meu ao ESTADÃO por ocasião dos dez anos da publicação de 2666, de Roberto Bolaño. Outros também falaram a respeito.

Monteiro

Resenha publicada no Estadão em 17.05.2014.

aspades

O romance Aspades ETs etc. foi o primeiro do também poeta e cineasta pernambucano Fernando Monteiro. Escrito em 1995, ano em que se celebrou o centenário do cinema, saiu primeiro em Portugal, em 1997, pela extinta Campo das Letras, e apenas em 2000 ganharia uma edição brasileira, pela Record. Agora, é relançado em formato digital pela Cesárea no momento em que o autor afirma estar abandonando a escrita de romances, uma vez que o gênero estaria trivializado ou mesmo banalizado pela chamada “autoficção” e também pela incidência de cabeças falantes televisivas, celebridades, humoristas e sabe-se lá o que mais arriscando suas narrativas.

Em entrevista ao Diário de Pernambuco, publicada em 31 de março de 2014, Monteiro foi taxativo: “Deixar de usar a imaginação na literatura é imperdoável”. E Aspades, que em sua maior parte se apresenta como um falso ensaio sobre a vida e os filmes de um fictício cineasta português, é, sobretudo, um tremendo esforço de imaginação.

O narrador nos apresenta Vasco Aspades do Carmo, descreve as “circunstâncias perfeitamente banais” em que se conheceram, em Lisboa, no começo dos anos 1970, o desconfortável primeiro encontro e a amizade que nasce e cresce pela troca de cartas e, depois, a partir e em torno dos filmes, realizados e/ou apenas sonhados, do diretor.

Monteiro não se limita a emular a prosa ensaística, permitindo que a voz do personagem-título invada o texto. Tal invasão se dá, por exemplo, mediante trechos de entrevistas, conversas gravadas, anotações, artigos, excertos de roteiros e narrativas literárias (Aspades também é autor, dentre outras coisas, da novela Ostiense, na Volta, que o revelou como “um genuíno talento literário, desses que surpreendem pela extrema segurança logo na primeira experiência”). O romance é construído por meio dessas ramificações e emaranhamentos, a tal ponto que o narrador se confunde com seu personagem e a memória de um reste entrelaçada à do outro. Há, portanto, ficção se sobrepondo à ficção, histórias saindo de dentro de histórias e filmes refletindo outros filmes ou livros, como O Falso Facato (primeiro longa do diretor) relativamente a um conto de Hawthorne.

Nesse entrelaçamento, as cidades também se sobrepõem, seja a Lisboa de um ou de outro, seja a Berlim Oriental na qual Aspades voluntariamente se perde a certa altura para emergir com a narrativa de vários encontros, com uma mulher, com as esculturas expostas no Pérgamo, seja a “cidade morta” Ravena, sobre a qual realiza um curta “quase perfeito”, onde “a narração sensível, talvez um tanto literária demais nas imagens competindo com as do filme” corresponde a uma das melhores passagens do romance.

No terço final, Monteiro extrapola ainda mais as regras desse jogo de sobreposições. Utilizando um conto escrito por Aspades (sob pseudônimo) como trampolim, “Tênis brancos”, o romance salta para outras narrativas, como um filme que se desdobrasse noutros, uma tela se dividindo em várias. Em “Transit”, por exemplo, tal desdobramento é enriquecido por uma série de avanços e recuos, desenvolvimentos possíveis do que é contado.

Para quem fala em “esgotamento” da forma do romance, Aspades ETs etc. exibe inúmeras maneiras como tal esgotamento pode se expressar. É realmente uma pena que um autor com tantos recursos tenha optado por se ausentar. A riqueza uterina de uma prosa como a de Fernando Monteiro é o melhor antídoto contra a pobreza lamurienta, masturbatória e solipsista que se disfarça por aí de ficção.

A rarefação do luto

barnes

Há uma passagem de Altos voos e quedas livres em que o escritor inglês Julian Barnes, falando sobre a “perda de profundidade” inerente ao luto, aborda o seu aspecto, por assim dizer, contingenciador: a pessoa morta “não existe realmente no presente, e não inteiramente no passado, mas num tempo de verbo intermediário, o passado-presente”. A sombra que esse tempo intermediário lança sobre o futuro é dolorosíssima, pois é esvaziada, ou igual a uma ausência tremenda. Os três textos que compõem o livro são um testemunho não apenas do luto (a esposa de Barnes, Pat Kavanagh, morreu em 2008, após mais de três décadas de convivência), mas da possibilidade, ou não, de se pensar e escrever a esse respeito.

O autor não ataca o tema diretamente. O primeiro texto, “O pecado da altura”, introduz alguns personagens reais (o inventor francês Félix Tournachon, o oficial britânico Fred Burnaby e a atriz francesa Sarah Bernhardt), que “eram os tipos de adeptos do balonismo na época (segunda metade do século XIX): o entusiasmado amador inglês (…) disposto a subir em qualquer coisa que voasse; a mais famosa atriz de sua época, fazendo um voo célebre; e o balonista profissional”. Logo fica claro que o balonismo é uma metáfora para algo maior e mais obscuro, “uma liberdade subserviente aos poderes do vento e do clima”, uma vez que o “pecado da altura é castigado”. Quase que de passagem, somos informados da vida conjugal de Tournachon e sua esposa Ernestine, que “sempre esteve lá”. No fim, ele cuidou dela, entrevada por um derrame. Barnes parece olhar para cima a fim de enxergar melhor o que temos ao nível do chão. Se o amor nos eleva, seu fim é algo como uma aterrissagem quase sempre brutal.

Seguimos com Bernhardt e Burnaby no segundo texto (o mais próximo de um conto), “No nível do chão”. É a história de amor vivida por eles, breve e ao mesmo tempo longa, interminável, sobretudo para Burnaby. Quando estava com ela, a exemplo do que sentia ao voar, “ele podia ouvir a si mesmo vivendo”. Uma coisa ilumina a outra, oferece imagens, subsídios narrativos e discursivos, e a justaposição de elementos assim díspares é muito bem sacada: a rarefação do voo é ligada à do amor, e a esta se segue, no desenvolvimento do próprio livro, a rarefação da perda.

Na parte final, “A perda da profundidade”, Barnes se volta para o achatamento propiciado pelo luto. Não é apenas a descrição de um “processo” (e ele se volta contra o uso dessa e de outras palavras e expressões eufemísticas ou apenas estúpidas, como a de que teria “perdido a esposa para o câncer”) ou de uma “nova geografia, mapeada por uma nova cartografia”, mas um mergulho ou descida à individualidade mais plena e intransferível, pois, segundo as palavras de E. M. Forster, “Uma morte pode explicar a si mesma, mas ela não lança nenhuma luz sobre outra morte”. O luto não pode ser compartilhado nem mesmo entre dois enlutados, pois suas respectivas experiências são incomunicáveis. Contudo, a beleza de Altos voos e quedas livres está justamente na tentativa falha, alquebrada, de comunicar algo, por ínfimo que seja, acerca daquele continente vazio, grande demais.

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OBS.: esta resenha saiu no Estadão em 05/04/2014. Como não subiu para o site, resolvi publicá-la aqui na íntegra.

Prenunciando a jornada derradeira

v2

Norte é morte.
Pynchon

O Arco-Íris da Gravidade termina não com o lançamento do Foguete montado por Enzian e os hereros (00001), condenados, talvez, a flanar pela Zona (a Europa no pós-Guerra) com as diversas partes da Arma, sempre prestes a montá-la e dispará-la, flertando com a auto-obliteração e com uma vingança do Südwest, do continente invadido e estuprado pelos europeus, uma promessa apocalíptica (ainda) não cumprida. O romance termina com um flashback, narrado no tempo presente, do lançamento original do 00000 por Weissmann “Blicero”, encarnação não só do nazismo, mas da própria Morte (p. 335):

“E para Enzian o nome Bleicheröde evoca ‘Blicker’, o apelido que os germânicos antigos davam à Morte. Viam a Morte — ou o Morte, como eles dizem — branco: branco de descorado, branco de vazio. Depois o nome foi latinizado para ‘Dominus Blicero’. Weissmann, encantado, adotou-o como seu codinome na SS (…). Weissmann trouxe o nome novo para casa, para seu herero de estimação, não exibindo o nome propriamente, e sim indicando a Enzian mais um passo a ser tomado em direção ao Foguete, em direção a um destino do qual ele ainda não consegue ver mais que essa sinistra criptografia de nomes, uma configuração rarefeita (…)”.

Sabemos, então, que o dispositivo Schwarzgerät ou S-Gerät seria uma cápsula acoplada ao Foguete, onde o escravo sexual de Blicero, Gottfried, é colocado para o lançamento, ainda que o brilho do fogo seja “forte demais para que se possa ver Gottfried lá dentro, senão como categoria erótica, projetada em alucinação para fora daquela violência azul, para fins de autoexcitação” (p. 783).

O Foguete cairá sobre um cinema (p. 785): “A tela é uma página pálida estendida antes nossos olhos, alva e calma. O filme está partido, ou então queimou a lâmpada do projetor”. As pessoas assistem à Morte na tela, “na extensão terrível da tela, cada vez mais escura, alguma coisa persiste, um filme que aprendemos a não ver… agora é o close de um rosto, um rosto que todos conhecemos (…)”, e é bem ali, naquele “ponto, este quadro escuro e mudo, que a ponta do Foguete, caindo a um quilômetro e meio por segundo, absoluta e eternamente sem som, alcança seu último imensurável intervalo acima do telhado deste velho cinema, o último delta-t”.

Não é coincidência que, de fato, no dia 16 de dezembro de 1944, um V2 atingiu um cinema na Antuérpia. Mil e duzentos espectadores assistiam a uma exibição de Jornadas Heroicas, de Cecil B. DeMille. A explosão matou quinhentas e sessenta e sete pessoas.

(Eu me pergunto se houve tempo, “se este conforto lhe parece necessário, de tocar a pessoa a seu lado, ou de pôr a mão entre as suas próprias pernas frias…” (p. 785), antes do Fim.)

Voltando ao romance, prefiro continuar falando não sobre o seu desfecho (antes do lançamento, a fragmentação de Slothrop, seus pedaços supostamente assumindo “diversas personae individuais coerentes”, de tal forma que não seria possível “saber quais dos habitantes atuais da Zona são derivados de sua dispersão” (p. 766), fragmentação que se liga à da própria estrutura do romance, algumas das páginas finais assumindo uma sequência de delírios que podem muito bem ser daquelas “personae” slothropianas (slothroentrópicas?), enfim, tudo isso mereceria ou merecerá um outro texto), mas de uma passagem anterior e que, a exemplo daquela protagonizada por Pökler, sempre me impressionou muito.

Um livro é tão bom quanto os sonhos ou pesadelos que alimenta. Em O Arco-Íris da Gravidade, há os crimes cometidos pela atriz de “filmes de horror vagamente pornográficos” (p. 407) Margherita (Greta) Erdmann em um balneário apropriadamente chamado Bad Karma. Quem fala a esse respeito (para Slothrop, óbvio) é o tenente japonês Morituri, a bordo do Anubis. Os crimes prenunciam o Crime, o Horror que já se instalava, a Shoah. São como uma promessa direcionada ao abismo, uma oferenda perpetrada por uma sonâmbula entre outras, tantas e tantas outras.

“Onde estavam todos no verão antes da Guerra? Sonhando. Naquele verão, o verão em que o tenente Morituri veio para Bad Karma, os balneários estavam apinhados de sonâmbulos” (p. 491). Ele passa os dias “bebendo Pilsener Urquelle no café junto ao lago”, e o que vê é um “frenesi premeditado” que por certo “estaria acontecendo por toda a Alemanha”. Greta está por lá em companhia de Sigmund, tentando se recuperar de um colapso sofrido após fracassar em Hollywood. O colapso inclui “medo de adormecer”, de “não saber voltar depois” (p. 490) e um temor irracional (pois ela é ariana) de que a Gestapo “descubra” seu sangue judeu e venha buscá-la.

Em Bad Karma, quando “foi que Sigmund percebeu pela primeira vez as ausências de Margherita, ou então quando foi que elas se tornaram para ele algo mais que uma rotina?” (p. 491). Os jornais locais noticiavam algo relativo às crianças da região. Crianças judias.

Certa manhã, Morituri esbarra em Sigmund. Conversam. Preocupado, Sigmund fala sobre as “fantasias judaicas” e as ausências de Greta, os “sapatos sujos de lama negra seca”, uma “costura de seu vestido alargada” (p. 492). Leitor dos jornais, somando dois e dois, Morituri passa a segui-la. “Ela jamais olhava para trás, mas sabia que o japonês estava lá.”

Então, no “dia em que a tarde desceu sobre Bad Karma pálida e violenta: o horizonte era uma catástrofe bíblica” (p. 493), ele se depara com a boca da Noite, aberta, pronta para engoli-lo:

“Haviam chegado à margem da poça de lama negra: aquela presença subterrânea, antiga como a Terra, parcialmente cercada no balneário, devidamente rotulada… A oferenda de hoje seria um menino, que havia ficado para trás depois que todos os outros se foram. Seu cabelo era neve fria. (…)”

A certa altura, a voz se eleva e o menino, trêmulo, ouve: “Você já está no exílio há muito tempo. (…) Venha para casa, venha comigo (…), voltar para a sua gente”. É quando nos vemos diante da perversão final (ou o seu Anúncio), Greta dizendo (p. 494) andar “por toda a Diáspora, procurando crianças desgarradas. Eu sou Israel”.

Mais coisas são ditas, e outras, inúmeras, caladas. Aquela criança consegue se desprender e sair “correndo no crepúsculo”. Mas, sabemos, é uma exceção. Um intervalo na Sombra, um engasgue antes da jornada derradeira, aterradora.

Ainda que de formas diferentes, Greta e Blicero ensaiam e acenam para o Fim e, ao fazer isso, também o alimentam. São dois prenúncios, e ambos apontam para o Norte.

O “grito que atravessa o céu” (p. 09), abrindo o romance e rasgando a noite europeia, ainda ecoa, tornando o horizonte uma eterna catástrofe bíblica. Em meio a (sob?) tudo isso, só temos a precariedade terrena (o Foguete nos procura, lá no Alto), a pobreza ruinosa dos dias conflagrados, como aquele em que Slothrop acha “uma criança, viva, uma menininha, semi-sufocada sob um abrigo antiaéreo” (p. 31):

“Aguardando a padiola, Slothrop segurou-lhe a mãozinha, arroxeada de frio. Cães latiam na rua. Quando ela abriu os olhos e o viu, suas primeiras palavras foram: ‘Tem chiclete, moço?’. Presa ali dois dias, sem chiclete — e ele só tinha para lhe dar uma pastilha Thayer’s. Sentiu-se um idiota.”

Mas, apesar de tudo, e segundo lemos por ali, aquele “foi até um dia bom”. Não nos deixemos enganar por ele.

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Este é o último de três pequenos ensaios que escrevi sobre O Arco-Íris da Gravidade. Os outros dois são As velhas estrelas do país da Dor e Pökler.

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PYNCHON, Thomas. O Arco-Íris da Gravidade. Tradução: Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Pökler

Dora

Todos andamos numa Elipse de Incerteza, não é?
Weissmann (p. 442)

N’O Arco-Íris da Gravidade, o engenheiro químico Franz Pökler é um dos responsáveis pela construção do Foguete. Na verdade, como percebe sua esposa, a comunista Leni (que o abandona), o homem “era uma extensão do Foguete, muito antes de ele ser construído” (p. 415). É amigo de Kurt Mondaugen, o engenheiro elétrico que já encontráramos em V., largado na África, no Südwest, um “desses místicos alemães que passaram a adolescência lendo Hesse, Stefan George e Richard Wilhelm, dispostos a aceitar Hitler com base numa metafísica de Demian” (p. 417).

Pökler fica devastado com a partida da mulher, a quem, de brincadeira, chamava de “Lenin” (p. 172). Ela esperou por tempo demais “que ele crescesse, rompesse com aquilo”, mas o “Destino aguarda, uma treva latente na textura do vento morno”, Destino que haverá “de traí-lo, esmagar seus ideais (…), vesti-lo com o mesmo uniforme cinzento de todos os pais de família”, fazendo com que ele cumpra seu “tempo de serviço”, fuja “da dor para o dever, do prazer para o trabalho, do compromisso para a neutralidade”.

Pynchon descreve o Ovo da Serpente aqui, até o momento em que a casca se rompe: dor, dever; prazer, trabalho; compromisso, neutralidade. Neutralidade: Horror.

Deixado só, e conforme previsto (profetizado?) por Leni, Pökler se concentra no trabalho. “Estaria ele abandonando o mundo, entrando para uma ordem monástica?” (p. 416). Sim, “vidas que são formas ondulatórias constantemente mudando ao longo do tempo, ora positivas, ora negativas”, e é “só nos momentos de grande serenidade que se pode encontrar o estado puro, livre de informações, do sinal zero”, acredita Mondaugen, ao que Pökler: “Em nome do catodo, do anodo e da grande santa?” (pp. 417-8).

“Estavam invadindo a própria Gravidade, e era preciso estabelecer uma cabeça-de-praia” (p. 418), daí Pökler mudar-se para Peenemünde em 1937, às margens do Báltico, num momento em que começavam a instaurar “a burocracia e as paranoias, e os organogramas transformaram-se em plantas de prisões” (p. 416). Num certo sentido, leio, o Foguete é um monstro nascido da Burocracia, “alguma coisa aqui, entre os papéis”, e o “medo da extinção denominado Pökler sabia que era o Foguete, que o Foguete o chamava” (p. 419).

As páginas seguintes estão entre as mais lancinantes escritas por Thomas Pynchon. Elas dizem respeito à história de um pai e sua filha separados não só pela Guerra, mas por aquele “medo da extinção” construído pelo pai e pela extinção propriamente dita a cortejar a filha.

Certo dia, ao adentrar o alojamento, ele a vê “sentada na cama, uma bolsa de viagem de lona com estampado de florzinhas junto aos pés, a saia puxada até os joelhos, os olhos ansiosamente, fatalmente, fixos nos dele” (p. 421). É Ilse, a filha. O aparecimento denuncia que “Eles”, os superiores (encarnados no Major Weissmann), sabiam o tempo todo de seu paradeiro, a vida de Pökler “tão desprovida de segredos quanto aquele cubículo miserável, com sua cama, cômoda e luz de cabeceira” (p. 422).

E onde é que ela estava? Em um “campo de reeducação” administrado pela SS:

“Haviam-na enviado ali de um lugar nas montanhas, onde era frio até no verão — cercado de arame farpado e luzes fortes que ficavam a noite toda acesas. Não havia meninos — só meninas, mães, velhas morando em alojamentos, dormindo em beliches, às vezes duas dividindo a mesma enxerga. Leni estava bem. Às vezes vinha um homem de uniforme preto ao alojamento e a Mutti ia com ele, e só voltava dias depois. Quando voltava não queria falar, nem mesmo abraçar Ilse como costumava fazer. Às vezes chorava e pedia que a menina a deixasse a sós. (…)”

Em Peenemünde, deixam que Ilse assista a um lançamento. Não há ninguém importante a quem ela possa contar sobre o que acontece ali. Ela pergunta se um dia poderia ir dentro dele, do foguete, talvez para a Lua. Observando um mapa da Lua, Ilse escolhe um lugar para morar, “uma craterinha bonita no mar da Tranquilidade chamada Maskeline B”, construiriam uma casa na beira, ela, a mãe e o pai, “uma janela dando para montanhas douradas e outra para o mar amplo” (p. 424).

Dias depois, Ilse é obrigada a voltar para o campo. Pökler quase enlouquece, mas é contido por Mondaugen, aprende a manter uma fachada tranquila enquanto os dias passam, idênticos “mergulhos matinais numa rotina tão morta quanto o inverno” (p. 429). Ela retorna no agosto seguinte, a Guerra já bem próxima. Pökler começa, então, a ser acossado por “sussurros perversos”, caminhando a passos largos por aquela Elipse de Incerteza, a paranoia lhe calçando os pés: “Será a mesma? Será que mandaram uma criança diferente? Por que você não olhou com mais atenção da outra vez, Pökler?” (p. 431). Seja quem for, a menina informa que a mãe foi transferida para outro campo.

De licença, o pai viaja com a filha (?) para Zwölfkinder, uma espécie de balneário para crianças, “um lugar para a inocência e suas inúmeras utilidades” conforme exigido pelo “Estado corporativista” (p. 433), um lugar no qual adultos só entram acompanhados por crianças, com prefeito, vereadores e policiais mirins. Ali, o homem fantasia um incesto, mas recua, ciente da impossibilidade de assegurar-se da identidade dela, “seria impossível estabelecer uma cadeia de eventos reais com segurança, impossível confirmar até mesmo (…) que em algum lugar do imenso cérebro de papel do Estado uma perversão específica lhe fora atribuída (…)” (p. 435).

Ilse (?) desaparece certa manhã, “tragada pela guerra vindoura, deixando Pökler sozinho numa terra de crianças” (p. 436). Nos seis anos seguintes, a coisa se repetirá, uma “filha por ano, cada uma cerca de um ano mais velha, cada vez começando quase do zero”, num jogo em que a “única continuidade é o nome dela, e Zwölfkinder, e o amor de Pökler”, amor que “é como a persistência  da imagem na retina, pois Eles o usaram com o fim de criar para ele a imagem em movimento de uma filha, exibindo-lhe apenas aqueles quadros estivais, deixando-lhe a tarefa de construir a ilusão de uma criança única”.

Quando os ingleses bombardeiam Peenemünde em 1943, Pökler está em Zwölfkinder. O que ele vê ao retornar à estação?

“Fumaça emergia da terra, árvores estorricadas caíam, diante de seus olhos, bem perto do mar. Subia uma poeira fina a cada passo dado, embranquecendo as roupas, fazendo dos rostos máscaras de pó. Quanto mais subia-se a península, menor a destruição. Um estranho gradiente de morte e destruição, do sul para o norte, em que os mais pobres e indefesos sofriam mais — tal como o gradiente que correria de leste para oeste em Londres, um ano depois, quando os foguetes começassem a cair. (…)” (p. 437)

Pökler se sente culpado por não estar na estação quando ela foi bombardeada. A culpa alimenta a paranoia. Haveria uma razão para ele não estar ali justamente naquele dia? Mondaugen sugere a ele que não invente complicações. Ele tenta. Depois, durante uns testes realizados em Blizna, supostamente para “observar a reentrada do A4”, coisa impossível em Peenemünde (onde os foguetes caíam no Báltico), Pökler se vê sentado “no ponto exato da campina polonesa onde o Foguete deveria cair” (pois a “explosão no ar, se ocorrer, será visível dali”, p. 440), “crucificado, invisível à primeira vista, mas no instante seguinte… agora começando a definir-se à medida que a queda vai ganhando momento –” (pp. 438-9). Os A4 então apresentavam uma falha terminal, explodindo no ar, antes de atingir o alvo. “Mas como pode ele acreditar na realidade do Foguete lá no alto?”

“(…) Os foguetes são como projéteis de artilharia: dispersam-se em torno do ponto mirado dentro de uma elipse gigantesca — a Elipse de Incerteza. Pökler, porém, embora confie como qualquer cientista na incerteza, não se sente muito seguro aqui. Afinal, é o esfíncter latejante de seu próprio cu que está exatamente em cima do Ponto Zero. E não é apenas uma questão de balística. (…)”

Ocorre, por sorte, outra explosão prematura. Pökler tem dificuldades para conciliar “seu sonho de vítima perfeita com a necessidade que lhe foi incutida de tocar o trabalho para a frente”. Quem não teria? “Mas no interior da vida de Pökler, nos relatórios de sua alma, sua sofrida alma alemã, a base de tempo se estendeu e desacelerou: o Foguete perfeito continua lá no alto, ainda descendo. Ele continua esperando (…)” (p. 441).

Nessa espera, é transferido para Nordhausen, para a fábrica subterrânea localizada ali, a Cidade dos Foguetes. Ele teme que o “jogo” seja adiado, que ele não volte a ver Ilse (qualquer “Ilse”). No entanto, longe de ser adiado, o jogo é cruelmente incrementado: Ilse é prisioneira no campo Dora, próximo a Nordhausen.

A princípio, Pökler não tece a ligação necessária, embora soubesse do campo, visse “os corpos subnutridos (…), uniformes listrados, milhares de pés se arrastando”. Apenas quando reencontra Ilse em Zwölfkinder, vendo a “sombra em seus olhos (como ele poderia não ter percebido até então? aquelas orbes imersas na dor)”, é que ele liga uma coisa à outra: “Durante meses, enquanto seu pai, do outro lado das paredes ou arames farpados, cumpria diligente suas obrigações, ela era prisioneira a poucos metros dele, espancada, talvez estuprada…” (p. 443).

Sentados à margem de um riacho imundo, ele diz que, no fundo, ela não queria estar ali. Mas: “Se não fosse aqui, seria o campo” (p. 444). Eles estão enterrados sob a Elipse. No decorrer dos meses seguintes, Pökler trabalha no “00000”, o novo (Último?) Foguete. A Guerra está chegando ao fim. A Alemanha estertora. Por fim, ele recebe a permissão para viajar a Zwölfkinder e o recado de que Ilse foi libertada e estará lá, esperando por ele. Mesmo assim, ele entra no campo Dora, talvez procurando pela filha.

“Os cheiros de merda, morte, suor, doença, mofo, mijo, o hálito de Dora, envolveu-o enquanto ele caminhava, olhando para os cadáveres nus sendo retirados agora que os americanos estavam tão próximos, para serem empilhados à frente dos crematórios (…) e os vivos, empilhados, dez em cada colchão de palha, os mais fracos chorando, tossindo, derrotados… Todos os vácuos de Pökler, todos os seus labirintos, tinham sido do outro lado do muro. Enquanto ele vivia, fazendo desenhos em papel, esse reino invisível prosseguira, nas trevas exteriores… o tempo todo (…) (p. 447).

Então, “no lugar mais escuro e fedorento” (p. 448), Pökler se depara com uma mulher deitada. Permanece um tempo sentado ao lado dela, segurando sua mão. Ela ainda respira. “Antes de partir, tirou sua aliança de ouro e colocou-a no dedo fino da mulher, e depois dobrou-lhe a mão, para que a aliança não escorregasse a caísse.”

A construção do Foguete correu paralela à construção do Horror. São partes de uma mesmíssima Linha de Montagem, é óbvio. A Pökler, só resta seguir viagem rumo ao Norte, cruzando as trevas exteriores, perseguindo a sombra de algo que lhe fora arrancado há muito, muito tempo.

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Este é o segundo de uma série de três pequenos ensaios sobre O Arco-Íris da Gravidade. Os outros dois são As velhas estrelas do país da Dor e Prenunciando a jornada derradeira.

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PYNCHON, Thomas. O Arco-Íris da Gravidade. Tradução: Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

As velhas estrelas do país da Dor

kzTunnel2

Agora fantasmas amontoam-se sob os beirais.
Pynchon

N’O Arco-Íris da Gravidade, mais do que em qualquer outro romance de Thomas Pynchon (incluindo Mason & Dixon), eu me deparo com o Tempo compaginado à Palavra. O desenrolar do texto oferece uma panorâmica enevoada da primeira metade do século XX, sendo a Guerra (a segunda) o eixo em torno do qual tudo espirala.

Em vez de, tal e qual um Tolstói, catapultar personagens e tramas numa abertura, Pynchon opta por uma sucessão ensandecida de fechamentos. Cada bloco narrativo encerra um buraco negro. As bordas do romance e os desenhos que ele traça emprestam perspectivas fugidias, constituindo um horizonte de eventos que raramente está onde esperamos que esteja. A história espelha a História.

Tome-se, como exemplo, a insistência do narrador em algo que poderíamos chamar de presentificação: mesmo quando o tempo narrativo permanece no pretérito, acontecimentos passados são nivelados com o agora. Os fatos são erupções imprevistas. Os acontecimentos se amontoam, são entortados, confundidos, de tal modo que o leitor não sabe exatamente onde está, e com quem. Passeamos por um museu cujas luzes foram apagadas, e onde as estátuas ganham vida. O coronel Blicero escorre, assim, por décadas e décadas de desgraças, desde o sudoeste africano no começo do século XX até as entranhas do Forno, o inferno crematório engendrado pelos nazistas.

Antes (1904-7), quando dois grupos de nativos, os hereros e os namas (ou namaquas), famintos e mal armados, resolveram se rebelar contra a dominação alemã, cada qual a seu tempo, o kaiser Guilherme II não aliviou: fez descer sobre eles o general Lothar von Trotha, veterano de massacres na China, durante a revolta dos Boxers, e no próprio continente africano, em outros territórios. Os alemães não se limitaram a sufocar a revolta. Calcula-se que 70% da população herero e 50% dos namas tenham sido executados. Blicero esteve por lá duas décadas depois (p. 107, trad. Paulo Henriques Britto – Cia. das Letras, 1998):

“Mas todo deus de verdade é ao mesmo tempo organizador e destruidor. Criado num meio cristão, ele teve dificuldade de compreender isso, até que foi para o Südwest: até sua conquista africana. Entre os fogos abrasivos do Kalahari, sob o céu de faixas longas da costa, fogo e água, ele aprendeu. (…) Levando em sua bagagem um exemplar das Elegias de Duíno, recém-publicadas quando ele embarcou para o Südwest, presente que a mãe lhe dera no embarque, o cheiro de tinta fresca entontecendo-lhe as noites enquanto o velho navio de frete atravessava um trópico e depois o outro… até que as constelações, como as novas estrelas do país da Dor, se tornaram todas desconhecidas, e as estações do ano inverteram-se…”

Só para constar, o ocorrido no sudoeste africano já fora abordado por Pynchon em seu primeiro romance, V. (p. 302, trad. Marcos Santarrita – Paz e Terra, 1988):

“(…) Muitas vezes, sob o sol nublado, sonhava acordado; lembrando-se das aguadas cheias até a borda de cadáveres negros, as orelhas, narinas e bocas em tons verde, branco, preto, iridescentes de moscas e suas larvas; piras humanas cujas chamas pareciam alcançar o Cruzeiro do Sul; a fragilidade dos ossos, o arrebentar de um saco de cadáveres, o peso súbito até mesmo de uma frágil criança.”

Voltando a O Arco-Íris da Gravidade, Pynchon não intenta engarrafar o Tempo ou domesticar a História. Talvez por isso o estilo e a abordagem asselvajados. Talvez por isso a tremenda instabilidade narrativa, com suas quebras, seus volteios, seu aparente descontrole, traduzindo literariamente o sentido mesmo da Conflagração.

O grito que atravessa o livro parece amarrá-lo com arame farpado, ensurdecendo a própria constituição da narrativa e da realidade por ela recriada e subvertida. Não há simetria possível. Só há entropia. Simetrias, esses “luxos do tempo de antes da guerra” (p. 110). Ocorre que nunca houve um Tempo anterior à Guerra.

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Este é o primeiro de uma série de três pequenos ensaios sobre O Arco-Íris da Gravidade. Os outros dois são Pökler e Prenunciando a jornada derradeira.

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PYNCHON, Thomas. O Arco-Íris da Gravidade. Tradução: Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

Treze

Filmes da minha vida. A lista é incompleta porque sou incompleto.

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0.

veja

Vá e Veja
[Idi i Smotri]
Elem Klimov, 1985

Um passeio na floresta. Aquele do qual nunca retornamos.

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1.

east

Vidas Amargas
[East of Eden]
Elia Kazan, 1955

São duas da manhã e estou sentado no tapete, próximo da TV. Próximo demais, pois não posso aumentar o volume sem acordar os meus pais. O filme dublado é sobre uma sucessão de afastamentos. A mãe, o pai, os irmãos. A narrativa ecoa o Livro, tanto que só a morte os aproxima.

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2.

GodfatherII

O Poderoso Chefão – Parte II
[The Godfather – Part II]
Francis Ford Coppola, 1974

Só é possível salvar a família perdendo-a. O vácuo de poder precisa ser preenchido com sangue. De novo, dois irmãos e um pai que já se foi. Ao final, o homem sozinho fita a extensão trevosa de seus domínios com os olhos que ele próprio vazou. É como se Édipo, ciente de tudo, insistisse em permanecer no trono. Uma inversão impossível, eu sei. Michael Corleone se sustenta no vazio.

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3.

bull

Touro Indomável
[Raging Bull]
Martin Scorsese, 1980

Ele não é um animal. Acaso o fosse, não seria animado pela raiva.

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4.

fmj

Nascido Para Matar
[Full Metal Jacket]
Stanley Kubrick, 1987

Na mecânica da guerra, as peças sangram. A cidade arruinada é uma sombra para além das chamas. Eles matam, marcham e cantam. Gigantes verdes escuridão adentro.

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5.

Birds

Os Pássaros
[The Birds]
Alfred Hitchcock, 1963

O grasnar e o bater de asas são a única música possível quando, arrancados os olhos, vislumbramos o Fim.

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6.

riobravo

Onde Começa o Inferno
[Rio Bravo]
Howard Hawks, 1959

Fundamentação de uma metafísica dos costumes.

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7.

chinatown

Chinatown
Roman Polanski, 1974

À beira do deserto, alguém morre afogado. O desfecho é particularmente feliz.

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8.

searchers

Rastros de Ódio
[The Searchers]
John Ford, 1956

Delimitado o espaço, podemos percorrê-lo. E, no que o percorremos, somos delimitados por ele.

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9.

ambersons

Soberba
[The Magnificent Ambersons]
Orson Welles, 1942

O primeiro filme que tomaram de Welles. A história de uma família contada pelas sombras, dela e dos outros. E toda história de família é uma história de terror.

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10.

amarcord

Amarcord
Federico Fellini, 1973

O telejornal noticiou a morte de Fellini. Depois, para homenageá-lo, anunciaram a exibição de Amarcord para logo mais, na boca da madrugada. Meu pai disse: “Eu vejo com você”. Nunca estivemos tão próximos.

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11.

ran

Ran
Akira Kurosawa, 1985

KING LEAR: Who put my man i’ the stocks? (Tucket within.)
Shakespeare, King Lear (Ato 2, cena IV).

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12.

bonnie-and-clyde

Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas
[Bonnie and Clyde]
Arthur Penn, 1967

Nunca morrer foi tão bonito.

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13.

5.0.3

O Batedor de Carteiras
[Pickpocket]
Robert Bresson, 1959

A transcendência possível em uma arte tão ancorada na imanência.

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Distopia brutalista

Resenha publicada em 31.03.2013 no Estadão.

battle

Distopias são frequentes na literatura e no cinema. O sucesso de Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e, antes, de investidas tão díspares (e bem superiores) como as de Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) e George Orwell (1984), se dá porque vivemos em um status quo mais ou menos similar. Nessa longa tradição distópico-literária, Battle Royale deve ser colocado em lugar de destaque. Violentíssimo e controverso, o best-seller assinado por Koushun Takami ganha, enfim, uma edição brasileira.

A história se passa em uma realidade alternativa. Estamos em 1997, em um Estado totalitário conhecido como República da Grande Ásia Oriental. Descrito como “um regime fascista bem-sucedido”, um “tipo peculiar de socialismo estatal, cujo ápice é o detentor do poder máximo denominado Supremo Líder”, o lugar faria Magda Goebbels chorar de emoção. Dentre as inúmeras ações governamentais opressivas, está “o pior jogo de dança das cadeiras de toda a história”, o Programa: uma simulação de batalha “instituída por razões de segurança e conduzida pelas Forças Especiais de Defesa”, onde “alunos do nono ano de escolas de ensino fundamental são selecionados aleatoriamente” e, claro, “forçados a lutar entre si até que reste apenas um sobrevivente”. Ao sobrevivente, o “vencedor”, será “assegurada uma pensão vitalícia e um cartão autografado pelo Supremo Líder”.

Lançado no Japão em 1999, Battle Royale teve duas adaptações para o cinema e também chegou aos mangás, em série roteirizada pelo próprio Takami. As semelhanças com Jogos Vorazes são claras, embora Collins tenha afirmado que sequer ouvira falar do romance japonês até finalizar o seu. No entanto, as diferenças talvez sejam mais significativas. Cito duas: o Programa não é televisionado; os “jogadores” não são estranhos entre si, mas colegas de sala, namorados, companheiros, pessoas que se conhecem há tempos. Ademais, Battle Royale comporta uma brutalidade que o afasta ainda mais da trilogia de Collins, comparativamente menos gráfica nesse quesito.

Nas quase setecentas páginas do livro, Takami dedica bastante tempo à maior parte dos personagens, explicando motivações, explicitando melhor e aos poucos determinadas circunstâncias e jogando com os diversos pontos de vista e as expectativas do leitor. Por mais que sofra de um certo didatismo (o psicologismo nem sempre funciona) e de um lirismo meio desajeitado nas cenas mais intimistas, é inegável o domínio do autor quanto à estrutura traçada, à cadeia de acontecimentos e à escalada aterradora de violência.

Entre os “jogadores”, há o trio protagonista (Shuya, Noriko e Shogo), um antagonista implacável (Kazuo) e uma vilã (Mitsuko) cuja complexidade talvez seja a melhor ou a mais tragicamente construída dentre os personagens. A história de Mitsuko, revelada primeiro como mentira e depois como verdade, guarda detalhes de uma sordidez insuportável e é um exemplo, pela forma com irrompe, do domínio narrativo de Takami: pela boca dela, é uma farsa; pela voz do narrador, não; e, depois, pensando retrospectivamente, pela boca dela é uma verdade excruciante, verbalizada em meio a uma farsa de que ela lança mão para sobreviver no Programa.

Em Battle Royale, acima de tudo, há uma espécie de trânsito entre diversas violências: do Estado como um todo; do Programa, cuja finalidade permanece obscura (“Invencionice de gente insana”, diz um personagem. “Como o país inteiro é absurdo, devemos considerar isso normal.”); e o modo como a violência escolar, cotidiana, de certo modo ecoa, milhões de graus acima, na brutalidade do “jogo”. Ao final, Takami opta por dar outro impulso à roda, criando um desfecho que reitera o trânsito citado e a força da distopia criada.

 

Na ausência absoluta

TD

O diálogo final em True Detective me fez repensar a série toda, sob uma perspectiva diferente. Há uma conotação religiosa (na acepção mais pura — e deiforme — do termo) muito forte ali. A partir do que Rust diz a Marty, imaginei o caminho empreendido pelo primeiro como o de uma longa, atabalhoada e dolorosa aceitação de D’us (embora ele possa e nós possamos nomear isso de outros modos, não importa; a ausência se diz de muitas maneiras). A descrição, belíssima e etérea (também na acepção mais pura do termo), que ele faz da sua quase-passagem diz muito desse encontro que é, em si, o signo da ausência: estar momentaneamente ali simboliza o quanto não estamos e o quão pouco estivemos, no Princípio. A dor que ele sente carrega a enormidade dessa perda e daquele afastamento original. Rust gostaria de desaparecer por lá, e é sincero ao reiterá-lo. “E andou Enoch com D’us e desapareceu, porque o tomou D’us”, lemos na Torá (Bereshit, 5:24). Rust não desapareceu, mas pôde vislumbrar algo da indescritível beleza do desaparição. Ausentou-se, mas não partiu. A dor que ele sente é tão maior porque durante muito tempo, tempo demais, transitou pelas imediações e afinal no interior da ausência absoluta de D’us, que é o próprio Mal. O contraste opera milagres. A visão do Mal e a sua compreensão, até onde é possível, possibilitaram que ele se voltasse, mesmo que precariamente, ao Princípio. Não há conforto nisso, pelo contrário. O desfecho de True Detective é dilacerador justamente porque nos abandona, outra vez, nos domínios daquela ausência absoluta. Rust sabe disso, e chora.