Livro sobre livros

Livro sobre livros

Sem

 

Quando o livro começa, as “lembranças ainda galopavam pelas ruas, dando tiros”. O avô da narradora é um político ligado a ninguém menos que Bárbara de Alencar, mãe de José Martiniano (pai do escritor) e Tristão Gonçalves, figuras importantes nas insurreições republicanas de 1817, a Revolução dos Padres, e de 1824, a Confederação do Equador. Dona Bárbara é descrita como alguém que “flanava num mundo de grandes tramas, fazia parte de tragédias, disputas, da craveira de forças”, que perdera “as fazendas com as duas guerras republicanas”, além do irmão, dois filhos e vários parentes naquele “território de guerras, desde as armadas contra vermelhados, em sua infância, incêndios de tabas guerreiras, assaltos e massacres, centenas de cabeças rolando pelo chão, foi o que ela herdou, e herdamos”. Como se vê por esse pequeno trecho, a contextualização histórica não é didática, mas intestina. É um dos pontos fortes do livro.

— Trecho da minha resenha de Semíramis, de Ana Miranda, publicada n’O Estado de S. Paulo em 15.03.2014. Clique AQUI e leia na íntegra.

"Acontece com todo mundo."

Excerto de Como desaparecer completamente
[Rocco, 2010]

desaparecer

Ela disse à colega que não se preocupasse:
“Vou eu mesma buscar os livros.”
Vestiu o casaco e, ainda no elevador, decidiu que iria caminhando. Meia hora, talvez menos. O único problema: subir até a Paulista. Um arco íngreme de concreto da José Maria Lisboa ao Trianon. Tênis nos pés: sorriu para eles. De salto seria impossível. Mesmo assim, as pernas aqui e ali ameaçando não responder, mais e mais pesadas, como se quisessem empurrá-la de volta ou para baixo, ladeira abaixo. Um passo após o outro, lerdos, ao fim quase se arrasta, mas chega ao topo. Dois minutos parada na esquina, todo o fôlego do mundo para recuperar. Velha, pensa. E pensa em comprar água, mas não conseguiria engolir. A garganta pregada, ela toda pálida, meio trêmula, com vergonha de si. Café. Tivesse pegado um táxi e o quê? Café e cigarros. Aquela culpa. Café e cigarros e carne vermelha. Devia ter ido andando, pensaria. Café e cigarros e carne vermelha e sedentarismo. Mas, sempre que sobe a pé, é esse tal desfalecimento. Café e cigarros e carne vermelha e sedentarismo e álcool. Deitar sob uma árvore do Trianon. Outro nome antes, como era? Um velho professor dizia: “Siqueira Campos”. Mudou quando? Meio ameaçador visto de fora, não? Algo escuro. Estupros ali dentro? Malfeitores à espreita: a boceta ou a vida. Mas nunca soube de nada. Embora não frequente as páginas policiais nem com os olhos. Prefere não saber. Recusa-se a ler e a ouvir histórias escabrosas. Uma amiga estuprada aos quinze. Mas foi um primo dela, devidamente punido: ao seminário. Hoje, um padre feliz? Os clichês que. O ar ficando mais leve. Poderia dizer as horas, se alguém perguntasse. Sim, agora já seria capaz disso. Mas as pessoas não perguntam as horas em São Paulo, perguntam? Orientações espaciais, quando muito. Como chegar a? Paulistanos e seus relógios internos. Agendas eletrônicas grudadas nas vísceras. Sei exatamente aonde estou indo e para quê. Todos sempre indo a algum lugar. Mesmo os mendigos. Todos ocupados. Então, ela se lembra de que também está indo a algum lugar. Um passo de cada vez. As pernas ora duras, ora bambas, bobeando, como se não fossem dela. Na Paulista, afinal. Uma moça logo à frente. Cabelos lisos. Prefere as de cabelos cacheados. Uma ruiva de cabelos cacheados: sonho de consumo. Os pelos ruivos também. Toda ruiva. Vasta cabeleira pubiana. Morenas e loiras e negras, prefere-as raspadinhas. As voltas que a língua dá. Mas uma ruiva, não. Vastíssima cabeleira ruiva. A moça não rebola. As mulheres, o que há? Não rebolam mais. Só as meninas, crianças de 11, 13 anos. Maquiadas. O futuro, a quem pertence? De fato, nunca com uma ruiva. Quantas ruivas conhece? Nenhuma, ou não se lembra de. Passando pela rua, alguma? Tem de haver alguma, está na Paulista. Não é possível. Quando atravessa a Haddock Lobo, uma ruivinha. Onze, 12 anos? Uniformizada, São Luís. Cresce logo, menina. Velha, pensa. Pernas duras, terá cãibras depois, com certeza. A menina aperta o passo e dobra à direita na Bela Cintra. Quando chegar à esquina, já estará longe. Pessoas da sua cidade. Sobre o que conversar com menininhas? “My Humps”? Elas têm nojo de certas coisas, dizem. As novas gerações. Mas como é que dizem por aí? Experimentando. Com Cecília, pelo que se lembra, não começou assim.
Minha primeira namorada: Cecília.
Vizinhas, famílias vizinhas. Crescendo juntas. Todo mundo, depois de um certo tempo, ora, todo mundo sabia. Mas, claro, não se comentava. As meninas trancadas no quarto. As meninas o tempo todo juntas. As meninas, tão amigas. Dezoito anos. Claro, uma relação aberta. Mas 18 anos. No que a piada, ela pensa e começa a rir no meio da rua, a piada, corretíssima: dykes não têm casos, não ficam, não enrolam, não; dykes se casam.
As famílias em suas respectivas salas, em seus respectivos sofás, diante de seus respectivos aparelhos de televisão, não comentando. Filhas únicas. Tomando todo o cuidado do mundo para não comentar.
Não.
Não as famílias. A família de Cecília, apenas. Porque a família de Augusta: ela e a mãe, e só. A mãe, mesmo não comentando, jamais as censurou. Um outro tipo de silêncio. Um silêncio que não machucava, diferente do silêncio dos pais de Cecília. O silêncio confortável de sua mãe contraposto ao silêncio áspero, pontiagudo, dos pais de Cecília.
Completaram 18 e foram morar juntas. Não têm casos, não ficam, não. Casadas, sim. Uma relação aberta, mas Cecília advertia:
“Com quem você quiser, menos com homens, por favor.”
Sem problemas. Nunca teve mesmo (muito) interesse. Ou curiosidade. Tão amigas. Até que a morte as separe. Quase vinte anos sob o mesmo teto, dos 18 aos 36, e, antes, quando eles não comentavam, dois anos de educação lesboafetiva. Até que.
Ora, não era para sempre? Como você pôde?
Cecília naquele quarto, naquela cama. Martirizada, feito o quê? Uma santa. Dizendo pouco antes de:
“Acontece com todo mundo.”
E aconteceu com ela, Cecília.
“O tempo todo.”
Nosso primeiro beijo, pensa: Foi bom.
Nosso último beijo, pensa: Foi só meu.
O primeiro beijo foi na pré-escola, as tias assustadas, irritadas, não sabendo o que fazer. Dizendo:
“Não pode, não. Vocês duas, menininhas. Não pode beijar na boca, não. Ouviram? Não pode, viu? É feio.”
Ela e Cecília, de mãos dadas:
“Sim, entendemos.”
O primeiro beijo, mas e o último?
O último, ela pensa: O último foi só meu.
Aquele barulho estranho, o traço no monitor e o médico entrando esbaforido e fazendo o possível, estão sempre fazendo o possível, e dizendo em seguida:
“Fizemos o possível. Sinto muito.”
Ela então se abaixou e colou os seus lábios nos de Cecília:
“Adeus, mulher.”
Acontece com todo mundo. O tempo todo. Mesmo quando fazem o possível. Mesmo com todos eles fazendo o possível, acontece.
A moça. Uma moça. Ruiva? Não.
Uma moça está caída na esquina da Bela Cintra com a Paulista. Horário de almoço, algum risco de ser pisoteada? Atravessar a rua até a outra calçada onde ela jaz. Estatelada. Talvez alguém a ajude antes. Caída à entrada de uma farmácia. Uma jovem de branco, a farmacêutica de plantão se abaixando e fazendo o que é preciso, fazendo o possível? Não, ninguém. Todos muito ocupados lá dentro. Aproveite o seu horário de almoço. Cremes, loções, absorventes, ansiolíticos. Longas e belas pernas, inacreditável como nenhum engravatado engraçadinho tenha se disposto a dar uma ou duas mãos. Não é ruiva, contudo. Branca, cabelos pretos bem curtos, parece bonita. Mas não é ruiva. Pena.
Verde.
Atravessa a rua e se aproxima da moça e se abaixa:
“Ei. O que você tem?”
Olhos bem abertos, a voz clara:
“Não muito.”
“O que aconteceu?”
“Eu caí.”
“Te assaltaram? Alguém te acertou?”, pergunta e olha para os lados, apreensiva.
“Não.”
“Não?”
“Fiquei tonta e caí.”
“Tonta?”
“Tonta.”
“Consegue ficar de pé agora?”
“Não sei. Meio tonta.”
“Quer vomitar?”
“Acho que não. E você?”

Outro filme de amor

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O plano de abertura de Educação Sentimental, um dos mais belos de toda a filmografia de Julio Bressane, remete ao mito de Endimião: uma mulher observa um rapaz lá embaixo, boiando na piscina. Ela se chama Áurea e ele, Áureo. Muito culta, em longas conversas e crescente intimidade, a mulher mais velha educará o rapaz.

A educação, no caso, é mais propriamente afetiva do que “escolar”. O conjunto de porcelanas francesas do século XVIII precisam ser vistos e tocados. A canção de Vassourinha precisa ser dançada. Os limites da racionalidade são ilustrados por uma história próxima, e próxima demais, sobre como a mãe de Áurea, doutora em Filosofia, recusou-se a dar aulas, publicar, compartilhar.

Áurea procura demonstrar um modo de contornar essa cegueira. O intelecto não deve prescindir das demandas do corpo. Ela incessantemente procura ligar uma coisa e outra e constituir, com elas, uma mesma dança. Quando o verbo falha, o corpo é lançado no proscênio. Ela dança a própria história da arte. Nós “ouvimos”.

E, ao contrário do que ocorre no mito, é como se esse Endimião fosse condenado não ao sono eterno, mas, sim, a um despertar. Tal despertar se dá para coisas cujo anacronismo é evidenciado na cena em que ela mostra a ele um pequeno rolo de filme, essa “velharia” em tempos digitais, ou na já citada sequência ao som de um belíssimo samba de Vassourinha (1923-1942).

Diferentemente do que Áurea proclama com o negativo em mãos, talvez não estejamos diante de um “museu”, mas de um inventário de “sensibilidades perdidas”. Entre elas, figura o amor: o envolvimento deles será conspurcado pela intromissão da mãe do rapaz e seu discurso que pretende chocar (incesto, drogas, orgias, suicídio), mas cuja falsidade é corretamente aludida por Áurea como “pornográfica”.

Há, portanto, dois tipos de falsidade em confronto: aquela artisticamente construída (os minutos finais do filme são uma espécie de making of), representada pelo próprio filme, e a outra, na qual a violência flerta com o patético, exemplificada no teatrinho armado pela mãe enciumada.

Com tudo isso, gosto de pensar que o filme se coloca, desde o mais óbvio (texto, antinaturalismo das atuações), como um signo de sua própria inviabilidade. A exemplo do amor entre Áurea e Áureo, e entre Selene, a lua, e Endimião, há algo de inexequível nele. Sua beleza maior está nisso.

O que ela sabe não “serve” para nada. A disposição dele para ouvir, contudo, é a própria argamassa do amor, seja por ela, seja pelo corpo dela, seja pelo conhecimento que ela procura compartilhar, ensinar, seja por tudo isso ao mesmo tempo. Bressane nos pede essa mesma disponibilidade. A partir do momento em que nos dispomos, a sedução tem início. Num certo sentido, todos os seus filmes são filmes de amor.

"Ele me chamou pelo meu primeiro nome"

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“O pastor e o médico são o coração de toda comunidade”, diz a mãe do narrador em Americana. É o romance de estreia de Don DeLillo e a mulher está prestes a contar algo terrível a seu filho. O lugar da confidência e a imagem daquela que a profere são muitíssimo bem preparados.

A mulher é quase um fantasma. Seu quarto é cheio de objetos infantis, bonecas, uma casinha, ursos de pelúcia, livros coloridos. Ela tem “uma luz cansada nos olhos” e, às vezes, “sua presença na casa parecia acidental”. Eles estão sozinhos, sentados nos degraus. Tarde de verão, a luz do sol inundando a casa.

A mãe diz que, em sua família, sempre houve médicos e pastores respeitabilíssimos. Os médicos, aliás, vinham logo atrás dos homens de D’us em termos de respeitabilidade. Eis a razão da “surpresa” causada pelo dr. Weber, alguém que se revelou indigno daquela tradição. Ela, então, conta ao filho o que aconteceu, antes ressalvando que, se o faz, é porque um dia ele entenderá que “a verdadeira educação é feita de choques e rudes surpresas”.

Ela explica rapidamente como se dá o exame de suas partes íntimas. “Não me pergunte por quê, mas essas coisas são necessárias de tempos em tempos.” Ela sublinha o desconforto inerente às circunstâncias. A “grande mesa engraçada” onde se deita; as pernas abertas e lançadas para o alto; o travesseiro na barriga para que ela não veja “o que ele está fazendo lá embaixo”. “Posso dizer que não há muita dignidade em nada disso.”

Então, o médico começou a “fazer coisas”.

“Ele me pergunta se eu gosto. Eu naturalmente digo que não. Ele diz é claro que sim, todo mundo gosta”, e a “elogia” por continuar a ser uma “coisinha linda e jovem” mesmo após três filhos, três gestações e ainda “tão jovem e linda”, e “você gosta e é claro que você gosta e você é a mulher mais linda que eu já vi, Ann, e ninguém nunca vai saber”.

A confidência é encerrada com uma frase que simboliza, para ela, toda a violência sofrida e que agora compartilha com o filho: “Ele me chamou pelo meu primeiro nome”.

A qualidade fantasmagórica da mãe falha momentaneamente. Por alguns momentos, não há nada de “acidental” em sua presença, seja diante do filho, seja à mercê do médico. Ela é aquele corpo, e um corpo horrendamente violentado.

As palavras mal traduzem o inferno. O “choque” advindo da “rude surpresa” silencia todo o resto. O narrador evita tecer qualquer comentário. Não há o que dizer. É a voz da mãe e, então, nada.

No hiato

Dices que nada se pierde
y acaso dices verdad,
pero todo lo perdemos
y todo nos perderá.

Antonio Machado

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The Counselor, aqui rebatizado como O Conselheiro do Crime, é sobre um homem condenando-se a um hiato de dor inaudita que se prolongará pelo resto de sua vida. Ou seja, ele para sempre estará encalacrado na passagem entre o mundo de onde veio e um outro, com o qual flertou. Como alguém trata de lembrá-lo a certa altura, as escolhas foram feitas lá atrás.

Logo, o que o filme de Ridley Scott (roteirizado por ninguém menos que Cormac McCarthy) oferece é o estabelecimento gradual da realidade de um certo mundo, aquele outro, realidade que o personagem-título deveria conhecer antes de fazer suas escolhas. Ele quer ganhar uma bolada com uma transação de drogas. É um neófito. Algo sai errado e, claro, os chefes do cartel mexicano cobrarão a fatura. Cabeças arrancadas. Corpos em barris.

Enquanto assistia ao desespero crescente (e mais do que justificado) do pobre coitado, pensei no que o irmão de “Nucky” Thompson diz ao próprio em um episódio de Boardwalk Empire: “Não dá pra ser meio gangster”. Ou se é por inteiro, ou não. É o que lhe diz, noutras palavras, o intermediário do negócio. É o que todos lhe dizem.

Há um certo parentesco do protagonista com o Llewelyn de No Country for Old Men. Ambos passeiam por uma realidade que não admite tal expediente. Colocando-se naquele hiato, eles acabam partidos ao meio. E, olhando daqui, a reação do outro é sempre desproporcional, engolindo não só o passeador como, também, os que estão ao seu redor. O mundo de Llewelyn e dos seus cessa com a morte de cada um deles. O mundo do advogado, desgraçadamente, não cessará tão cedo.

Assim, na medida em que encarcera o advogado no dolorosíssimo intervalo entre dois mundos, o filme também restitui à morte algo de sua relevância. Tal relevância, claro, é tão maior e evidente quanto a dor do personagem. Ele se torna o que perdeu; a perda passa a ser todo o seu mundo, o qual, reitero, não cessará tão cedo.

E, como diz alguém a certa altura, o luto é algo sem valor, pois não pode ser trocado ou vendido. O luto é inegociável. A partir do momento em que alguém é constituído única e exclusivamente pelo luto, tal pessoa apresenta-se-nos sem valor, pois ela é o que lhe foi arrancado. Ele é o que não é mais, o que deixou de ser, o que partiu, está ausente.

Não por acaso, o filme é dedicado ao irmão de Ridley Scott, o também cineasta Tony, que se matou em agosto de 2012.

O lado noturno

Resenha publicada em 07.02.2014 no Estadão.

rei

Se imaginássemos um filme baseado nos ensaios de O Rei se Inclina e Mata, ele talvez recorresse a um close no rosto da autora, a romena de origem e expressão alemãs Herta Müller, cuja voz ouviríamos lendo os textos sem que, contudo, os lábios se movessem. Ao se debruçar sobre o passado e, ao mesmo tempo, problematizar a capacidade da linguagem para uma tarefa dessa natureza, ela sabe que está se dirigindo a um espaço onde “as palavras não podem permanecer” ou mesmo alcançar, mas ao qual é impossível deixar de referir-se.

Müller foi perseguida pela ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, interrogada inúmeras vezes, teve amigos assassinados e sofreu barbaridades nas mãos desse “rei do Estado” que, ela escreve no ensaio-título, “regateia no limiar entre a vida e a morte: atira os que se lhe tornaram incômodos secretamente da janela, embaixo de trens ou carros, de pontes de rios, pendura-os na corda, envenena-os – encena seu suicídio como suicídio”. A experiência da repressão aparece intimamente ligada à da expressão. Esta é paradoxalmente alimentada por aquela.

Há nove ensaios em O Rei se Inclina e Mata, e todos, direta ou indiretamente, dizem respeito à relação conflituosa, dolorida e no mais das vezes incompleta entre experiência e relato. “O vivido enquanto acontecimento não está nem aí com a escritura, não é compatível com as palavras”, ela escreve em “Se nos calamos, tornamo-nos incômodos – se falamos, tornamo-nos ridículos”. E, no entanto, por conflituosa, dolorida e incompleta que seja tal relação, remontar ao passado por meio da escrita torna-se imprescindível justamente porque presente e passado “se entrecruzam e tiram sentido um do outro” o tempo todo, ainda que se distorçam “numa dimensão inesperada”, conforme lemos em “Pegar uma vez – largar duas”.

Nascida em um vilarejo romeno da região do Banat, povoado pela minoria alemã historicamente conhecida como “suábios do Danúbio”, Müller viu-se desde cedo lançada no “lado noturno da garganta”, aquilo que “levianamente se denomina história”: seu avô, outrora um rico proprietário de terras e comerciante, teve os bens confiscados pelo regime comunista; o pai lutou na Segunda Guerra Mundial como soldado da Waffen SS, fato que depois tentaria anestesiar com a bebida; a mãe foi mantida prisioneira por cinco anos em um campo soviético de trabalhos forçados.

Os lábios não se movem, mas a voz muda da escrita alcança desde as lembranças mais remotas até o cotidiano em Berlim, cidade para onde Müller emigrou e na qual seguiu confrontada com a estranheza advinda do que é familiar. Um anúncio publicitário irresponsável, em que uma mão é pisada por um sapato, é o mote para que ela reflita sobre como a brutalidade oblitera a beleza (no ensaio “Em cada língua estão fincados outros olhos”). A vizinha reclama que é acordada pela filha de três anos no meio da noite, querendo brincar com uma ovelha de pano, chama isso de “um verdadeiro terror” e afirma que “o serviço secreto romeno não poderia ter inventado nada pior”. Para nossa surpresa, a tal vizinha é historiadora. “Devo dizer-lhe que o serviço secreto romeno não queria brincar de boneca de pano comigo?”, pergunta-se a autora (em “Aqui na Alemanha”).

Agraciada em 2009 com o Prêmio Nobel de Literatura, Müller tem plena compreensão do caráter movediço da linguagem. Entre o incômodo do calar e o ridículo do falar, ela opta pelo trânsito silencioso da escrita, o “caminho sobre o cume, entre o revelar e o manter em segredo”. É só por aí que parece possível divisar algo naquele lado noturno.

Mobília revirada

quando

Quando eu era vivo foi descrito/vendido/rotulado por aí como um “filme de terror com a Sandy”. Felizmente, o longa de Marco Dutra tende a frustrar a ralé que vai atrás de um Atividade Paranormal brasuca e dá de cara com um sobrinho-neto de Roman Polanski. A questão é sempre a ideia que o “público em geral” (esse monstro de muitas cabeças e bem poucos olhos) faz do que seja um “filme de terror”, gênero dos mais ricos e variegados, capaz de comportar desde os zumbis de George Romero até um móvel de couro durabilíssimo como O Massacre da Serra Elétrica original, passando pela sutileza do já citado Polanski (O Bebê de Rosemary, Repulsa ao Sexo, O Inquilino).

O filme anterior de Dutra, o ótimo Trabalhar Cansa, já flertava com elementos do gênero de forma inteligente. Ali, tínhamos ambientes comuns (apartamentos de família, o mercadinho da esquina) cuja familiaridade era paulatinamente desmontada (oi, Roman). Em Quando eu era vivo, o procedimento é similar, mas o estranhamento é levado a um outro extremo. O Mal está encarnado na família, e o que acompanhamos é um lento e doloroso processo de desvelamento.

Alguém escreveu que um dos problemas do filme seria ele “não se assumir” como um “filme de terror”, o que é uma besteira. A essa altura, um cineasta bem informado como Dutra tem toda a liberdade para se servir dos elementos que lhe apetecer, e não só do gênero em questão, para colocar seus filmes de pé. Um juízo esdrúxulo desses tem a ver com aquela ideia pré-concebida de como filme e gênero devem ser para “funcionar”. O crítico vai ao cinema não para se deixar levar pelas imagens e depois refletir sobre o que viu, mas, sim, para ser “agradado” ou “desagradado” conforme suas expectativas.

(Aliás, é um problema enorme isso de o fulano já entrar no cinema com uma ideia bem clara do que esperar. Assistir a um filme serve não para experienciar algo, para estar aberto a, mas para confirmar tais e tais preconceitos, isto é, ensejar um fechamento. Tanto isso é verdade que não é raro um crítico “entender incompreendendo” esse ou aquele filme. Um exemplo: as reclamações de que O Lobo de Wall Street, um filme (irrepreensível, reitero) sobre o excesso, seja assim tão over.)

O cinema de Dutra, no modo tranquilo como brinca com elementos de diversos gêneros, incluindo o terror, pede que recuemos dois ou três passos a fim de observá-lo melhor. Aliás, a própria e aparente tranquilidade na condução de Quando eu era vivo é, em si, um indicativo do olhar que pede mais do que uma mera reação. O filme se deita e respira pausadamente. Sua monstruosidade repousa naquele estranhamento doméstico, no arrastar de cadeiras, nos berros que ecoam pelo centro da cidade, no remobiliamento do lar, no remexer de caixas e memórias, no resgate de algo que provavelmente nunca existiu, jamais esteve lá.

"Penélope"

Penélopecapa

“Penélope veio subindo pela Cardoso de Almeida e então dobrou à direita na Bartira. Ela tinha descido do ônibus dois quarteirões abaixo, um pouco antes da esquina com a Homem de Mello, o trajeto sem sobressaltos desde a Paulista. No ônibus, ao passar pelo túnel sob a Consolação, ela fechara os olhos e imaginara uma onda gigante os acertando em cheio, as janelas se rompendo, o ônibus girando e girando debaixo d’água, sons de ferros retorcidos, mas as pessoas ali dentro seguiam tranquilas, sentadas ou em pé, enquanto a água invadia tudo e as fazia flutuar. Devia ser sempre assim quando chove, pensava. São Paulo submersa. O mundo submarino da Paulistânia. Já não é assim, de certa forma? Estamos todos afogados.”

Trecho de Penélope, um conto.
É o segundo lançado pela coleção Formas Breves, organizada por Carlos Henrique Schroeder e lançada pela E-Galáxia.
PARA COMPRAR Penélope em formato eletrônico e por uma pechincha, basta escolher a loja de sua preferência: AmazonLivraria CulturaApple Store, Google Play, iba ou Saraiva.

"… to miss New Orleans?"

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Treme chegou ao fim junto com 2013. O quinto e último episódio da derradeira temporada (a quarta) foi ao ar no dia 29 de dezembro. A série de David Simon e Eric Overmyer foi um desdobramento natural do tipo de coisa que eles fizeram em Baltimore com The Wire (esta, para o meu gosto, a melhor coisa já feita em televisão).

A cidade, dessa vez, foi New Orleans, e Treme acompanhou os anos imediatamente posteriores à passagem do furacão Katrina por meio de um bom número de personagens (músicos, jornalistas, advogados, professores, especuladores imobiliários, bons e maus policiais, políticos etc.).

Para se ter uma ideia do quanto eu me senti próximo da série, posso dizer que jamais teria escrito Terra de casas vazias da forma como escrevi se não a tivesse visto. A ideia de acompanhar aqueles personagens sem, contudo, rasgar a narrativa com um clímax, mas simplesmente seguindo-os por um determinado tempo, como quem recorta um pedaço das vidas dessas pessoas, sem forçações de barra, tornou-se clara para mim a partir do momento em que assisti aos primeiros episódios de Treme.

Há uma sofisticação na maneira como a série se deixa levar que só acho comparável à de The Wire. Ao se recusar a tecer arcos narrativos tradicionais, explorar coincidências obtusas, mergulhar em dramalhões e esboçar reviravoltas estrondosas, Treme atinge uma verdade e uma decência que, embora nos saltem aos olhos em seus melhores momentos (e eles são inúmeros), jamais nos gritam aos ouvidos. Com tranquilidade e parcimônia, ela nos aproxima dos personagens e permite que vivenciemos um pouco de suas vidas, até onde isso é possível.

Dois bons exemplos das extremas sutileza e inteligência com que Treme foi conduzida, ambos pinçados da última temporada: a cidade em polvorosa, comemorando a vitória de Barack Obama em 2008, e alguém sai de um bar, chega ao meio da rua e, por acaso, olha para as esquinas acima e abaixo, observando, em cada uma delas, uma ou mais viaturas de polícia, numa espécie de cerco indicando que, bem, nada vai mudar; a despedida do personagem de David Morse, pegando a estrada  e tendo a exata noção da saudade que sentirá de New Orleans quando o rádio do carro, sintonizado em uma estação da cidade, começa a falhar.

Falham também as palavras, sempre, e no lugar delas entra a música ou, em alguns casos, o silêncio. Ainda na primeira temporada, quando um personagem se mata, não o vemos saltar da barca, mas, sim, o vazio deixado por ele. No gesto e na forma surda como ele é mostrado, está evidente a impossibilidade daquele homem continuar vivendo naquela cidade tal e qual ela se apresenta após o desastre. O espaço é contaminado pela violência gratuita e pela corrupção. De certa forma, ele não salta, mas é lançado. E sabemos de tudo isso não porque a coisa é dita, mas, sim, porque ela é mostrada, e genialmente.

É óbvio que tal estruturação tem muito da música que preenche boa parte da cada episódio (Tremé, aliás, é o bairro de New Orleans onde nasceu o jazz). Mais do que isso, é uma opção que possibilitou construir uma topologia dramatúrgica sem igual, conforme à cidade e respeitando a sua diversidade. O acúmulo de recortes redunda em um mosaico que, embora extenso, jamais se pretende completo ou definitivo. Acima de tudo, Treme celebra a incompletude.

Na terra impassível

Quem há de falar os segredos da terra impassível?
Whitman

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E. M. Forster recorreu a Walt Whitman para intitular o último romance que publicou em vida, Passagem para a Índia. David Lean recorreu a Forster para realizar seu derradeiro filme, homônimo, lançado em 1984. Entregou-se à tarefa com o mesmo desprendimento com que a sra. Moore (Peggy Ashcroft), personagem capital, entrega-se à sua viagem derradeira. Ambos não precisavam provar mais nada.

O cineasta soube perceber a sutileza extrema do romancista, o modo único como ele desenrola o enredo, as passagens (de situações, de tons, de vozes) sucedendo-se sem atropelos. É mesmo o caso de um mestre da narrativa encontrando outro. As soluções encontradas por Lean para traduzir visualmente alguns eventos e, o que é ainda mais difícil, estados de espírito complexíssimos são dignas do grande artista que ele foi.

Começo por um exemplo dos mais simples: quando, assistindo a um jogo de pólo, Adela (Judy Davis) diz a Ronny (Nigel Havers) que seria melhor que eles rompessem o noivado, Lean recorre a um plano de inserção (alguém caindo do cavalo) que traduz algo mais do que os sentimentos dos personagens. Um corpo se estatela no chão, em meio à poeira, e a imagem resume muito bem o que está por vir.

Depois, naquela que é a cena mais complicada, quando Adela sofre o surto histérico numa das grutas de Marabar, para além de toda a encenação (tornada primorosa pela atuação de Davis e, claro, pela mise-en-scène de Lean) da ocorrência em si, temos a ressonância desta quando, após um corte seco, vemos um nada de água suja escorrendo lá fora, sob o sol, de um tanque onde, um pouco antes, banhavam um elefante.

A água, aliás, seja do Ganges, seja do mar, suja ou limpa, sustenta boa parte das inserções e desses planos de passagem. Ela diz respeito tanto à dolorosa transitoriedade de tudo, compreendida até os ossos pela sra. Moore quando se vê enredada pela escuridão das grutas (e tudo o mais é escuridade, pois não?) quanto à caracterização da personalidade liquefeita de Adela, pivô de toda a confusão.

A impassibilidade da Criação é pisada e repisada, para além ou aquém da atribulação humana. Em um matagal, enquanto pedala, Adela se depara com estátuas e restos de estátuas, incluindo a de duas figuras que parecem foder, e é imediatamente “expulsa” dali. Sua psicologia perturbada é incapaz de lidar com as demandas do corpo. Antes, ao chegar à cidade, ela entrevê um cadáver que é carregado em meio à multidão. Depois, nas grutas, horroriza-se com a imagem do dr. Aziz à entrada, gritando por ela, que parece justamente sepultada ali ou, melhor dizendo, em si mesma. 

Filmando décadas após a publicação do romance e a derrocada do Império Britânico, Lean opta por passar ao largo das questões políticas (embora elas ainda se façam muito presentes). Importam a escuridão abrasiva, o calor, a luz empoeirada, as despedidas, o fim. Importam o corpo e até onde ele consegue ir, se até o outro ou não.