Na terra impassível

Quem há de falar os segredos da terra impassível?
Whitman

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E. M. Forster recorreu a Walt Whitman para intitular o último romance que publicou em vida, Passagem para a Índia. David Lean recorreu a Forster para realizar seu derradeiro filme, homônimo, lançado em 1984. Entregou-se à tarefa com o mesmo desprendimento com que a sra. Moore (Peggy Ashcroft), personagem capital, entrega-se à sua viagem derradeira. Ambos não precisavam provar mais nada.

O cineasta soube perceber a sutileza extrema do romancista, o modo único como ele desenrola o enredo, as passagens (de situações, de tons, de vozes) sucedendo-se sem atropelos. É mesmo o caso de um mestre da narrativa encontrando outro. As soluções encontradas por Lean para traduzir visualmente alguns eventos e, o que é ainda mais difícil, estados de espírito complexíssimos são dignas do grande artista que ele foi.

Começo por um exemplo dos mais simples: quando, assistindo a um jogo de pólo, Adela (Judy Davis) diz a Ronny (Nigel Havers) que seria melhor que eles rompessem o noivado, Lean recorre a um plano de inserção (alguém caindo do cavalo) que traduz algo mais do que os sentimentos dos personagens. Um corpo se estatela no chão, em meio à poeira, e a imagem resume muito bem o que está por vir.

Depois, naquela que é a cena mais complicada, quando Adela sofre o surto histérico numa das grutas de Marabar, para além de toda a encenação (tornada primorosa pela atuação de Davis e, claro, pela mise-en-scène de Lean) da ocorrência em si, temos a ressonância desta quando, após um corte seco, vemos um nada de água suja escorrendo lá fora, sob o sol, de um tanque onde, um pouco antes, banhavam um elefante.

A água, aliás, seja do Ganges, seja do mar, suja ou limpa, sustenta boa parte das inserções e desses planos de passagem. Ela diz respeito tanto à dolorosa transitoriedade de tudo, compreendida até os ossos pela sra. Moore quando se vê enredada pela escuridão das grutas (e tudo o mais é escuridade, pois não?) quanto à caracterização da personalidade liquefeita de Adela, pivô de toda a confusão.

A impassibilidade da Criação é pisada e repisada, para além ou aquém da atribulação humana. Em um matagal, enquanto pedala, Adela se depara com estátuas e restos de estátuas, incluindo a de duas figuras que parecem foder, e é imediatamente “expulsa” dali. Sua psicologia perturbada é incapaz de lidar com as demandas do corpo. Antes, ao chegar à cidade, ela entrevê um cadáver que é carregado em meio à multidão. Depois, nas grutas, horroriza-se com a imagem do dr. Aziz à entrada, gritando por ela, que parece justamente sepultada ali ou, melhor dizendo, em si mesma. 

Filmando décadas após a publicação do romance e a derrocada do Império Britânico, Lean opta por passar ao largo das questões políticas (embora elas ainda se façam muito presentes). Importam a escuridão abrasiva, o calor, a luz empoeirada, as despedidas, o fim. Importam o corpo e até onde ele consegue ir, se até o outro ou não.