Paz na terra entre os monstros

OITO CONTOS + UMA NOVELA
Rio de Janeiro: Record, 2008.

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PARA COMPRAR:

AMAZONSUBMARINO

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RESENHAS ETC.

Por EDER ALEX
Café com Traça – 10.05.2014.

Isso de gostar de ler e de assistir filmes fez com que eu criasse uma grande habilidade em ser um tanto ridículo, haja vista que marmanjo chorando é sempre um troço meio constrangedor, isso porque algumas obras “botam a gente comovido como o diabo”. Drummond ficava assim com a lua e o conhaque, o que é bastante justo, já eu fico assim não só numa sessão de “Toy Story 3” lotada de crianças rindo, o que não é tão justo, mas também, e principalmente, com livros que alcançam beleza pela uso da linguagem (não passo ileso pela leitura de “Primeiras Estórias”, do Guimarães Rosa, por exemplo) e pela maneira com que fazem eu me enxergar vivendo tudo aquilo. A leitura é um treco meio egoísta nesse sentido, é a vida de outro ali, mas a gente quer sempre se enfiar no meio. Mas é assim que a coisa toda faz sentido e fala direto ao nosso peito.
Dito isso, eu não estava preparado para “Paz na terra entre os monstros”. Já tinha lido “Dentes Negros”, do mesmo autor, um livro pós-apocalíptico que se aproxima de “A Estrada” do Cormac McCarthy, no sentido de priorizar o vazio, a solidão e a falta de sentido da porra toda, e também acompanhado o blog, em que ele escreve principalmente sobre livros e filmes. Há um estilo no livro e nos textos na internet, que direciona um olhar atento bastante sensível para as coisas do mundo, estilo esse que sempre gostei e acabei me acostumando. “Paz na terra entre os monstros” mantém, é claro, a sensibilidade intensa, só que numa versão bem mais hardcore. É como se Leones chafurdasse o esgoto humano e saísse de lá com uma poesia linda e imunda. A existência aqui é experimentada através de uma intimidade dolorida com a morte, aquilo que nos torna indivíduos surge em forma de desapego ao que amamos ou é expelido através das nossas próprias secreções, feito sobras de solidões líquidas.
É um livro de contos e acho que os personagens não chegam a se repetir (“O castelo”, romance inacabado do Kafka, surge aqui e ali, entre protagonistas que se sentem tão incompletos quanto), mas há um forte diálogo entre temas e ambientes, fazendo com que esses mundos se colidam e formem um só corpo bastante coerente, mesmo mantendo um espírito caótico.
Neste universo criando por André de Leones, tudo é muito sombrio e a vida parece sempre estar há poucos centímetros do abismo. O desencanto corrói aquelas almas e estabelece um desinteresse generalizado em seguir em frente. A garçonete que sabe que vai morrer, o pai sozinho na sala, a garota que sofre abusos, todos eles já atravessaram a linha do limite há muito tempo e é justamente por olharem pra trás que acabam dando o passo à frente, rumo ao nada.
Todas essas histórias vão armando uma arapuca para um leitor dado ao ridículo como eu, pois criam uma ambientação toda melancólica, toda meu-deus-como-essa-vida-é-uma-merda e vão amarrando alguns nós bem marotos ali na garganta. E como se não bastasse o belíssimo conto “Acho que agora não falta ninguém”, sobre um garoto que não consegue sentir nada após a morte do pai, ter me deixar com os olhos de um jeito que fez provavelmente a moça do café pensar que eu tinha acabado de fumar maconha, o livro fecha com a novela “Aneurisma”, um petardo que reúne praticamente toda a dor dos outros contos num só combo de desespero e solidão, com copo tamanho grande.
A história é sobre homem que, por conta de um diagnóstico, sabe que vai morrer — como todos nós, no fim das contas — e passa então a tentar se conectar com o mundo, seja sexualmente (e aí o autor tem a sacada fodona de inserir o tabu que não serve como fuga da realidade, mas como aproximação quase incômoda desta) ou mesmo se aproximando do pai, mas que encontra na literatura meia boca da falecida mãe, os ecos de sua precária existência. Num brevíssimo espaço, autor dá conta de desenvolver todos os personagens de forma densa, bem como o fez, por exemplo, Adriana Lisboa, em seu recente “Hanói” (que trata praticamente do mesmo tema e que possui o selo “um dos romances mais lindos que li recentemente”).
Só que diferentemente do que vemos no trabalho de sua colega, não há nem mesmo pequenos resquícios de luz em “Paz na terra entre os monstros”, pois sob a ótica sombria de André de Leones, o mundo está doente e a esperança saiu para comprar cigarros. Nota: 4/5

UM MUNDO EM EXCESSO DE MONSTROS QUASE IGUAIS
Apesar de talentoso contista, André de Leones vira prisioneiro da repetição
por Felipe Moura Brasil (Pim)
Jornal do Brasil – 21.11.2008

É bastante freqüente que se descrevam antologias de contos de um ou de vários autores como “irregulares”, tendo em vista a qualidade diferenciada dos textos. Paz na terra entre os monstros (André de Leones. Record, 176 páginas, R$ 25) tem seus méritos, mas sofre do mal inverso. É regular demais. Tão regular que os personagens parecem os mesmos, as angústias as mesmas, os acontecimentos (raros) os mesmos, “a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim”. Ao se ver fechar o livro com um conto maior – a novela “Aneurisma” – tem-se a impressão de que o goiano André de Leones, de 28 anos, cansou de se repetir em historinhas avulsas (há, aliás, umas três pequeninas e irrelevantes, porque meros subprodutos das outras) e, finalmente, partiu para um vôo solo que tudo condensasse – mas já um pouco tarde.
“Tudo”, no caso, é a terra de “monstros” do autor (vencedor do Prêmio Sesc de 2005, com o romance Hoje está um dia morto): terra de gente – jovem, em maioria – já assolada por uma sincera preguiça de viver, desprovida de “fantasmas” capazes de estimular algum desejo de compreensão de si e do mundo (“Princípio efetivo da morte: os fantasmas dão o fora. É por onde a coisa começa”), e que urina, defeca, masturba-se, transa e goza, como se buscasse o prazer possível somente por vias fisiológicas.
A indiferença diante do outro e da morte percorre o livro inteiro, seja na garçonete que serve seu próprio assassino; na menina que diz pensar em pular pela janela enquanto a mãe folheia uma revista de homens nus; no órfão que nada sente à morte do pai e só preferia estar no lugar dele; no silêncio entre dois jovens amantes cujo amigo (e amante) em comum se matou aos 16; ou no rapaz (personagem da novela) prestes a morrer, que recusa o tratamento, e vai procurar consolo no “livro morto da mãe morta”, enquanto o pai, não vendo como ajudar, prefere fugir e se masturbar com fotos dela.

Faltam contrapontos
É verdade que, nos três últimos casos (contos), há uma mocinha – uma namorada – tentando chegar até a mente do sorumbático protagonista, resgatar sua fé nas coisas, alcançá-lo de alguma forma, nem que seja, digamos, por via anal – uma imagem literária, aliás, que está entre as melhores do livro, quando o sexo ganha uma significação maior do que fuga, despedida, conveniência ou excitação adolescente. Mas o esforço, tímido, fica sempre pelo caminho, condenado no máximo a um choro noturno, alheio que estão protagonistas e autor a qualquer interferência agressiva na cômoda espera do fim.
Assim como num besteirol o excesso de humor do conjunto tira o impacto da piada incidental, a gratuidade generalizada de Paz na terra entre os monstros tira o contrapeso necessário aos silêncios e desinteresses (de seres “nunca próximos o bastante”), os quais o texto, confessadamente, pretende destacar. Obcecado em “enxergar uma escrotidão desgraçada em tudo e todos”, “todos animais”, André de Leones acaba limitado ao vazio existencial de seus próprios personagens, não deixando entre eles qualquer voz narrativa que os vislumbre de fora com algum discernimento, que extraia de suas interações algo além de escatologias e sarcasmos, ou que ao menos se contraponha à inadequação geral com uma certa solidez.
Na novela final, ao analisar as imperfeições do romance publicado pela mãe – cuja história de um matador prestes a morrer se confunde com a dele – o protagonista aponta sua inaptidão para conhecer a fundo os personagens, e lembra: “A mãe se escusava dizendo que a idéia era essa mesmo”. Por inúmeras vezes (esta, inclusive), diretas ou indiretas (sobretudo pela análise do tal romance), o autor também soa como se utilizasse este recurso clássico de eximir-se, atenuar ou apenas assumir previamente a responsabilidade pelas limitações da obra, através da pura demonstração de autoconsciência – isto quando não tenta explicar a obra (“Ninguém veramente interessado em ninguém”, “Vozes se esborrachando gratuitas em tudo que é lado”).

O que sobra
As semelhanças (não só da novela, mas de todo o livro) com as limitações da mãe são óbvias: ela só queria “contar uma história”, ignorava “eventuais complicações”, deixava um “vazio em função de o cenário praticamente inexistir”, tudo era “provocativamente gratuito”, descrevia uma “rotina ancestral de tédio, amor cansado e tristeza” e, no fim das contas, “nenhuma epifania, apenas uma enorme e nunca verbalizada espera”.
Mas o que sobra, então? Ora, sobra um escritor talentoso, com um estilo próprio, calculadamente despojado, bem ritmado, polifônico, de humor intrínseco, alguns insights divertidos (o pai que parece um frigobar, um velório bem-sucedido, adolescentes no shopping), diálogos simples e fortes, cortes envolventes (para dar um close nos seios da garçonete, para fazer uma múltipla-escolha com o leitor, para mostrar uma cena que só será entendida depois), porém prisioneiro de um universo restrito e repetido, talvez atraente para jovens leitores, mas focado em relações humanas rasas e destacadas da realidade de qualquer cidade, época, geração, informação, ou algo mais propriamente autoral, que traga a André de Leones alguma particularidade para além da forma e do estilo em si.
Para tratar, afinal, só de Pequenas criaturas ou de Secreções, excreções e desatinos, a gente já tem um Rubem Fonseca.