Os objetos perdidos

Os objetos perdidos

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Em que consiste a fantasmagoria de Trama Fantasma? Ou talvez o filme de Paul Thomas Anderson tenha a ver com o caráter não propriamente fantasmagórico, mas fantasmático do processo melancólico, conforme assinalado por Sigmund Freud em Luto e Melancolia e revisitado por Giorgio Agamben em Os Fantasmas de Eros (capítulo 5 do volume Estâncias). Eu me refiro ao sujeito que “se esquiva da realidade e se apega ao objeto perdido” graças ao que o psicanalista chama de “psicose alucinatória do desejo”. Há uma perda, negada pelo eu, o qual não é capaz de suportá-la. É por aí que, por exemplo, penso as duas “mortes” de Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) e também as relações dele com a mãe morta (sem aspas), com as duas mulheres que lhe são próximas, e com o trabalho ou, melhor dizendo, sua arte.

E é por aí que penso no esforço, intrínseco ao personagem e também ao filme (cujo formalismo de ecos kubrickianos é paradoxalmente evidente — pela mise-en-scène — e elusivo — pelos efeitos, pela sutileza com que são velados e desvelados seus motivos, pelas entrelinhas do texto, pela porosidade dos olhares), de apreender o inapreensível, de se referir a uma coleção de objetos perdidos ou em vias, sempre em vias, de se perderem ou serem perdidos, deixados pelo caminho.

De certo modo, Trama Fantasma é uma espécie de elegia do esfarelamento, seja ele orgânico (o cadáver da mãe; as roupas que, belíssimas, apodrecerão cedo ou tarde; os gestos que se perdem no vazio representado ou presentificado pelo outro), seja afetivo (o amor que ameaça implodir antes mesmo de se constituir enquanto tal).

Antes, eu me referi às “mortes” de Woodcock. O jogo, ali, consiste em lançar o outro no abismo, mas com uma rede de segurança algumas dezenas de metros abaixo. Quem empurra é Alma (Vicky Krieps), modelo, ajudante, amante, enfermeira, esposa, cozinheira etc. Woodcock, cujas criações mantém um ateliê de alta-costura na Londres dos anos 1950, é um ser vampiresco, atormentado pela perda da mãe, alicerçado pela irmã, Cyrill (Leslie Manville), e carente de algo que sequer consegue nomear. Em sua luta contra o dia, contra os ruídos do dia, contra a sujeira e a finitude do dia, há ou parece haver (citando Agamben) “uma vaga ideia do que só pode ser possuído se estiver perdido para sempre”.

Noutro paradoxo, sua aproximação de Alma é a reiteração de uma série de distanciamentos pregressos, cíclicos ou mesmo ciclotímicos. Mesmo depois que se dá conta disso, ou justamente porque se dá conta disso, a estratégia de Alma é no sentido não de obliterar ou “superar” esse ciclo, mas, ironicamente, de alimentá-lo, manipulá-lo, torná-lo favorável a si e, por conseguinte (estou falando de amor), ao próprio Woodcock. O entendimento do outro pressupõe não quaisquer mudanças, mas (o que também é irônico) justamente um adensamento de seus caracteres viciosos, por assim dizer. O amor como phármakon.

O aceno da perda e da ausência é o que sustém, ainda que provisoriamente, a presença de um e de outro (e de um para o outro) personagens. Cada um deles assume a postura fantasmagórica que lhes é exigida, compreendendo, não sem uma grande parcela de desolação, que seu lugar não é exatamente ao lado, mas à sombra do outro. É um desenho impossível, claro. Na topografia acidentada desse jardim de objetos perdidos, marcada por um comércio ambivalente de lutos vivenciados, pressentidos e/ou anunciados, cada personagem trafega por uma rotina rígida, de trabalho e dedicação impressionantes, porque sabe que o resultado final (mas também ele provisório) é a beleza.

Envenenado, Woodcock alucina com a mãe morta e, de certo modo, alucina também com a irmã e a companheira vivas. Ele margeia a morte, costurando aos poucos e com precisão maníaca um tecido que, mal ou bem, separe este mundo daquele. Suas “mortes” são iluminações na medida em que redirecionam seu olhar, seu trabalho e, portanto, seus afetos para uma possibilidade (Alma) menos etérea, mais carnal. Quando enfim compreende (nomeia?) isso, ele se deixa envenenar com prazer.

As demandas do corpo, não só as propriamente sexuais e/ou sensuais, embora ainda fisiológicas (vide a cena com ele e Alma no banheiro, perto do final), inscrevem um sentido outro que não a pura fantasmagoria melancólica, por mais importante que esta seja para o temperamento do artista. É como se, a partir dali, ele tivesse carne com a qual preencher suas criações, e uma carnalidade não apenas reativa ou residual, mas ativa, objetificada porque objetificadora, e portanto capaz de ensejar aquela estratégia que leva ao co-pertencimento, à partilha objetal consciente (outro paradoxo?) e, assim, consensual. Sim, estou falando de amor.

Não custa lembrar que luto (e/ou melancolia) e criação artística são, é claro, costurados com a mesmíssima agulha de Eros. Assim, o movimento empreendido por Trama Fantasma exige que também vejamos e revisitemos tudo pelos olhos (voltados para dentro) de Woodcock: a imagem de Alma, seu duplo fantasmático que ele eventualmente abraça ou, melhor dizendo, engole (e é por ela engolido), aos poucos se fixa e permite a ele, usando as palavras de Freud, gozar desse fantasma “sem escrúpulo nem vergonha”. Ora, no âmbito desse comércio afetivo e dentro dos resultados possíveis, isso é o que há de mais palatável e sexualmente saudável. Woodcock e Alma (e Cyrill, claro) aplainam aquela topografia acidentada e se reconciliam não propriamente consigo mesmos, mas com as ramificações das sombras alheias, as quais ainda recaem sobre certas partes de seus corpos e, mal ou bem, resguardam algum mistério.

Suspensões

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I

No “Problema I” de Temor e Tremor¹, nós nos deparamos com a seguinte questão formulada por Johannes de silentio: há uma suspensão teleológica da ética?

Logo no início de sua reflexão, Johannes afirma que a tarefa ética do Indivíduo é “despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade”. Este seria o telos do Indivíduo. E, uma vez alcançada a generalidade, ele sempre se verá em crise ao se sentir inclinado a, de alguma forma, reivindicar a sua individualidade. O único modo de obliterar essa crise é por meio do arrependimento, “abandonando-se, como Indivíduo, no geral”.

Tomando Abraão, temos um exemplo maior da suspensão a que nos referimos acima; ele mergulha de corpo inteiro no paradoxo que constitui a fé. Citando Johannes de silentio:

A fé é justamente aquele paradoxo segundo o qual o indivíduo se encontra como tal acima do geral, sobre ele debruçado (não em situação inferior, pelo contrário, sendo-lhe superior) e sempre de tal maneira que, note-se, é o Indivíduo quem, depois de ter estado como tal subordinado ao geral, alcança ser agora, graças ao geral, o Indivíduo, e como tal superior a este; de maneira que o Indivíduo como tal encontra-se numa relação absoluta com o absoluto. (…)

Uma posição dessas, prossegue Johannes, “escapa à mediação que se efetua em virtude do geral”, constituindo um paradoxo que é “inacessível ao pensamento”.

É algo distinto, por exemplo, da posição ocupada pelo herói trágico. Na tragédia, há uma “instância intermediária” que, ao cabo, salvará o herói.  O sacrifício de Ifigênia pelo seu próprio pai, Agamemnon, cumpre algo prescrito pelo áugure e tem por objetivo acalmar a ira dos deuses. De forma similar, Brutus sacrifica o filho porque este infringiu a lei romana. Por maior que seja a dor desses pais, é incontornável que eles agem em nome do geral, de um estado de coisas que precisam preservar. Eles se movimentam, portanto, no âmbito da esfera ética, sem ultrapassá-la. O ato de Abraão, instado por D’us a sacrificar o próprio filho, Isaac, é, contudo, de outra ordem. Ele não é o herói trágico, mas o que Johannes chama de cavaleiro da fé.

Abraão, atesta Johannes, “ultrapassou todo o estádio ético”. Sua disposição e sua ação não podem ser reconduzidas ao geral, isto é, ele “não age para salvar um povo, nem para defender a ideia do Estado, nem sequer para apaziguar os deuses irritados”. A conduta de Abraão é algo “estritamente privado, estranho ao geral”. Abraão se dispõe a sacrificar o próprio filho não por uma qualquer virtude ética relativa a alguma instituição política ou religiosa, mas por amor ao dever, aqui entendido como “a expressão da vontade de D’us”.

Na tragédia, a relação com a divindade se dá, portanto, como uma mediação com o geral. Inexiste uma “relação privada” do herói trágico com a divindade. A partir do momento em que, no caso de Abraão, inexista tal mediação, e porque sua relação com o divino é estritamente privada, ele resvala no silêncio. A situação de Abraão não pode ser verbalizada, não pode ser comunicada por palavras. “Aquele que renega a si próprio e se sacrifica ao dever renuncia o finito para alcançar o infinito”, escreve Johannes.

Uma vez que a ética é suspensa dessa maneira, Abraão é salvo apenas pelo paradoxo da fé:

(…) Tal o paradoxo que o impele até o extremo e que não pode tornar inteligível a ninguém, porque o paradoxo consiste em que se coloca como Indivíduo numa relação absoluta com o absoluto. Mas está Abraão autorizado a isso? Se está, eis novamente o paradoxo, porque não o está em virtude de uma participação qualquer no geral, mas na sua qualidade de Indivíduo.

A história de Abraão responde, portanto, à questão proposta no início do trecho em questão, isto é, ao primeiro problema abordado por Johannes de silentio: há uma suspensão teleológica da ética? Sim, há, e podemos observá-la justamente na narrativa bíblica que se detém no quase sacrifício de Isaac. Diferentemente do herói trágico, o cavaleiro da fé não chega a essa condição por seus próprios esforços, ou unicamente por eles. A fé não é o resultado de uma ação com vistas à generalidade, mas “um milagre”; a fé é o salto no & pelo absurdo, e que só tem lugar na interioridade plena.

II

Em sua leitura de Temor e Tremor, Jon Stewart² sublinha a distinção entre as concepções de suspensão teleológica da ética de Johannes de silentio e da consciência moral em Hegel. Embora o foco deste texto não seja discorrer sobre as similaridades e diferenças entre os postulados dos filósofos citados, alguns aspectos devem ser ressaltados no sentido de explicitar melhor o que abordamos até aqui.

Stewart aponta que o propósito da discussão hegeliana na Filosofia do Direito é bem diverso do que Johannes de silentio está discutindo em Temor e Tremor. Para Hegel, a expressão-chave nesse contexto é Sittlichkeit ou “vida ética”. Ela se refere aos costumes, deveres e instituições geralmente verificados em qualquer sociedade. Para Hegel, há uma conexão entre os costumes cotidianos e a concepção de vida ética. A ética, segundo ele, apareceria como costume, assim como os hábitos éticos surgiriam como uma “segunda natureza”, tomando o lugar da natureza primeira, que seria animal e meramente desiderativa. A razão, portanto, tem um papel importantíssimo na constituição da segunda natureza e, não por acaso, nas palavras de Stewart, “é desenvolvida como um aspecto do estado racional”.

Outra distinção importante feita por Hegel é entre “ética” e “moralidade” (Moralität): enquanto “a vida ética é imediata e intuitiva, a moralidade é mediada e abstrata” (Stewart).

A interpretação das ações de Abraão por Johannes de silentio apresentam, segundo Stewart, alguns paralelismos com o conceito hegeliano de consciência moral:

(…) Em primeiro lugar, para Hegel, as formas da subjetividade tendem a absolutizar a consciência moral; do mesmo modo, para Johannes de silentio, o comando divino emitido para Abraão é absoluto dada a virtude de sua origem em uma fonte divina. Em segundo lugar, para Hegel, a própria natureza da consciência é privada no sentido de que a subjetividade determina a si mesma. Como diz Hegel, a consciência é uma ‘forma infinita de certeza de si mesma, o que, por essa mesma razão, é ao mesmo tempo a certeza de seu sujeito’. Outrossim, para Johannes de silentio, a relação entre Deus e homem é, por sua própria natureza, subjetiva e privada, e assim não pode ser justificada ou explicada para outras pessoas. Por fim, as formas de subjetividade que Hegel analisa colocam a si mesmas acima dos costumes aceitos, da lei civil e afins, assim como Abraão, de acordo com a interpretação de Johannes de silentio, recebe um chamado absoluto que coloca todos os outros deveres e comandos morais externos em suspensão. (…)

Reiterando, tanto Hegel quanto Johannes colocam a consciência moral acima do Estado, dos costumes, dos deveres familiares e afins. Em Hegel, contudo, o conflito entre a consciência individual e o Estado ou as leis civis são um reflexo de um confronto mais profundo da consciência moral consigo mesma. Johannes, conforme aponta Stewart, deixa bem claro que Abraão não anseia por qualquer validação universal para suas ações. De fato, ele não procura universalizar nada, sublinhando o caráter subjetivo de sua consciência e, em última instância, relegando a D’us a validação absoluta do que faz. Na medida em que o comando vem diretamente de D’us, Abraão sequer procura verbalizar ou justificar o que está fazendo, até porque, como vimos, qualquer tentativa de verbalização seria quimérica, para não dizer inútil: o “paradoxo de Deus-homem e a fé é não-discursivo” (Stewart).

Assim, no início do Problema I, a crítica de Johannes diz respeito à inaplicabilidade da abordagem hegeliana na esfera da fé, pois o comando divino invalidaria quaisquer regras e leis sociais, colocando-se para além de tudo isso. Abraão, em função da suspensão teleológica da fé, inscreve-se numa relação privada com o divino. O paradoxo se amplia na medida em que ele jamais poderá ter uma certeza racional ou racionalmente formulável (em termos discursivos) dessa relação.

“He has faith but with fear and trembling”, escreve Stewart, isto é: “ele só tem fé com temor e tremor”.

III

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Nas páginas finais de um belo ensaio sobre Paul Ricœur³, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin resguarda o francês tanto daqueles que o encaram como um “criptoteólogo” quanto dos que o abraçam como um “pensador cristão”.

“Ricœur”, ela escreve, “teve de lutar em ambas as frentes: contra seus críticos, mostrar que sua filosofia não se reclama, na sua argumentação interna, de sua fé; contra seus admiradores, que seu pensamento filosófico não oferece fundamentação racional para crença alguma”.

Para melhor esclarecer esse ponto, Gagnebin cita o próprio Ricœur, para quem “esse ascetismo do argumento, que marca, creio eu, toda a minha obra filosófica, conduz a uma filosofia da qual a nominação efetiva de Deus está sempre ausente” e, mais do que isso, “na qual a questão de Deus, enquanto questão filosófica, permanece em um suspense [melhor: em suspensão] que podemos chamar de agnóstico”.

O pensamento de Ricœur estaria mais próximo da postura kantiana, pela qual se delimita o alcance da perquirição racional e, ao mesmo tempo (e pelo próprio esforço delimitador), “reconhece a possibilidade de um Outro que lhe escapa”. A humildade dessa postura, parece-me, livra a indagação filosófica de quaisquer ruídos, impede que ela se perca em antinomias e protege o pensamento de uma possível contaminação dogmática.

Não é que Ricœur “desligue” a fé que o constitui ao filosofar. Ele define lindamente o religioso como “a referência a uma antecedência, a uma exterioridade e a uma superioridade”, reconhecendo, como nos diz Gagnebin, “o sagrado como aquilo que, simultaneamente, nos precede e nos ultrapassa”. Assim, o cristianismo desempenha uma função importantíssima em seu pensamento:

(…) Responde pela presença de uma economia do dom, mais fundante que uma economia estritamente racional da troca ou do lucro, e por uma relação com o sagrado, intimamente ligada a essa economia da dádiva ou da graça, e cuja consequência essencial é destronar o sujeito desse lugar central outorgado pela tradição filosófica desde Descartes. Na mesma resposta, não teme em lembrar a crítica de Heidegger ao humanismo e o questionamento das pretensões do sujeito em Foucault, pois iriam, segundo ele, na mesma direção que ‘minha convicção, a saber, que o sujeito não é o centro de tudo, que ele não é senhor do sentido’.

D’us nos antecede e ultrapassa, e também nos desloca. A pretensão de centralidade do sujeito é esvaziada. Antes, no contexto da abordagem referida, importa a maneira como o pensador se coloca aquém (e não além) tanto dos “críticos” quanto dos “admiradores”. Se há a possibilidade desse Outro que nos escapa, nada mais acertado do que, ao menos enquanto questão filosófica, suspendê-Lo, investindo num agnosticismo procedimental, por assim dizer. O fundamento permanece, mas a perquirição se arvora noutras direções (até porque uma coisa não exclui ou necessariamente inclui a outra). A citada suspensão é algo como (mais) uma condição de possibilidade do próprio filosofar.

Muitos (crentes, ateus, agnósticos) propuseram coisas similares, e das maneiras mais diversas. Mas poucos o fizeram com a beleza, humildade e retidão (e deiformidade?) de Ricœur. Ausenta-se a (tentativa de/busca por uma) “nominação efetiva de Deus”, mas não se deixa de ser atravessado por D’us.

……

¹KIERKEGAARD, Søren Aabye. Temor e Tremor. In: Os Pensadores. Tradução: Maria José Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

²STEWART, Jon. Hegel’s view of moral conscience and Kierkegaard’s interpretation of Abraham. In: Kierkegaard’s relation to Hegel reconsidered. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

³GAGNEBIN, Jeanne Marie. Uma filosofia do Cogito ferido: Paul Ricœur. In: Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

“Dias Vazios” – quo vadis?

Dias Vazios

Dias Vazios, de Robney Bruno Almeida, é uma adaptação do meu romance Hoje está um dia morto. O longa teve sua primeira exibição pública no dia 25 de janeiro de 2018, na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes. No Cine PE, em junho, Dias Vazios foi agraciado com os prêmios de Melhor Direção de Arte (Letycia Rossi), Melhor Ator (Arthur Ávila) e Melhor Atriz Coadjuvante (Carla Ribas).

Confira o trailer clicando AQUI e, abaixo, links para algumas resenhas do filme.

::: Luiz Carlos Merten (Estadão)
::: Francisco Russo
(AdoroCinema)
::: Pedro Tavares
(Multiplot!)
::: Matheus Bongiovani
(Culturadoria)
::: Luiz Joaquim
(Cinemaescrito)
::: Francisco Carbone
(Vertentes do Cinema)
::: Cecília Barroso
(Cenas de Cinema)
::: Rafael Oliveira (Plano Crítico)
::: Raul Arthuso (Cinética)
::: Fabrício Cordeiro (Revista Janela)
::: Odorico Leal (Cinerocinante)
::: Leonardo Ribeiro (Papo de Cinema)
::: Amanda Aouad (Cine Pipoca Cult)
::: Luiz Zanin Oricchio (Estadão)

Aliança possível

Resenha publicada ontem no Estadão.

Judith Butler celebrizou-se no Brasil pelo que ocorreu em 2017, e não me refiro ao lançamento de Caminhos Divergentes – Judaicidade e Crítica do Sionismo. Em novembro, quando veio a São Paulo para o colóquio “Os Fins da Democracia”, uma horda assomou à porta do SESC Pompeia e ateou fogo a uma boneca da filósofa, que ainda foi achacada no aeroporto antes de embarcar para os EUA. A grita se deu não pelo evento – embora seguramente sirva para ilustrar as discussões sustentadas ali, sobretudo se lermos “fins” como “términos” –, mas porque Butler, doutora por Yale e professora de literatura comparada em Berkeley, é autora do famigerado Problemas de Gênero. Mas, no exterior, a controvérsia diz respeito menos aos estudos de gênero e mais ao que ela tem a falar sobre a possibilidade de uma crítica ao Estado de Israel que, mesmo antissionista, não possa ser tida como antissemita. Dentre outras coisas, é disso que trata Caminhos Divergentes.

Com esse livro, a autora conseguiu a proeza de irritar direita e esquerda. Uns acusaram-na de antissemitismo e de cumplicidade ideológica com organizações terroristas como o Hamas; outros, de que o trabalho é academicista, descolado da realidade e do sofrimento palestino. Antes de abordar a obra, é bom ressaltar que tais ataques não se sustentam: por um lado, ela não usa termos como “Palestina ocupada” e jamais equivale Israel à Alemanha nazista; por outro, e aqui entramos no escopo de sua reflexão, ela se propõe a refletir “sobre a necessidade de demorar-se no impossível”, ou seja, afirmar “que uma crítica judaica da violência de Estado israelense é (…) possível” e “eticamente obrigatória”.

Indo além, Butler se esforça para demonstrar que a coabitação é algo intrínseco à própria judaicidade (e o uso do termo em detrimento de “judaísmo” não é um acaso), entendida como “um projeto anti-identitário”, pois “ser judeu supõe assumir uma relação ética com o não judeu”. Isto decorreria da “condição diaspórica” da própria judaicidade: “a vida em condições de igualdade em um mundo socialmente plural é um ideal ético e político”.

Recorrendo aos palestinos Edward Said e Mahmoud Darwish e a leituras nem sempre ortodoxas de Lévinas, Walter Benjamin e Hannah Arendt, ela foge à apropriação ideológica dos termos da discussão pelo Estado de Israel. Noutras palavras, Butler critica o controle da judaicidade pelo sionismo e advoga a necessidade de se extrapolar o quadro referencial majoritariamente judaico para lidar com a questão. Sendo o judaico definido e delimitado pelo não-judaico (vide as ideias de Said relativas a uma “origem mais diaspórica” do judaísmo e de Arendt quanto à manutenção de tal identidade), torna-se essencial incluir a alteridade no cerne da reflexão. O deslocamento estaria no DNA de palestinos e judeus, constituindo a “base de uma aliança possível” que levasse à coabitação e a um “binacionalismo uniestatal”.

Caminhos Divergentes traça uma cartografia instigante, repleta de desvios pelos quais podemos enveredar. Concordando ou não com Butler, usando ou não suas chaves interpretativas, aceitar que determinados posicionamentos (sobretudo aqueles típicos do sionismo mais extremo) devem ser questionados é imprescindível para uma fundamentação mais consequente da discussão. Sem isso, a coabitação é impossibilitada e Israel seguirá envolvido numa guerra permanente contra os vizinhos e si mesmo.

“In God’s name, when was that?”

Gass

“The path took Henry Pimber past the slag across the meadow creek where his only hornbeam hardened slowly in the southern shadow of the ridge and the trees of the separating wood began in rows as the lean road in his dream began, narrowing to nothing in the blank horizon, for train rails narrow behind anybody’s journey; and he named them as he passed them: elm, oak, hazel, larch and chestnut tree, as though he might have been the fallen Adam passing them and calling out their soft familiar names, as though familiar names might make some friends for him by being spoken to the unfamiliar and unfriendly world which he was told had been his paradise. In God’s name, when was that? When had that been? For he had hated every day he’d lived. Ash, birch, maple. Every day he thought would last forever, and the night forever, and the dawn drag eternally another long and empty day to light forever; yet they sped away, the day, the night clicked past as he walked by the creek by the hornbeam tree, the elders, sorrels, cedars and the fir; for as he named them, sounding their soft names in his lonely skull, the fire of fall was on them, and he named the days he’d lost. It was still sorrowful to die. Eternity, for them, had ended. And he would fall, when it came his time, like an unseen leaf, the bud that was the glory of his birth forgot before remembered. He named the aspen, beech, and willow, and he said aloud the locust when he saw it leafless like a battlefield. In God’s name, when was that? When had that been?”

Trecho de Omensetter’s Luck,
de
William H. Gass.

Ainda Stevens

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Em novembro do ano recém-enterrado, discorri aqui sobre o clássico Os Brutos Também Amam (Shane). Bom, para começar 2018 falando sobre algo de que gosto (dizem que é mais saudável do que falar sobre o que odeio, desprezo ou me irrita, embora isso às vezes seja necessário), quero abordar outro filmaço dirigido pelo mesmo George Stevens: Um Lugar ao Sol, lançado em 1951.

Se, conforme escrevi lá no outro texto, Shane trata da fixação de um país e do ocaso de um determinado modus vivendi (ou operandi?), os EUA que vemos em Um Lugar ao Sol já estão, por assim dizer, demarcados interna e externamente, tendo inclusive já tomado parte das duas Guerras Mundiais. Contudo, no lugar do personagem que dá título àquele faroeste, temos outro “estrangeiro” selvagem, George, um arrivista interpretado por Montgomery Clift.

No começo do longa, George procura um parente rico, quer que o sujeito lhe arranje um emprego em sua fábrica. É um rapaz quieto, tímido, mas que traz consigo um determinado tipo de selvageria, mais sutil do que aquela exibida pelos animais em extinção vistos em Shane, os pistoleiros vividos por Alan Ladd e Jack Palance; ele quer aquilo que o título anuncia, um lugar ao sol, e a desgraça é que conseguirá (e não) muito, mas muito mais do que almeja.

Aos poucos, nosso George sobe na vida e, ao mesmo tempo, desce inexoravelmente: o noivado com a menina rica, Angela (Liz Taylor), é ameaçado pela gravidez indesejada de uma colega de trabalho, Alice (Shelley Winters), alguém que, solitário e entediado, conheceu e com quem se relacionou nos primeiros dias na nova cidade, antes de se engraçar com a herdeira.

Óbvio que ele tenta (inutilmente) fazer com que Alice aborte. A cena no consultório médico é uma obra-prima de construção cênica, a câmera a uma certa distância da atriz, sublinhando seu desespero crescente. O efeito é estarrecedor. Similarmente, quando George dança pela primeira vez com Angela, a câmera os enquadra da outra sala, bem longe deles, a meu ver sugerindo o vácuo moral que cerca e acabará por solapar o rapaz.

Creio que em nenhum outro trabalho Stevens se valeu tanto e tão bem da câmera como instrumento narrativo. É um mestre da composição, e sua imaginação, aqui, revela-se à altura do melhor Hitchcock. Dou outros exemplos: a escuridão dentro do carro, quando Alice sai do consultório médico e diz a George (cujo rosto só vemos quando ele acende um cigarro) que a única coisa que lhes resta fazer é casar; as costas de Angela, George deitado em seu colo, enquanto ela fala de um casal que se afogou no lago que está à frente; a conversa franca entre George e o sogro sobre o passado, focalizada quase que do ponto de vista de Angela.

Um Lugar ao Sol é inteirinho dotado de uma angústia surda. Mais do que um assassinato (mas sem jamais irrelevar o caráter hediondo do crime), há uma condenação. A exemplo de muitos de nós, seu protagonista é culpado de querer, a tal ponto que tudo se encaminha para o irredimível de uma tragédia sem catarse. Ao final, a sensação é de que todos nos afogamos quase sem que nos déssemos conta.

Humboldt

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Voltei a O Legado de Humboldt uns vinte anos após a primeira leitura. É um dos livros que fizeram a minha cabeça naquela idade ébria para os que têm senso de humor e insuportável para os que têm um pingo de bom senso (eu gostava de pensar que tinha um pouco de cada) (estava errado, é claro). Falando em humor, o de Bellow é não raro excruciantemente doloroso (embora, em Humboldt, não chegue às raias do desespero como em Herzog), mas sempre recompensador. No âmbito superficial da bipolaridade de tons em sua produção (Augie March/Seize the DayHenderson/Herzog, Sammler/Humboldt), e creio que Philip Roth disse algo nesse sentido em um artigo célebreHumboldt é (quase) uma espécie de meio-termo, aliando o ritmo desbragado de seus romances mais soltos com a carga reflexiva das narrativas menos aceleradas. Quero dizer, há passagens nas quais se faz presente certa porralouquice (por exemplo: a carta de George para Citrine, o narrador, contando suas desventuras na África) e outras em que somos engolidos por digressões que por sua vez engolem outras digressões. Dizendo de outra forma, o que acontece é que sempre há alguém (a amante, a ex-mulher, os advogados, o gangster Cantabile, a mãe da amante, o contador, o sócio picareta, mais advogados, o irmão, a viúva de Humboldt, o próprio Humboldt, a ex-namorada dos tempos de juventude etc.) pronto para arrancar Citrine de sua introspecção, mas ainda assim ele arranja um jeito de mergulhar em si. Penso nele (por exemplo) esperando para falar com o juiz que vai lhe arrancar o couro, ou flanando por Madri, falido, com o filhinho da amante a tiracolo enquanto ignora as investidas da dinamarquesa manca, ou ainda quando é coagido a, como uma espécie de penitência carcamana, testemunhar Cantabile dando uma bela cagada. Mesmo em situações extremas, ou sobretudo nelas, para Citrine há sempre algo a se pensar, desenvolver, filosofar, rememorar, mitificar ou desmitificar. Assim, lá estão as digressões inesperadas (pelos momentos em que irrompem e pelo que as constitui) (Steiner, meus amigos, Steiner!). E o que mais? Bom, a velha mania de Bellow ressituar personagens e situações como bem entende — às vezes, tem-se a impressão de que não são eles que se movem, mas o chão sob seus pés; ou, por outra, acompanhá-los é como caminhar atrás de pessoas que andam ou muito devagar, ou rápido demais, por uma calçada repleta de gente vindo na direção contrária. Tudo isso exige atenção, mas a graça está sobretudo aí, nessas idiossincrasias narrativas e no “estado chicagoano” em que elas nos colocam. E também é Bellow puro a maneira como o livro cresce para todos os lados, e no final é uma cidade completinha, com seus poetas exilados ou em trânsito ou mortos & enterrados (de novo e de novo), gangsteres, papa-defuntos, advogados, pistoleiras, editores, parentes e fantasmas, fantasmas por toda parte, e Citrine tentando falar com eles, a linha sempre ocupada. Aliás, parte da tragicomédia americana, intrínseca ao romance, ao seu narrador e à relação deste com os demais personagens, sobretudo Humboldt, reside no fato de que a conversa com os fantasmas só se dá numa direção. (Nota: na Europa, ocorre o contrário, e são os vivos que já não ouvem mais nada.)

Aharon

Appelfeld

Aharon Appelfeld faleceu ontem em Jerusalém. Tinha oitenta e cinco anos de idade.

Eu o li pela primeira vez em 2009, em Israel. Antes, graças ao Operação Shylock de Philip Roth, lera sobre sua vida e o que passara. Nascido e criado na Bucovina, entre os judeus assimilados de cultura alemã, expostos à brisa da Haskalá. A Segunda Guerra irrompendo quando ele ainda era uma criança. A mãe assassinada. Ele e o pai prisioneiros de um campo de trabalhos forçados na Ucrânia. A fuga. Errando sozinho pelas florestas por anos, lidando com partisans, ladrões de cavalos, prostitutas. Finda a guerra, a ida para Israel. A dificuldade em aprender o hebraico, em se adaptar ao país em gestação. O início da carreira literária, a marginalização que sofreu por escrever sobre o mundo no qual crescera, o Leste Europeu do começo do século XX; acusavam-no de levar a galut, o exílio judaico, para o novo lar. Ele insistiu.

Tornei-me tão próximo quanto possível da literatura de Appelfeld no final do verão e no decorrer do outono de 2009. Enfileirei leituras. Badenheim 1939, All Whom I Have Loved, Story of a Life, The Iron Tracks, Tzili. A maneira como ele não aludia diretamente aos campos e ao extermínio, mas, sim, àquele mundo depois estrangulado pelos nazistas, à tempestade raivando no horizonte. A forma como narra, de um lirismo (também ele) estrangulado. Potente demais. Único. E doloroso.

Desde que voltei de Israel, falo sobre Appelfeld e seus livros sempre que possível. Discorri sobre Badenheim 1939 no programa Livro de Cabeceira. Traduzi (da versão em inglês, Story of a Life) dois trechinhos da autobiografia Sipur Hayim, AQUI e AQUI. E, claro, recomendo a todos que leiam as excelentes traduções que Moacir Amâncio e Luis S. Krausz, respectivamente, fizeram de Badenheim 1939 e Expedição ao Inverno.

Sentar à mesa de um café em Mevaseret Zion e pensar sobre um mundo que não mais existe, mas cuja obliteração foi assinalada e, de certo modo, genialmente retificada por Aharon Appelfeld, alav ha-shalom.

Contornos da diáspora

Resenha publicada hoje no Estadão.

LUIS SERGIO KRAUSZ

Desde 2011, o paulistano Luis S. Krausz vem publicando um romance a cada dois anos: Desterro, Deserto, Bazar Paraná, vencedor do Prêmio Benvirá, e, agora, Outro Lugar, agraciado com o Prêmio Cepe Nacional de Literatura. São narrativas que trafegam no limiar entre a memória e a ficção e que, ao fazer isso, ensejam reflexões na medida ou a partir do momento em que seu narrador se coloca em movimento, em viagem. Vistas em conjunto, formam uma “longa história de diásporas dentro de diásporas” (como é dito a certa altura de Deserto). É como um desdobramento natural e coerente desse projeto literário que devemos encarar o excelente Outro Lugar.

Ao resenhar Bazar Paraná para este caderno, há dois anos, escrevi algo que talvez nos sirva agora: Krausz investe em um mapeamento afetivo-familiar do desterro. Em hebraico, há um termo que se refere ao exílio ou à dispersão dos judeus pelo mundo, “longe de sua terra”: galut. Em meados da década de 1980, o narrador de Outro Lugar deixa o Brasil e parte para Nova York. Independentemente de seus motivos imediatos (estudar na Columbia University), ao fazer isso ele dá prosseguimento àquele processo diaspórico no qual já se encontrava inserido de antemão – embora paulistano, descende (como o próprio Krausz) de judeus do leste que se viram obrigados a emigrar em função do antissemitismo e das agressões, para não falar da escalada nazista que, como sabemos, resultou na aniquilação de milhões de pessoas.

Na prosa do autor, o efeito mais visível da condição de desterrado está na disposição para discorrer sobre o outro, isto é, aqueles em quem esbarra em suas andanças: o amigo na sala de embarque do Aeroporto do Galeão, os colegas de trabalho, seja no Brasil, seja fora, parentes próximos e distantes etc. A narrativa é atravessada por fios e mais fios de lembranças, sejam do narrador, sejam de seus familiares ou conhecidos, criando uma tapeçaria que se espalha no tempo e no espaço, de São Paulo a Nova York, de Beirute a Düsseldorf, de Berlim a Petrópolis. O leitor se depara com “línguas estranhas e terras estranhas, a naturalidade perdida para sempre, a marca do foreigner estampada na testa”. Com “a ilusão de, por pertencer a mais de um lugar, pertencer ao mundo inteiro” caminhando para se tornar o “grande sonho esfacelado do cosmopolitismo”, o que resta (ao autor, ao narrador, aos personagens e, por fim, ao leitor) são esses recortes mínimos de indivíduos lançados daqui para lá e não raro engolidos pelo próprio avançar do tempo.

No entanto, mais do que enfileirar histórias que testemunha ou sobre as quais ouve ou lê, o narrador trata de organizá-las de forma a ilustrar da melhor maneira possível o tema em questão. Por exemplo: ao remeter a uma viagem do pai a Düsseldorf, onde sofre um ataque cardíaco não diagnosticado, refere-se à sensação causada pelo retorno de um judeu à Alemanha, apenas dezesseis anos após o fim da Segunda Guerra. Similarmente, o destino de um velho fotógrafo, outrora conhecido na Velha Europa, é morrer anonimamente em um asilo em Petrópolis, deixando para a posteridade registros de um mundo que desapareceu, transformado em ruínas e entulhos. Ficam os contornos da diáspora, obtidos por meio de uma escrita que recupera, de forma episódica, mas fluida e calorosa, os traços de um povo que se recusa a sucumbir “à perfeição consumada do oblívio”.

Foto: Daniel Teixeira/ESTADÃO