Tezza

Tezza

As pessoas não estão preocupadas com a prisão do Lula, mas com o preço do abacate, na medida em que você não tem uma quebra institucional brutal [no país]. O Brasil é impressionante, ele não tem governo e anda sozinho.
(…)
Discussões comportamentais e culturais no país parecem levar automaticamente a uma sovietização da economia.
(…)
O discurso identitário pode ser assustador. Já ouvi que não tenho direito de escrever com personagens negros porque não sou negro.
É abdicar da condição humana. Se não posso representar um outro, realmente acabou. É uma questão filosófica, sobre limites da ideia de universalidade do iluminismo e limites da cultura identitária tribal, que está voltando com o nacionalismo e outras coisas. A construção da subjetividade pode se livrar do atavismo racial, cultural, religioso?

Cristovão Tezza, em entrevista à Folha. Leia na íntegra AQUI.

“É difícil escrever romances.”

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Acho que ninguém é capaz de ensinar a escrever um romance, pelo menos não em uma hora. É difícil escrever romances. Você precisa ter a ideia e as personagens, e talvez se acrescentem personagens pelo caminho. Você precisa da história. Você precisa, se me permitem dizer, da forma: qual será o tamanho do livro? Será escrito em parágrafos longos? Curtos? Em que pessoa narrativa? Manterá um fio condutor ou se dispersará em todas as direções? Qual será o grau de densidade? Quando você tem a forma, você pode escrever o romance. Quando você tem o estilo. O estilo. Onde você se situa como escritor? Seus preconceitos. Seu posicionamento moral. O modo como se deve ler esse livro. E depois você precisa de um começo. “Duas cordilheiras atravessam a República, quase de norte a sul …”, as contidas primeiras palavras do suplício final do cônsul em “À Sombra do Vulcão”. O começo é de suma importância. Já mencionei o começo de “Adeus às Armas”. Tudo está naquelas primeiras frases: a guerra da qual estão tentando se afastar ou fugir. Por enquanto, estão protegidos, vendo tudo acontecer, mas seu destino está ligado ao conflito.

James Salter, numa palestra. Leia o trecho completo AQUI.

Lugar de escuta

Pois se alguma nuvem carregada há no horizonte da ficção, é justamente a de uma certa demanda identitária quanto a seus personagens. Decalcada das chamadas ações afirmativas, ela sugere um desejo de legislar (via crítica, sobretudo a universitária) acerca de quem são — sua etnia, seu gênero, sua classe — as pessoas com as quais o romance deve lidar preferencialmente.

Tal cobrança costuma vir associada à crítica, esta legítima, de que falta maior diversidade de autores no Brasil, por exemplo. O equívoco é achar que mais romancistas e contistas negras ou gays sejam garantia de mais personagens com essas identidades particulares — ou, pior, exigir isso de quem escreve.

Tezza diz que “a ética da ficção é necessariamente uma ética fundada estritamente sobre minha relação com os outros, que serão a medida inescapável do que eu escrevo, mesmo que meu objeto seja eu mesmo”.

Enquanto ficcionistas de qualquer origem ou extração — se mais diversas, tanto melhor — forem capazes de ocupar o “lugar de escuta” e deixar o “lugar de fala” para seus personagens, mesmo os marcadamente autobiográficos, a ficção sobreviverá.

Christian Schwartz, hoje, na Folha. Leia na íntegra AQUI.

O triunfo da imaginação

Uma leitura de Nobel, de Jacques Fux.
Artigo publicado
no site da revista CULT.

nobel

No oceano de picaretagem que cerca as ilhas desoladas que são os meios literário e acadêmico brasileiros, poucas noções (pois raras são aquelas que, hodiernamente, chegam a ser conceitos) navegam com tanta facilidade e são tão constrangedoras quanto a de “autoficção”. A coisa está ancorada em uma espécie de tautologia, pois qualquer aluno com distúrbio de déficit de atenção sabe, ou ao menos desconfia, que, conforme o célebre dito do poeta Manoel de Barros, “ninguém foge do erro que é”. Ora, todo e qualquer romance, por mais fantasioso que seja, em alguma medida, em algum nível, consciente e inconscientemente, desvela, evoca e/ou ficcionaliza aquele que o escreve, seja explícita, seja implicitamente. Por sorte, a imaginação de escritores como Luis S. Krausz (Deserto, Outro Lugar), Julián Fuks (A Resistência), Cristovão Tezza (O Filho Eterno) e Jacques Fux (Antiterapias, Brochadas e, agora, Nobel) transcende o teor abilolado daquela noção e, cada qual à sua maneira, alcança um entendimento do mundo ao redor, de si, do outro e, claro, do próprio processo de escrita ficcional. É sobre Nobel, romance mais recente de Fux, que discorrerei a seguir.

De certo modo, e grosso modo, a atividade da criação literária corresponde a uma espécie de diálogo fantasmagórico ou fantasmático: empurrado pelas sombras que o cercam e não raro o constituem, o escritor mergulha na “fosca turvação”¹ da memória tanto do que vivenciou quanto do que leu. Estruturando seu romance como um hilário discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura, Fux trata justamente de expor o mecanismo interno do supracitado diálogo.

“Sim, desde muito jovem devoto a minha existência à literatura”, ele afirma logo no começo do livro, “à transfiguração desse meu eu, real e biográfico, em um eu ficcional e ventríloquo da memória e da obra dos outros”. Coerentemente, no decorrer do discurso-romance, o protagonista e narrador Fux tratará de passear pela memória e pelas obras alheias, instituindo um espaço de recriação e, às vezes, corrupção ficcional das idiossincrasias, manias, fofocas e anedotas envolvendo outros escritores agraciados (ou não) com o Nobel, como Mario Vargas Llosa, Derek Walcott, J. M. Coetzee, Franz Kafka, Yasunari Kawabata e Ernest Hemingway.

E é o incontornável impulso falseador de Fux (seja o narrador, seja o autor) que confere graça ao romance e o desloca para um âmbito reflexivo mais rico do que aquele em que estaria inserido se o enredo se ativesse ao mero prolongamento ou reiteração da piada que lhe serve de incipit (a premiação de Fux por “ter performado, falsificado e duplicado a narrativa dos escritores canônicos, transformando-a em sua perturbada obra”). Em outras palavras, para além do humor desbragado e das picuinhas, grandes ou pequenas, que pontuam o livro, é o poder imaginativo do autor que sustenta o que ele mesmo chamou (em uma entrevista concedida a mim para o blog da editora Record) de “cadeia intertextual”.

Nesse trânsito fantasmático ou comércio com fantasmas, o conto “Um relatório para uma Academia”², de Franz Kafka, talvez possa ser encarado como uma espécie de modelo, na falta de palavra melhor. Observe-se que o narrador de Nobel se equilibra sobre um fio tênue, e o faz sem rede de proteção: em seu discurso, ele ao mesmo tempo homenageia e degrada escritores e acadêmicos, investindo em uma digressão subversiva que ataca a pompa e a circunstância da premiação máxima sem, contudo, colocar-se fora dela ou sequer marginalmente. De maneira similar, o macaco que narra o conto de Kafka afirma de forma categórica que jamais exigiu a liberdade, “nem naquela época nem hoje”. Também cito ao arrepio do contexto original: “A tranquilidade que conquistei no círculo dessas pessoas foi o que acima de tudo me impediu de qualquer tentativa de fuga”, pois o símio entende que “a saída não devia ser alcançada pela fuga”.

Do mesmo modo, no ponto mais alto do circo literário, o “nobelizado” Fux tampouco exige – ou nutre qualquer anseio por – liberdade. Muito pelo contrário, eu arrisco a dizer, pois o coração de sua sátira reside justamente não na denegação, mas, sim, na celebração desavergonhada (ainda que negativa, degradada e degradante) da pulsão ficcional que anima qualquer escritor que se preze. Um “viva ao plágio, às fraquezas e às depravações literárias”, portanto.

Na medida em que expõe seus pares e a si próprio, na medida em que adultera e corrompe detalhes e passagens das vidas e das obras de “seus” autores, na medida em que faz “colocações miseráveis, falsas e canalhas”, o protagonista de Nobel defende exata e paradoxalmente o lugar da ficção e reafirma o direito de todo escritor recriar(-se) pela via da fabulação. Não por acaso, a intenção declarada (“degradar a vida dos autores por intermédio de suas obras”) vem acompanhada por um apelo ou coisa que o valha: “Amaldiçoem-me, mas não retirem meu ouro”.

O “ouro” aí pode ser entendido como a premiação em si, é claro, mas também (e, no meu entender, sobretudo) como a liberdade de se ocupar de si e do outro por meio da literatura. Assim, por mais que sintamos “um prazer mórbido ao falar sobre o subterrâneo das pessoas”, o que é sublinhado pela leitura de Nobel é algo, por assim dizer, mais solar, a saber: o prazer nem um pouco mórbido e nada subterrâneo trazido pela invenção, preenchido pelo vigor imaginativo e alimentado pela saudável convulsão provocada pelos melhores ficcionistas e suas abençoadas deturpações.

Nesse espírito, a “mentira” é justamente o que é tido como “real” e “verdadeiro”, e o único repouso possível, o único refúgio da (nunca, jamais, antídoto para a) loucura está “nas asas da ficção”, pois é função do ficcionista “se livrar das amarras e das injustiças de seu tempo” ou aprofundar o entendimento que temos delas. O prêmio, em suma, tanto para quem produz quanto para quem lê, é a própria obra literária. Todo o resto não passa de teatro.

…………

¹ De fato, a descida de Odisseu ao Hades no canto XI da Odisseia talvez ilustre bem esse diálogo fantasmático que, no meu entender, também move a criação literária. A expressão aparece em uma fala de Anticleia (155-9): “Filho, como chegaste à fosca turvação, / com vida? É duro que a vislumbre um ser vivente, / grandes rios interpostos e inclementes vórtices, / o Oceano, superfície incaminhável, caso / não se disponha de baixel bem-construído” (tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011).

²O conto integra a coletânea Um Médico Rural, publicada no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Modesto Carone.

A faca de Dalrymple

Traduzi o formidável A Faca Entrou, de Theodore Dalrymple, para a É Realizações. O livro conta com prefácio de Martim Vasques da Cunha e chegará às livrarias no começo do próximo mês, mas já se encontra em pré-venda no site da editora. No dia 11 de abril, às 20 horas, Dalrymple fará uma palestra na Universidade Mackenzie (auditório Ruy Barbosa; acesso pelas ruas Itambé, 143, e Consolação, 930).

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Nobel para Fux

Texto e entrevista publicados no Blog da Editora Record.

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Finalmente aconteceu. Após anos de protestos, apelos e polêmicas, após uma infinidade de escolhas questionáveis ou francamente equivocadas, a Academia Sueca finalmente colocou a cabeça no lugar e agraciou o escritor mineiro Jacques Fux com o Nobel de Literatura – ao menos para efeitos de ficção. Esta é, pois, a premissa do formidável e divertidíssimo Nobel, quarto romance do vencedor (agora, sim, de verdade) do Prêmio São Paulo de Literatura (muito mais importante do que o Nobel, diga-se de passagem).

O que o novo livro nos traz é a antiterapia perfeita para os dois lados de uma mesma moeda (ou neurose): o comércio com fantasmas que constitui a atividade criativa e o diálogo de surdos que contamina o meio literário. A distinção é importante porque Nobel não é um ataque à literatura, mas, sim, a algumas coisas que ela traz a reboque: o networking desavergonhado, a pose muitas vezes ridícula e as manias dos escritores, as farpas e socos trocados entre os pares, as indiscrições, as pequenas, médias e grandes canalhices, a pseudoerudição e por aí afora.

Diante da Academia Sueca, o galardoado Fux digressiona não sobre o “patamar sacralizado e quase inatingível” dos usualmente celebrados em eventos como o Nobel, mas sobre os desvios, os “atos indecorosos” e os “recalques obscenos, sórdidos”. No decorrer do discurso que constitui o romance, ele relembra, recria e, em alguns casos, corrompe histórias envolvendo autores como Kafka, Canetti, Sartre, Hemingway, Kawabata, Mishima, Walcott, Coetzee, Vargas Llosa e outros.

Com isso, ao mesmo tempo em que sacaneia a pompa e a circunstância incorporadas pela premiação máxima, Fux inadvertidamente enseja uma defesa da criação e da loucura literárias, do humor e, claro, do humano em toda a sua belíssima sordidez – ou sórdida beleza, tanto faz. Nobel é, em suma, um hilário elogio da imaginação.

Com a urbanidade que é peculiar aos justamente laureados, Jacques Fux se dispôs a responder algumas perguntas sobre seu novo romance, entrevista que o leitor pode conferir abaixo.

Como você situa “Nobel” no desenvolvimento de seu trabalho? Ele seria mais um passo na “erudição da sacanagem” que parece animar seus escritos?

JACQUES FUX – Sim. O Nobel é o fechamento de um projeto literário que se iniciou com o Antiterapias – em que se anuncia um narrador em primeira pessoa com aspirações de ganhar o Nobel –, passa pelo Brochadas – e a exposição e a ironia nua, crua e impotente de um jovem escritor – e chega a Meshugá – com a exposição da loucura e do autoerotismo do narrador e de seus comparsas literários. Nesse projeto, alguns temas se repetem: a desconstrução do herói (ou a criação do anti-herói), a brincadeira com a autoficção e as suas inúmeras possibilidades e questionamentos, a loucura e a sexualidade exacerbada judaica (seus mitos e suas imposturas) e a cadeia intertextual de citações e autores.

Em “Meshugá”, o leitor se depara com uma investigação da loucura. Em “Nobel”, você flerta com certa estrutura kafkiana para empreender uma viagem subterrânea ao meio literário. Enlouquecer estilisticamente, por assim dizer, seria uma espécie de condição para encarar, com (paradoxalmente) um mínimo de sobriedade, a sordidez do meio literário?

JACQUES FUX – O Nobel presta uma homenagem a “Um Relatório para uma Academia”, de Kafka. Um discurso satírico e até sacana que um ex-símio faz diante da Academia. Nobel bebe também de outras fontes: com o intuito de chocar, mas também de compor um suspense noir, o narrador laureado conta e ludibria os atos infames, as injustiças, as pequenezas e infâmias de todo o meio acadêmico e literário com o objetivo de escandalizar, polemizar e degredar a classe em que se encontra inserido. O nobélico pretende desestruturar as bases da moral, da conduta e da postura ética corrente. Assim, ele performa um papel subversivo homenageando e degradando o próprio papel do escritor e da literatura. Neste momento, ele reconta, à sua maneira a História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges e “A vida dos homens infames”, de Michel Foucault.

Jacques Fux, o autor premiado com o Nobel e narrador de Nobel, começa seu discurso aludindo à “transformação desse meu ‘eu’, real e biográfico, em um ‘eu’ ficcional e ventríloquo da memória e da obra dos outros”. É possível alcançar o outro por meio dessa radicalização ou exacerbação do ‘eu’ e de sua voz? Ou o nobelizado Fux corre o risco de se enforcar com suas próprias cordas vocais?

JACQUES FUX – Fux se enforca com suas próprias palavras. O ventríloquo – esse projeto literário que de alguma forma recria a ideia de Beckett – deseja falar o que permanece escondido, secreto e enterrado no ventre dos escritores e da literatura. Mas ele acaba se perdendo. Sua vaidade se inflama. E se inflama de tal modo que ele já não sabe mais em nome de quem ele fala – e nem qual é exatamente o lugar da fala. O que acontece é uma defesa, quase sagrada, da própria ficção.

Essa dessacralização da literatura e das figuras dos escritores no palco onde elas ainda são tão sacralizadas seria também uma tentativa de aproximação do mundo e das pessoas que (mal ou bem) ainda pulsam ao nível da rua? Aproximar a loucura literária da “loucura social”? Ou é tudo sintoma de um mesmíssimo surto?

JACQUES FUX – Sim. Todos nós somos humanos, mesmos aqueles detentores de grande saber e de grandes honrarias, como é o caso do Nobel. O ser humano é esse misto de belezas e crueldades, de atos honrosos e outros vis e mesquinhos. O narrador quer expor e escancarar esse lado literário e humano dos escritores (e dele próprio). Há essa vontade de mostrar que a loucura social é exatamente esse mundo raso de aparências e idolatrias. E que é um fenômeno humano, mas que está elevado à décima potência nesse mundo de redes sociais e demonstrações públicas de alegria.

O “eu” de “Nobel” procura se colocar no lugar de outros “eus”. Seria um procedimento similar ao de “Meshugá”, em que o narrador repassa as histórias de uma série de personagens e, até certo ponto, transforma-se neles? Ou o esforço em “Nobel” seria ainda mais radical, na medida em que o assume como corrompido, falseador, adulterador?

JACQUES FUX – Meshugá quer entrar na cabeça dos “loucos” famosos como Woody Allen, Bobby Fisher, Bob Dylan, entre outros. Nobel surrupia e subverte as histórias dos “autores” e de suas “obras”, mistura, polemiza, cria e deturpa essa rede de referências e citações. E é assim que o narrador acredita tratar a questão da ficção.

Segundo o narrador de “Nobel”, o ficcionista usurpa o tempo, assimila e compreende “calmamente um passado já transfigurado” para, então, escrever e reescrever “uma sinfonia de um momento já extinto”. Em um certo sentido, o trabalho do escritor é um comércio com seus mortos, um diálogo surdo com fantasmas. Ao insistir em expor alguns dos mecanismos sórdidos de tal comércio e tal diálogo, o narrador não corre o risco de se tornar, ele próprio, um fantasma?

JACQUES FUX – Sim. O escritor contemporâneo escreve suportando o cânone e as honrarias em seus ombros. Mas isso é penoso, cruel e dramático. Tão forte e difícil que ele acaba dialogando com a criação que ele faz desses fantasmas. Nobel quer romper, de alguma forma, com isso. Deturpar e denegrir também é parte importante da literatura. Por isso esse discurso satírico. Por isso a lucidez que se alcança (ou não) com o atestado (no caso, o Nobel) do outro – ou da Academia. Porém, tudo isso é estúpido, como o próprio narrador.

Os suicídios de Hemingway, Kawabata e Mishima, referidos em “Nobel”, seriam um desdobramento previsível do trabalho como escritor? Afinal, “tudo isso é inútil”, e “o que fazemos não passa de caricatura e falsificação”. Ou assumir o trabalho como “caricatura” e “falsificação” seria um passo na direção contrária, isto é, um modo de evitar o desapontamento, o autoengano e, por fim, a autoanulação?

JACQUES FUX – Acho que um pouco dos dois. O autor morre (ou se mata em seus livros ou em sua criação), mas a obra permanece. Porém, ela se transforma pela adulteração da áurea do tempo e da fantasia dos leitores.

“Somos parte de uma voz que narra faltosamente o indizível”: em que direção irá a sua voz agora? O que virá depois do “Nobel”?

Quando escrevi o Antiterapias, tornei-me um personagem da própria literatura. Em Brochadas, me vi completamente brocha e impotente diante do imponderável. Meshugá me colocou num lugar de dor, de confusão e de doença. Da doença dos meus personagens e da minha própria insanidade. Nobel é um livro de angustia, de ansiedade, de privação amorosa e de desolação. Esse projeto, portanto, me arrebatou de loucura, ansiedade, angústia e impotência… por isso quero escrever sobre duendes, fadas, e da conspiração do universo me ajudando no próximo livro.

 

“Nós”

Entrevista cedida a Bruna Marquezan para a revista NÓS.

Schiele

Seu primeiro romance, Hoje está um dia morto, tem como pano de fundo o suicídio, tema esse que também aparece em Terra de casas vazias. Em algumas de suas entrevistas, você atrela essa abordagem ao grande número de suicídios cometidos em Silvânia durante sua adolescência. Em sua opinião, como o contexto histórico e social de Silvânia desde o acidente com o Césio 137 na capital influenciou nesses altos índices?
Não me lembro de alguma vez ter feito relação entre o índice de suicídios em Silvânia e o acidente com o Césio 137. Inclusive, na época do acidente, eu e minha família residíamos no sul do Pará (vivemos por lá entre 1986 e 1988) e acompanhamos tudo à distância. Hoje, passados todos esses anos, e como saí de Silvânia há tempos, não creio que consiga tecer, com um mínimo de consequência, quaisquer paralelos entre os eventuais suicídios de conhecidos meus e a tragédia ocorrida na capital. Quando me lembro dos suicídios, penso em cada situação individual, específica, e para mim isso já é mais do que suficiente. Vou ficar lhes devendo essa.

Hoje está um dia morto traz um interessante jogo de ligação entre a literatura e o cinema. Graeme Turner vê o cinema como prática social, e isso podemos observar com clareza dentro da representação de alguns eventos em específico, como por exemplo as guerras e os conflitos políticos retratados no cinema hollywoodiano. Afrânio Coutinho caracteriza a literatura como uma “transfiguração do real”, retransmitida pela língua, configurando-se, dessa forma, como parte da vida humana e como meio através do qual se tem contato com essa vida. De que maneira a sua obra mescla a “prática social” e a “transfiguração do real” nas perspectivas do cinema e da literatura?
Considero bem ingênuas e filosoficamente débeis as noções de Turner e Coutinho. Dizer que algo é uma “prática social” não quer dizer muito acerca desse algo, seja ele qual for. Dadas a tessitura e a estruturação de nossa sociedade, por exemplo, qualquer coisa pode ser encarada como uma “prática social”. Lembro-me, então, da ‘boutade’ de Godard, para quem “filmar é um ato político”. Qualquer ato humano é político na medida em que estamos inapelavelmente inseridos em um contexto tal, inclusive (ou, dependendo das circunstâncias, sobretudo) quando prescindimos de agir. Coutinho, por sua vez, investe nessa bobagem de ecos pseudoheideggerianos contaminada por uma mitificação adolescentemente academicista. Ora, ao abrir os olhos e observar uma determinada coisa, já “transfiguramos o real”, na medida em que processamos esse “real” (seja lá o que ele for, pois ninguém sabe de fato) pelo nosso aparelho perceptivo. Nem entrarei aqui numa elucubração de cunho epistemológico; a fisiologia da coisa já me parece suficiente para o que procuro ressaltar. Afirmar a literatura como uma “transfiguração do real” mediante a linguagem, e que nos coloca em “contato” com a vida, é algo que beira a tautologia. E que diabo é esse “real” a que ele se refere? Estou diante de uma acepção de fato realista da existência (seja lá o que isso for) ou tudo é uma construção ideal, tornada factível somente na e pela linguagem? A inconsequência filosófica disso chega a ser risível, e meu trabalho não tem absolutamente nada a ver com essas perquirições autoenganosas. Antes, penso na “força silenciosa do possível” enunciada por Heidegger, longe dessa distinção falaciosa e linguageira de Coutinho, que confunde presença e representação só para negar tanto uma quanto a outra, por mais que recorra à muleta “transfigurativa”.

Como a sua obra reflete os impactos da globalização sobre a sociedade?
Não penso nesses termos. Obviamente, sei o que é viver no mundo de hoje, hiperconectado etc., e quando situo uma história nos dias atuais, levo em conta tais e tais coisas. Mas, em termos essenciais (se me permite usar esse palavrão), os seres humanos que crio são, grosso modo, os mesmos que circulam por aí desde sempre: mais ou menos pobres, muito ou pouco indefesos, às vezes bons, às vezes maus etc. No meu modo de ver, as “teorias” acerca dos “modos de produção” não mascaram o óbvio: independentemente do “sistema” em vigor, somos essencialmente a mesmíssima porcaria maravilhosa, por assim dizer.

Em suas obras, encontramos várias referências a elementos bíblicos e à figura de Deus, como se nota no capítulo cinco do livro Hoje está um dia morto, intitulado “O cu de Deus”. Isso seria fruto de alguma crença particular sua?
Tenho uma crença profunda em D’us (favor manter a grafia assim), próxima do judaísmo e distante anos-luz de quaisquer cristianismos. Já o Deus que irrompe no “Dia Morto” é uma caricatura da divindade que o catolicismo e o kardecismo tentaram me empurrar goela adentro, quando eu era moleque. D’us, felizmente, é ou me parece ser outra Coisa. E o sentimento que experimento d’Ele é algo tão íntimo que sequer me dou ao trabalho de tentar explicar o que é. Até porque não preciso.

O que Goiás e Silvânia, muito presentes em suas obras, representam para você?
É o lugar onde cresci e no qual passei por experiências extremamente importantes para a minha formação e para o que me tornei depois, para o bem e para o mal. Experiências boas, ruins, intensas, reveladoras, traumáticas, horríveis, bonitas. Experiências de todo tipo. Logo, é natural que tais experiências ainda marquem os meus escritos, ainda que reimaginadas, reinventadas, ficcionalizadas e às vezes completamente transformadas, pois não faço o que se convencionou chamar de “autoficção”.

Pra você, qual o sentido da vida e da literatura?
Para mim, o sentido da vida consiste em cultivar o que me é caro e próximo. No meu caso, o amor que sinto por minha esposa e por uns poucos e bons amigos. Cultivando isso, cultivo a mim mesmo e procuro ser correto e justo, a despeito da minha precária humanidade. O sentido da literatura reside no outro; se e quando eu o alcanço, ocorre uma troca e estamos bem.

De acordo com Friedrich Novalis, estamos sempre voltando para casa. Tal qual algumas de suas personagens, você se vê retornando para Silvânia num futuro distante?
Não, porque nunca me senti em casa em Silvânia. Minha casa é onde estou agora, com quem estou agora. Demorei bastante para chegar até aqui, a um custo imensurável, mas cheguei. Muitos não têm essa sorte. Eu mesmo cheguei a pensar que não teria. Agora, na medida em que não considero Silvânia a minha “casa”, você pode se perguntar por que a sigo abordando em meus escritos. Bom, porque também somos o caminho que fazemos e os lugares pelos quais passamos, por piores que eles às vezes nos pareçam. Não nego quem sou nem por onde e pelo que passei. Mas, e isso lhe afirmo com toda a certeza, jamais conseguiria escrever a esse respeito, da forma como escrevo, se não tivesse adquirido tal consciência e tomado essa distância.

Sua graduação em Filosofia influenciou ou foi influenciada por seus livros?
Nem uma coisa, nem outra. As disciplinas filosóficas que estudo com maior atenção são bem específicas e nada têm a ver com literatura. É uma ocupação que mantenho à parte.

Considerando o conjunto de sua obra, com qual personagem você mais se identifica? Por quê?
Eu me identifiquei com personagens diferentes em momentos distintos da minha vida. Por exemplo, já experimentei bem de perto a ânsia autoanuladora da Fabiana do Dia Morto ou a falsa quietude do Aureliano de Terra de casas vazias. Hoje, sinto-me próximo do Lázaro de Abaixo do Paraíso. A exemplo dele, pressinto a tragédia se instaurando ao redor, mas sei que a única coisa a fazer é continuar aqui no meu canto, cultivando a minha roça.

A seu ver, para criar literatura, o autor precisa se despir de si mesmo no sentido de criar uma obra que não seja autobiográfica, ou fingir a própria dor sentida (Fernando Pessoa) ou, ainda, deve se pessoalizar nas personagens e eventos narrados?
Não posso falar pelo “autor” enquanto categoria, até porque cada um é e trabalha de uma determinada maneira. No meu caso, é inescapável que algumas das coisas que vivenciei e alguns dos lugares pelos quais passei apareçam de algum modo nas minhas histórias. Às vezes, parto da minha experiência, mas o esforço é sempre o de imaginar e criar um universo ficcional. Até porque jamais me exporia ou exporia pessoas que são ou foram próximas de mim, e respeito demais a imaginação e a invenção para conspurcá-las com fatos da minha vida particular. Aliás, eu me respeito demais para fazer esse tipo de coisa. Evito e desprezo esse tipo de exposição.

Seu processo de criação literária ocorre mais por uma inspiração ou pela disciplina de escrever? Há algum tipo de ritual?
Disciplina. Eu me sento à mesa e escrevo. A única mania é que as primeiras versões dos meus romances são sempre escritas à mão, só depois é que passo ao computador. Mas isso não quer dizer nada. Como disse, é só uma mania. “Inspiração” é uma maneira sacal de se referir à disposição: há dias em que estou mais e há dias em que estou menos disposto a trabalhar, assim como qualquer outra pessoa, em qualquer outra área, seja um advogado, um encanador ou um veterinário. E, assim como qualquer outra pessoa, em qualquer outra área, estando ou não disposto, eu me entrego ao trabalho e, assim, há dias em que produzo mais e/ou melhor e há dias em que produzo menos e/ou pior. E há dias em que não faço nada, embora sejam relativamente raros (e eu me sinta culpado depois).

Fichte

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No capítulo 20 da segunda parte do formidável Explosão, Hubert Fichte primeiro transcreve burocraticamente uma entrevista que fez com Salvador Allende, e depois, de forma inesperada e quase onírica, narra um inadvertido encontro com Jorge Luis Borges. A justaposição dos encontros, a enorme diferença com que cada um deles é abordado, a carga poética de um em detrimento da algaravia putrefata do outro — nada disso é por acaso.

Ao introduzir a entrevista com Allende (p. 275):

Não existe literatura engajada, pensou Jäckl.
O critério fundamental da literatura é que ela não se amarre a nada.
A única que não pode ser amarrada.

Depois, diante de Borges (p. 282-4)

Em Buenos Aires impera a lei da eternidade.
(…)
Se existe eternidade e tempo,
e Jäckl citou Borges consigo mesmo
E Jäckl não duvidou que nem sequer pudesse existir um fim do tempo.
Então aquilo ali, Jäckl esperando por Borges, já sucedeu infinitas vezes.
(…)
Eram quinze minutos com a memória do mundo na forma do mais puro ouro em pó.

Depois, Fichte ainda sacaneia lindamente o chileno (p. 285):

No Chile Jäckl queria saber, antes de mais nada, se o regime socialista de Allende, que dava às crianças famintas um litro de leite por dia, oferecia também aos gays famintos seu um oitavo de creme ou então pelo menos um dezesseis avos.

(No mesmo capítulo, Fichte também transcreve uma longa e lúcida entrevista que fez em 1975 com Carlos Jorquera sobre as causas e os efeitos do golpe militar, as torturas, as presepadas do governo Allende etc. É, talvez, e salvo pelo delirante respiro borgeano, o capítulo  mais “jornalístico” do romance.)