Lote de obsessões

Lote de obsessões

Artigo publicado ontem no Estadão, assim como a lista mais abaixo.

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Em linhas gerais, os escritores costumam lidar com um mesmo lote de obsessões. Quando revisitamos as obras de um determinado autor, é relativamente fácil perceber os elementos que orientam a mão do escritor e, quando bem trabalhados, desconcertam o olhar dos leitores. Não se trata apenas de “estilo”, mas de algo mais difuso que, girando em torno de um centro temático, está além do ritmo das frases, das estruturações habituais e mesmo das manias e tiques. Assim, institui-se um nível mais profundo de identificação do autor consigo mesmo e, depois, com seus leitores. Isso é evidente quando nos debruçamos sobre a produção de Ian McEwan, coisa que o relançamento de A Criança no Tempo e a chegada de Meu Livro Violeta ajudam a mapear.

McEwan passou por algumas “fases” no decorrer da carreira. É sempre uma questão de ênfase ou, melhor dizendo, de enfatizar determinados elementos ou lhes dar novas roupagens, aprofundá-los, virá-los pelo avesso, repensá-los. No começo era o “Ian McAbro” das narrativas sombrias e violentas, como os contos de Primeiro Amor, Último Sacramento e Entre Lençóis e os romances O Jardim de Cimento e Ao Deus-Dará. Já neste século, temos o autor maduro (e antenado com o zeitgeist) de Sábado e Solar. Entre uma “fase” e outra, há um período de transição e consolidação iniciado justamente com A Criança no Tempo, em 1987. A partir daí, McEwan refina aqueles elementos que já se faziam presentes nos primeiros escritos, mas trabalhando a violência de formas mais sutis e abrindo espaço para uma gama maior de interesses e especulações (vide o uso da música em Amsterdam). O refinamento culmina na obra-prima Reparação, romance que amplia todas as dissonâncias (familiares, sociais, históricas e, acima de tudo, da própria tessitura ficcional) daquele seu lote de obsessões.

Chegamos, então, aos lançamentos que celebram os setenta anos de McEwan. Terceiro romance do autor, A Criança no Tempo não era inédito no Brasil: há duas décadas, a mesma Rocco que publicou seus contos reunidos, dentre outras pérolas, colocou no mercado uma boa tradução de Geni Hirata. Para o relançamento, a Companhia das Letras recorreu a Jorio Dauster. Meu Livro Violeta, vertido pelo mesmo tradutor, traz o conto homônimo (publicado pela primeira vez na revista New Yorker) e o libreto para a ópera Por Você, de Michael Berkeley.

Premiado com o Whitbread (hoje Costa Book) Award, A Criança no Tempo é um tortuoso palmilhar pelo luto. Seu protagonista, o autor de livros infantis e “esfacelador de pequenos mundos” Stephen, teve a filha de três anos raptada na fila do supermercado. A ocorrência o afasta da esposa, a violinista Julie, e instaura uma nova relação dele com o mundo ao redor (o hábito doloroso de estar sempre à procura da filha, e às vezes de enxergá-la ou confundi-la com outras crianças) e o tempo. Este, por mais que proíba “de forma monomaníaca as segundas oportunidades”, será um aliado nem sempre amistoso, mas afinal confiável em suas tentativas não de resgatar a filha, perdida desde o começo, mas a si mesmo e Julie.

Nisso, tão importante quanto a relação dele com o melhor amigo, Charles, o qual abandona uma carreira política promissora para se esconder no campo e embarcar em uma quimérica regressão à infância, é a “viagem no tempo” que Stephen empreende, ingressando de forma alucinatória em um momento decisivo das vidas de seus pais e, por decorrência, da sua própria. Naquele instante anterior está a chave para que Stephen deixe de ser o “pai de uma criança invisível” e recupere o “desejo de pertencer” que a perda anulara.

Meu Livro Violeta é a história, em primeira pessoa, de um roubo intelectual. “Você não vai acreditar”, diz o narrador, “mas eu não tinha nenhum plano. Só queria ver.” Há dois amigos de longa data, ambos artistas (o que nos remete a Amsterdam) – no caso, escritores. Um deles é extremamente bem-sucedido; o outro, longe disso. Seria demais revelar exatamente o que e, sobretudo, como é roubado, mas não custa ressaltar que a traição é, mais do que intelectual, anímica.

Por fim, o libreto Por Você segue explorando esse tema. Algumas traições são mais imediatas (a esposa do compositor e o médico); outras, intrincadas e cruéis, como a motivação da empregada, disposta a tudo não para se entregar ao amado ou libertá-lo, mas, antes, tornar “seu cativeiro um lugar feliz”. Esse tipo de ironia trevosa é puro Ian McEwan.

…………

10 LIVROS ESSENCIAIS DE McEWAN

PRIMEIRO AMOR, ÚLTIMO SACRAMENTO (1975)
&
ENTRE LENÇÓIS (1978)
Trad.: Roberto Grey. Rocco, 1998.
Os dois primeiros livros são coletâneas de contos, lançadas no Brasil em um único volume pela Rocco. As narrativas são breviários de perversidades e violências, o tipo de coisa alegremente grotesca que lhe valeu o apelido Ian “MacAbro”. Personagens apaixonados por manequins. Gente com genitais em vidros de conserva (herança de família). Incesto. Há um pouco de tudo. E há o mais importante: contos tão bem escritos e imaginativos que, passada a repulsa, resta uma beleza insuspeita.

O JARDIM DE CIMENTO (1978)
Trad.: Jorio Dauster. Companhia de Bolso, 2009.
O romance de estreia. Na história, o pai e depois a mãe morrem, e os órfãos passam a, literal e perturbadoramente, “brincar de casinha”. Um elemento estranho é introduzido na brincadeira. Há um corpo enterrado por ali. E irmãos e irmãs.

AO DEUS-DARÁ (1981)
Trad.: Waldéa Barcellos. Rocco, 1997.
Sádicos e masoquistas, uni-vos! Um casal em segunda lua-de-mel erra por uma cidade que talvez seja Veneza. Lá, conhece outro casal. Uma teia é armada. E um “crime comum” é cometido. Não se engane com a brevidade do livro.

A CRIANÇA NO TEMPO (1987)
Trad.: Geni Hirata. Rocco, 1997 / Jorio Dauster. Companhia das Letras, 2018.
Terceiro romance, primeiro sacramento. Aqui se insinua uma possibilidade de redenção ou, pelo menos, expiação. E calor humano, coisa até então rara em seus escritos.

O INOCENTE (1990)
Tradução: Alexandre Hubner. Companhia das Letras, 2003.
Na Berlim do começo da Guerra Fria, McEwan reencontra “MacAbro”. O título do livro poderia ser: “As viagens de Otto”. Leia nem que seja para entender a piada.

AMSTERDAM (1998)
Trad.: Paulo Reis. Rocco, 1999 / Jorio Dauster. Companhia das Letras, 2012.
Tido por alguns como o trampolim que levaria o autor às alturas de Reparação, este romance agraciado com o Booker Prize é bem mais do que isso. A fábula moral que desenrola envolve algumas escolhas e, como toda fábula moral, é na verdade uma armadilha. Deixe-se levar pela música (mas não muito).

REPARAÇÃO (2001)
Trad.: Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 2002.
A obra-prima de McEwan. A princípio, o romance se apresenta como a história de uma paixão malograda pelas intrigas de uma terceira (e inusitada) parte. Mas, na verdade, é um esforço de expiação por meio da fabulação literária, tão bem-sucedida esteticamente quanto malfadada “na prática”. Os Mortos de Joyce voltam à vida, e Evelyn Waugh sorri desde o além.

SÁBADO (2005)
Trad.: Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 2005.
Em 15 de fevereiro de 2003, protestos contra a Guerra do Iraque tomaram Londres. Acompanhamos o protagonista, um médico de meia-idade, em sua jornada contra o dia. Ciente da pulsação histórica do momento, McEwan encapsula conflitos e tensões: o clímax enseja violência, mas também algum consolo. “O mar está calmo esta noite…”.

ENCLAUSURADO (2016)
Trad.: Jorio Dauster. Companhia das Letras, 2016.
Uma reimaginação de Hamlet em que o narrador é nada menos do que um feto. Afinal, de “que serve a imaginação senão para visualizar, saborear e repetir possibilidades sangrentas”?

 

Copa(s)

A Copa do Mundo começa amanhã, mas eu e os camaradas do PELÉ CALADO estamos atualizando o site há algumas semanas. São textos escritos em salas de espera, balcões de lanchonetes de rodoviária, quartos de hotel, concorridos bancos traseiros de UberPool, recepções de delegacias de bairro e no front ocidental, sob o bombardeio dos filisteus. Claro que, com o início dos jogos, as atualizações serão mais frequentes, frementes e até mesmo francamente insanas. Contamos com a sua companhia, mesmo que ela seja escarnecedora. O importante é proferir. Sigamos.

Banville e a memória

Texto publicado hoje n’O Popular
(outra versão desse texto saiu no Estadão em meados de 2013).

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A memória é uma dança de espelhos, e os reflexos que distinguimos aqui e ali raramente são confiáveis. O narrador e protagonista de Luz Antiga, Alexander Cleave, tem plena consciência disso. O romance de John Banville fecha uma trilogia cujos volumes precedentes são Eclipse Sudário, também lançados no Brasil pela Biblioteca Azul e traduzidos respectivamente por Celso Mauro Paciornik, Cássio Arantes Leite e Sergio Flaksman.

Em Luz Antiga, a ironia e a autoironia são as armas à disposição para dar conta da memória, descrita como uma senhora “dissimulada e sutil”. É muito fácil se perder nesse “labirinto cristalino” onde tempo e memória, “dupla nervosa de decoradores”, estão sempre “trocando a mobília de lugar, alterando a disposição e até a finalidade dos aposentos da casa”. Assim, o narrador coloca em dúvida a sua capacidade de resgatar o que quer que seja do “naufrágio gradual” que é a vida, ao mesmo tempo em que demonstra, pelo próprio desenrolar da narrativa, o quanto esse esforço é incontornável.

Cleave é um ator de teatro que abandonou os palcos após uma apresentação desastrosa, mas isso não chega a incomodá-lo. A dor maior diz respeito ao suicídio da filha, Cass. Uma década após a perda, ele é convidado a atuar num filme sobre um certo Axel Vander, um impostor que, por coincidência, estava por perto quando Cass se matou numa cidadezinha da Ligúria. Aqui se inscreve um dos pontos altos da autoironia de Banville: Vander protagoniza o romance anterior da trilogia, Sudário. Em Luz Antiga, o livro no qual se baseia o filme em que Cleave atua se intitula A invenção do passado e foi escrito por alguém referido como JB. Em alguns momentos, Banville faz com que seu narrador se refira a esse livro de forma mordaz, incorporando o tipo de coisa que os raros detratores dizem a seu próprio respeito: “Retórico ao extremo, de uma elaboração teatral, totalmente sintético, artificial e atravancado”.

Mas esse jogo não é o aspecto mais relevante do livro. Assim como Cleave não se fixa obsessivamente naquelas coincidências, e a narrativa não chega a constituir uma investigação relativa ao suicídio de Cass, Banville também está, digamos, preocupado com outras coisas.

O esforço de ambos, autor e narrador, é o de permitir que a memória assuma alguma forma, qualquer que seja, enquanto a vida se esboroa (ou a despeito desse esboroamento). Assim, mais importante do que quaisquer autorreferências, do que os percalços profissionais do narrador, do que Vander, é a maneira como Cleave recupera a história de seu primeiro amor: aos quinze anos, ele teve um envolvimento amoroso com a mãe de seu melhor amigo.

Nenhum outro evento tem, no romance, a potência desse affair com uma mulher vinte anos mais velha, nem mesmo os ecos da perda de Cass. Menos pelo seu suposto desfecho, anunciado desde o início, e mais por aquilo que, meio século depois, Cleave conseguirá resgatar e descobrir (o final guarda algumas surpresas), é que a extensão da memória se revela em toda a sua precariedade. Assim como o universo “contém uma massa perdida que não temos como ver nem medir”, também a memória resta em sua maior parte obscurecida, apesar da luz antiga que lançamos sobre ela ou que, inadvertidamente, ela deita sobre nós, vivos e mortos.

Roth, RIP

Versão estendida de um artigo publicado ontem no Estadão.

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Faltava uma hora para escurecer naquela tarde de junho de mais de vinte anos atrás – eu tinha dezessete anos, escrevia e escondia (mal) uns poemas bem ruins e, à maneira de muitos protagonistas de Bildungsroman antes de mim, já sonhava com o meu próprio e monumental Bildungsroman – quando, sentado nos fundos de um ônibus caindo aos pedaços que me transportava de Silvânia para Anápolis, onde frequentava um cursinho pré-vestibular, fui apresentado a Philip Roth.

O livro que tinha em mãos – cujo início parafraseei desavergonhada e canhestramente acima – era uma edição do Círculo do Livro de The Ghost Writer, rebatizado como Diário de uma Ilusão. Eu o pegara da biblioteca, atraído pela capa (um corpo nu de mulher, em meio às sombras, atrás de uma máquina de escrever) e também porque era um autor que, volta e meia, Paulo Francis elogiava em suas colunas. Comecei a ler enfurnado naquele ônibus (as janelas batiam com o vento gelado, e eu me lembro de sentir muito frio naquelas viagens) e, uma vez em Anápolis, não fui para o colégio, é claro, mas despistei os colegas, escondi-me em uma lanchonete das redondezas, pedi um café e devorei o resto do livro com a certeza de ter encontrado uma voz que falava tão diretamente comigo que era como se viesse de dentro para fora.

Era a voz de alguém que, embora estrangeiro, norte-americano, judeu, nascido quase meio século antes de mim, dava a impressão de estar sentado àquela mesa comigo, em um pé-sujo no interior de Goiás, compartilhando uns pães de queijo enquanto confidenciava um espanto diante da existência e de muitas das coisas que ela arrasta – solidão, desejo, raiva, beleza, morte – que era também o meu espanto. Página após página, Roth me oferecia a história de um jovem autor (ninguém menos que seu alter ego Nathan Zuckerman) que, em meio a um conflito identitário, consigo mesmo e com os seus, ia ao encontro de seu mestre. Ele me colocou sob a pele de Zuckerman, e então aquele conflito (objetivamente distante) se tornou meu ou, melhor dizendo, traduziu-se, fez sentido de e para mim, possibilitou uma abertura para o outro.

Nos anos seguintes, ao ler mais livros do autor, experimentei aquela mesma sensação – não raro dolorosa – de reconhecimento. Mergulhei na sexualidade artrítica (moral, literária e literalmente falando) do protagonista de O Teatro de Sabbath; horrorizei-me com a morte do Pai (sic) em Patrimônio; desesperei-me com o descompasso do homem com seu tempo em Pastoral Americana; concordei que a raiva, além de ser vivificante, é muitas vezes só o que nos resta (em A Marca Humana); fui a um enterro de araque e depois a Israel (e voltei) com O Avesso da Vida; conheci Aharon Appelfeld e concebi um outro eu, oposto em seus propósitos, mas idêntico em sua fúria, com Operação Shylock; e fechei um ciclo da única maneira possível – encarando a morte – com Fantasma sai de cena.

Falando como leitor, é bem possível que o “meu” Bildungsroman seja exatamente esse palmilhar pelo universo alheio. Ou, em vez de um “romance de formação”, eu poderia falar de certa “formação pelos romances” de Roth, na medida em que eles não só mostraram e trouxeram para mim, bem cedo, aquela possibilidade de abertura, mas também me ajudaram a mapear o espaço intervalar que existe entre mim e o outro, espaço no qual é possível conviver comigo mesmo e com o outro, porque as nossas dores e alegrias se tornam, de repente, por obra e graça da grande literatura, perfeitamente traduzíveis.

…………

Roth faleceu anteontem, aos oitenta e cinco anos de idade. Não escrevia ou, pelo menos, não publicava nada há anos. Quando li a notícia, a primeira coisa que me ocorreu foi: como é possível que ele tenha morrido? Tudo o que ele odiava estava aqui.

Que descanse em paz.

Sobre a tristeza

Publicado em 15.05.2018 n’O Popular.

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Há algumas semanas, um conhecido meu se matou. Sendo uma figura conhecida no meio literário, teve a morte noticiada pelos jornais. Como de hábito, não se especificou a causa. Essas coisas ficam nas entrelinhas. “Fulano foi encontrado morto.” Os leitores ligam os pontinhos sem esforço. Os conhecidos trocam mensagens. “Foi isso mesmo?” “Parece que sim.” A autoanulação alheia sempre cala bem fundo. É a expressão máxima de uma tristeza (prefiro não usar o termo clínico “depressão”) no fim das contas inexprimível, tristeza que paradoxalmente só nos resta cercar com palavras.

A meu ver, contrariando o escritor (filósofo? Não) Albert Camus, o suicídio não é sequer um problema filosófico. A inquietação que o calça é de outra categoria: o suicídio não é uma resposta ao absurdo, mas um deslocamento em seu interior. Um deslocar-se nadificador.

Palavrinha brutal, “suicídio”; o gesto a que se refere é um esvaziamento completo, uma autoanulação que engole o futuro possível, mas, sobretudo, ateia fogo ao passado, salga o que foi vivido até o momento do salto. O gesto suicida inscreve(-se n)o próprio apagamento. A filosofia não alcança tamanha rarefação silenciadora.

O que o suicídio diz é o próprio silenciamento. São dois pontos afixados no vazio: nada antes, nada depois. A tristeza, por sua vez, gagueja em minúsculas (mesmo quando grita). É uma perplexidade negativa. Ela convida ao silêncio. Uma coisa pode ou não levar à outra. Mas não é disso que trato aqui.

Leio ao final da primeira das Meditações de Descartes: “(…) pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas nada mais são que ludíbrios dos sonhos, ciladas que ele (gênio maligno) estende à minha credulidade. Pensarei que sou eu mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum, mas tenho a falsa opinião de que possuo tudo isso”.

Para Descartes, a hipótese do gênio maligno é um recurso metodológico. Mas impressiona como a sua descrição se aproxima muito da experiência que muitos temos da tristeza. A tristeza alcança o indivíduo na forma de um esfarelamento gradual do próprio corpo, até o momento em que ele se sente “desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum”, irrespondivelmente exposto ao sofrimento anímico, reduzido a tal resto.

A tristeza é um envergonhar-se que alcança um nível ontológico; a mera existência torna-se embaraçosa em sua dolorosa nudez. O mundo não nos cobre; os prédios não nos camuflam; os outros não nos protegem, sequer é possível que estejam próximos. A tristeza faz com que restemos sozinhos e nus, pura alma e pura dor, no silencioso deserto existencial.

Volto ao tal conhecido. Nunca fomos próximos. Estive com ele poucas vezes, em funções sociais que a vida literária (ou coisa que o valha) exige (ou a gente acha que exige, e se deixa levar). Sempre muito agradável. Ria educadamente das minhas idiotices. Falávamos bastante sobre o bairro paulistano em que, por coincidência, ambos morávamos. Mudei de bairro há alguns anos, e ele voltou para sua cidade natal. Depois, optou pela mudança definitiva.

É uma tragédia como a vida neste mundo, neste país, às vezes nos oblitera o corpo. O Brasil é esse enorme aquário seco de cujas torres saltam aventureiros. Ainda que, a rigor, a razão última do salto talvez escape até mesmo aos que o desenham no vazio.

“Pelé Calado” está de volta e nada será como antes

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Com a Copa do Mundo se agigantando na acidentada estrada à frente, Flávio Izhaki, Lielson Zeni, Túlio Bragança, Fernando Jasper e eu inconsequentemente tomamos a decisão de reviver o Pelé Calado. E é o Flávio quem nos oferece o primeiro aperitivo da temporada 2018. Agrediremos a caixa de areia virtual com nós táticos & textuais desde já e pelo Mundial afora. Putin não resistirá.

Nós, os bárbaros

Resenha publicada em 18.05.2013 no Estadão.

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O professor de filosofia e escritor Jérôme Ferrari teve de abocanhar o Goncourt — o mais importante prêmio literário francês — para ter um romance traduzido por aqui. O sermão sobre a queda de Roma foi laureado em 2012 e, mesmo antes da premiação, já era um sucesso de vendas na França. A despeito do título, que esclarecemos a seguir, não é um romance histórico.

Agostinho, então bispo de Hipona, proferiu vários sermões sobre a queda de Roma desde agosto de 410 d.C., quando os visigodos chefiados por Alarico invadiram e saquearam a cidade por três dias. Para não nos delongarmos muito, sublinhe-se que a pilhagem de Roma e o choque advindo disso fariam com que o futuro santo, no exercício de seus sermões, começasse a gestar aquela que seria a sua obra máxima — A Cidade de Deus.

A geração de Agostinho viveu um período traumático no qual o declínio romano se acentuava e as investidas bárbaras deixavam claro que a cidade, dita eterna, era tão perecível quanto qualquer outra. Assim, é interessante como, em sua narrativa contemporânea, Ferrari parece sugerir não que os invasores estejam chegando ou já se encontrem entre nós, mas que todos, de uma forma ou de outra, por força de uma inescapável inadequação, somos bárbaros.

Para ilustrar isso, ressaltamos dois personagens, cujas andanças sustentam boa parte do livro: Marcel e seu neto, Matthieu. O primeiro é alguém marcado pela ausência. Isto é evidente desde o começo, quando é descrita uma fotografia de família tirada no verão de 1918, na qual Marcel não está presente: o pai é um prisioneiro de guerra e ele ainda não foi concebido. Uma ausência dupla, portanto: do pai e do filho. Décadas depois, contudo, ao observar a fotografia, Marcel é o único que restou para servir como “anteparo de todos contra o nada”. Após uma experiência frustrante na Segunda Guerra Mundial, ele faz carreira como administrador colonial no norte da África, às vésperas da queda de outro império, o francês. Mas a ocorrência definidora de sua existência é a morte da esposa. Esta é a ausência última.

Matthieu, por sua vez, abandona os estudos de filosofia em Paris e, com um amigo de infância, Libero, retorna ao vilarejo da Córsega de onde provém a família para gerenciar um bar. O único a compreender sua decisão é Marcel. No fim das contas, a fuga de um espelha a do outro, empreendida muito antes, e ambos, conscientemente ou não, reconhecem a derrota e dão “um consentimento dolorido, total, desesperado, à estupidez do mundo”.

Se pensarmos na França contemporânea, assolada por choques culturais e crise econômica, o contraponto com a decadência romana não é despropositado. A diferença é que o “lento labor de demolição” parece antes entranhado nos personagens do livro, e não fora deles. Ferrari não vocifera contra a civilização ocidental ou lhe anuncia o término, mas nos insere em um movimento maior, humano e por isso bárbaro, cuja beleza está além de qualquer ideal civilizatório irrealizável.

Algo acontece perto do desfecho, uma violência tão gratuita quanto anunciada, para que ele encerre esse romance estupendo com a hipótese segundo a qual os “mundos passam, em verdade, um depois do outro, das trevas às trevas, e sua sucessão talvez não signifique nada”. Afinal, a exemplo dos familiares de Marcel naquela foto, e conforme as palavras de Agostinho, tudo o que construímos, construímos sobre a areia e tende a se esfarelar.

 

Adeus, Mozart

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Mais inteligente do que ver a guerra, ou as versões sensacionalistas e espetacularizadas que nos chegam dela, é pensá-la e pensar a nossa relação com as imagens dos conflitos que assolam o mundo, imagens que, não é de hoje, circulam (ou, para usar um termo atual, viralizam) por aí. É o que propõe Jean-Luc Godard em filmes como Para sempre Mozart.

O longa se organiza em torno de dois momentos: alguns jovens tentam chegar a Sarajevo, em meio à guerra que solapou a até então Iugoslávia, a fim de encenar uma peça de Musset; um velho cineasta é tolhido pela estupidez dos produtores, pela incompetência dos atores e pela incompreensão do público, que, noutro momento, não perdoa nem mesmo Mozart (que teria “notas demais”).

Assim, e não por acaso, Godard desenvolve o mínimo possível de notas, e nem sempre até o final. O filme me parece a narrativa (se tanto) de uma sequência de abortos narrativos. Por exemplo: a esperança abortada dos jovens, típica de seu idealismo; essa esperança sorri obscuramente, exibe os dentes da própria morte. Pois é óbvio que eles não chegarão a Sarajevo. A morte é desespetacularizada, assim como a guerra. Logo, a única peça que os personagens encenam é a de seu próprio fim.

Godard já lidara com o campo de batalha em Tempo de Guerra (Les carabiniers, 1963), um filme de guerra cuja estrutura parodia e nega a dos filmes de guerra. Não que haja ali um desmonte do gênero; antes, o cineasta dá um passo atrás em relação a ele. Com isso, ele sublinha a precariedade do discurso sobre a violência, tornado prosaico (porque é mesmo desgraçadamente prosaico) até pelo que os dois protagonistas, fazendeiros-combatentes, escrevem às esposas distantes, como: “Passamos por um rio de sangue. Um grande beijo”.

Para sempre Mozart, realizado mais de três décadas depois, trabalha em um outro registro, voltado inclusive para a própria feitura do filme. O desconsolo para com o business cinematográfico é explícito na segunda metade. O filme dentro do filme, sim, parece ter notas demais. O produtor quer sempre mais. Olha para o mar e reclama, diz que é pouco. O investidor é dono de um cassino. Note-se, também, como a atriz só consegue dizer um sim quando foge da câmera do filme dentro do filme e encara a outra, de Godard. Ela só se faz presente na medida em que se retira da camada narrativa mais interna (e falsa) para se colocar na outra, antiespetaculosa.

E o cinema de Godard parece há muito movimentar-se pela via da ausência. Ele está fora do circuito, fora das formas narrativas tradicionais, fora do que o grosso do público espera que um filme sejaPara sempre Mozart olha noutra direção, e evita ser. As melhores passagens dizem respeito à viagem abortada dos jovens. Eles são feitos prisioneiros. São barbarizados. Cavam as próprias covas. O quadro não tenta contê-los, por um lado (vide a morte de Camille), e, por outro, sequer tenta enquadrar a violência. Tal distanciamento é típico da estética antinaturalista do diretor.

O envolvimento emocional com a violência soa obsceno para Godard, até porque aquele rio de sangue nunca parou de correr. A diferença é que, hoje, salvo raras exceções, não escrevemos mais cartas. Não, nem mesmo isso.

Primatas

Versão estendida da resenha publicada hoje no Estadão.

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A história de uma revolução malograda ou mesmo irrealizável, narrada em primeira pessoa pelo orangotango que a lideraria: eis o que o leitor encontra em O Orangotango Marxista, novo romance de Marcelo Rubens Paiva. Preso no “campo de concentração didático” conhecido como zoológico, o protagonista é um primata atípico, alfabetizado e leitor voraz, um animal mais próximo dos “macacos nus” (os humanos) que de seus companheiros de cativeiro.

Na infância, ele lê Batman, de quem se torna fã. “Existe uma sordidez em Batman que existiu em toda a minha infância”, afirma. Mais velho, depois de perceber “quem era meu inimigo, o que estava errado na minha vida e por que me transformei no prisioneiro de uma existência sem o menor sentido”, corrige o “rumo” e abraça o marxismo (depois de ter com Darwin, é claro), crente de que é possível usar as ideias revolucionárias para alavancar uma transformação real.

Mas, antes de ansiar pela liberdade, ele primeiro flerta com o amor. Vivendo no centro de pesquisas biológicas de uma universidade (destino muito mais aprazível do que os laboratórios farmacêuticos), apaixona-se por Kátia, sua tratadora, “uma tímida, linda, ruiva, amorosa e dedicada pesquisadora universitária” que, como não poderia deixar de ser, desgraça a vida do nosso herói. É a paixão, contudo, que o leva a se interessar pelas atividades extracurriculares, por assim dizer: acompanha as aulas de alfabetização dos filhos dos funcionários, colabora com os experimentos científicos da adorada pesquisadora e, à noite, “livre para investigar”, mergulha na biblioteca da universidade.

Depois de reagir mal à desilusão amorosa (quando se comporta como um Louis C. K. orangotango), é transferido para o zoológico. Em plena adolescência, vivenciando uma terrível dor de cotovelo, vizinho de um gorila chamado Fidel (o qual vive solitário, “com pneus, troncos e tubos de concreto”, em “uma ilhota só para ele” e é a “única voz que se levantou contra a dominação”), desinteressado da companheira de jaula (Kinder Ovo), ele passa a escapar à noite do cativeiro para observar a cidade lá fora e seus habitantes. E, claro, como bom orangotango marxista, após atentar para a própria condição de oprimido, começa a arquitetar seus planos revolucionários.

Partindo de uma premissa com ecos kafkianos (como esquecer o célebre conto Um Relatório para uma Academia?) e da óbvia, mas extremamente funcional, inversão de perspectiva, Marcelo Rubens Paiva antropomorfiza o orangotango para melhor animalizar os seres humanos e expor, pela voz de um primata ilustrado – coisa cada vez mais rara, não é mesmo? –, a mecânica de uma sociedade adoecida. Dada a bagagem cultural do protagonista, o jogo narrativo ironicamente pressupõe um nivelamento pelo alto, e o “animal dócil e escravizado” cede espaço ao “animal político”.

Óbvio que, como nos mostra a história, o cultivo da revolução é de certa forma análogo à criação de corvos, os quais, conforme o ditado, cedo ou tarde nos furam os olhos. Por sorte, O Orangotango Marxista não omite ou se esconde dos paradoxos que desde sempre alimentam a nossa animalidade política, com o bônus de, ao final, explicitar a noção de que estamos presos ao eterno embate de teses e antíteses, e a síntese, qualquer que seja, não passa de um malogro, de uma quimera em cujo nome ainda correm rios de sangue.