Sobre a tristeza

Publicado em 15.05.2018 n’O Popular.

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Há algumas semanas, um conhecido meu se matou. Sendo uma figura conhecida no meio literário, teve a morte noticiada pelos jornais. Como de hábito, não se especificou a causa. Essas coisas ficam nas entrelinhas. “Fulano foi encontrado morto.” Os leitores ligam os pontinhos sem esforço. Os conhecidos trocam mensagens. “Foi isso mesmo?” “Parece que sim.” A autoanulação alheia sempre cala bem fundo. É a expressão máxima de uma tristeza (prefiro não usar o termo clínico “depressão”) no fim das contas inexprimível, tristeza que paradoxalmente só nos resta cercar com palavras.

A meu ver, contrariando o escritor (filósofo? Não) Albert Camus, o suicídio não é sequer um problema filosófico. A inquietação que o calça é de outra categoria: o suicídio não é uma resposta ao absurdo, mas um deslocamento em seu interior. Um deslocar-se nadificador.

Palavrinha brutal, “suicídio”; o gesto a que se refere é um esvaziamento completo, uma autoanulação que engole o futuro possível, mas, sobretudo, ateia fogo ao passado, salga o que foi vivido até o momento do salto. O gesto suicida inscreve(-se n)o próprio apagamento. A filosofia não alcança tamanha rarefação silenciadora.

O que o suicídio diz é o próprio silenciamento. São dois pontos afixados no vazio: nada antes, nada depois. A tristeza, por sua vez, gagueja em minúsculas (mesmo quando grita). É uma perplexidade negativa. Ela convida ao silêncio. Uma coisa pode ou não levar à outra. Mas não é disso que trato aqui.

Leio ao final da primeira das Meditações de Descartes: “(…) pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas nada mais são que ludíbrios dos sonhos, ciladas que ele (gênio maligno) estende à minha credulidade. Pensarei que sou eu mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum, mas tenho a falsa opinião de que possuo tudo isso”.

Para Descartes, a hipótese do gênio maligno é um recurso metodológico. Mas impressiona como a sua descrição se aproxima muito da experiência que muitos temos da tristeza. A tristeza alcança o indivíduo na forma de um esfarelamento gradual do próprio corpo, até o momento em que ele se sente “desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum”, irrespondivelmente exposto ao sofrimento anímico, reduzido a tal resto.

A tristeza é um envergonhar-se que alcança um nível ontológico; a mera existência torna-se embaraçosa em sua dolorosa nudez. O mundo não nos cobre; os prédios não nos camuflam; os outros não nos protegem, sequer é possível que estejam próximos. A tristeza faz com que restemos sozinhos e nus, pura alma e pura dor, no silencioso deserto existencial.

Volto ao tal conhecido. Nunca fomos próximos. Estive com ele poucas vezes, em funções sociais que a vida literária (ou coisa que o valha) exige (ou a gente acha que exige, e se deixa levar). Sempre muito agradável. Ria educadamente das minhas idiotices. Falávamos bastante sobre o bairro paulistano em que, por coincidência, ambos morávamos. Mudei de bairro há alguns anos, e ele voltou para sua cidade natal. Depois, optou pela mudança definitiva.

É uma tragédia como a vida neste mundo, neste país, às vezes nos oblitera o corpo. O Brasil é esse enorme aquário seco de cujas torres saltam aventureiros. Ainda que, a rigor, a razão última do salto talvez escape até mesmo aos que o desenham no vazio.