Fonseca

Fonseca

Texto publicado hoje n’O Popular*.

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Há uns dez anos, quando iniciava minha carreira e sentia aquela necessidade tão inescapável quanto adolescente de autoafirmação, disse, em uma enquete feita pelo jornal O Globo com vários (então) jovens autores, algumas coisas bem desagradáveis sobre a obra do escritor Rubem Fonseca. De um jeito ou de outro, sempre procuramos matar os nossos pais, e os contos reunidos em livros como Os Prisioneiros, A Coleira do Cão e O Cobrador foram importantíssimos para a minha formação como leitor e, por decorrência, como escritor. Ocorre que, em 2007, com um romance publicado, um romance cru, violento, desbragado, eu estava de saco cheio que muitos viessem identificar, ainda que (às vezes) positivamente, a óbvia influência de Fonseca (e outros) na minha escrita, e disse ao jornal que o autor de Agosto estava morto e enterrado, que seus livros mais recentes eram ruins, pedestres, constrangedores, e que as coisas que eu fazia nada tinham a ver com ele.

Eu estava errado. Grosseiramente errado.

Porque as coisas que eu fazia então tinham, sim, muito a ver com a liberdade e a agressividade que encontrara na ficção de Fonseca. Porque não me parece correto e muito menos educado se referir a um autor dessa estatura com tamanho desrespeito. E porque seus livros mais recentes não são ruins, pedestres e constrangedores.

Eu não estava sozinho nesses ataques. Poucos escritores são hoje tão malhados quanto Fonseca. Quando do lançamento de Calibre 22, meses atrás, houve quem dissesse que seria melhor que ele parasse de escrever. Não consigo pensar em nada mais cretino para se dizer a/sobre um colega. Por mais que eu despreze o trabalho de vários autores, jamais me daria ao trabalho de dizer ou sugerir que fulano ou beltrano arranjasse outra coisa para fazer. Somos livres para escrever (ou não) o que quisermos, assim como somos livres para ler (ou não) o que quisermos. Ora, um escritor que diz a outro que pare de escrever é um escritor que sequer deveria ter começado a escrever.

Para o meu gosto, e por enquanto, o último grande livro de contos lançado por Fonseca foi Pequenas Criaturas, em 2002. Mas afirmar isso não significa desconsiderar sua produção posterior. Ainda é possível encontrar o melhor dele em Amálgama, Histórias Curtas e Calibre 22. Ao resenhar Amálgama para o Estadão, em 2013, afirmei que os “narradores de Fonseca deitam seus olhos exaustos sobre uma realidade tão esgarçada quanto incompreensível”, e que o autor “traduz um mundo no qual a valoração, qualquer que seja, perdeu a razão de ser”, pois “sequer faz mais sentido falar em termos de barbárie e civilização”. Se, em contos clássicos como “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador”, “ele percebeu as rachaduras no teto e nas paredes”, agora “se dedica a documentar as ruínas”.

Pois bem. Em um momento de nossa história no qual a intolerância, a venalidade e a violência atingem níveis absurdos, não podemos nos dar ao luxo de ignorar a obra ainda em progresso de Fonseca (e as formas como ela é muitas vezes recepcionada e (mal) lida por aí). Em Calibre 22, atentem para contos como “Réveillon”, “Gastronomia” e “Mildred”, por exemplo. Temas e recursos técnicos familiares à prosa do autor são explorados, mas com o peso e a consciência de que, frente a uma realidade que suplantou seus pesadelos literários mais brutais, só é possível seguir narrando com uma autoironia que não esconde um extremo desarvoramento. Fonseca dá prosseguimento àquele processo de documentação das ruínas, o que o torna tão imprescindível em 2017 quanto era em 1963.

Ishiguro

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Kazuo Ishiguro é o Nobel de Literatura 2017. Achei uma bela escolha. Abaixo, alguns links (em inglês) que vocês talvez curtam.

Summer After the War, conto publicado na Granta #7.
A Village After Dark, outro conto (este saiu na New Yorker).
Figuring the Real: Ishiguro’s When We Were Orphans, ensaio de Brian Finney.
Rereading The Remains of the Day, artigo de Salman Rushdie.
The Art of Fiction No. 196, entrevista do autor para a Paris Review.

 

Passeio de roda-gigante

Resenha publicada ontem no Estadão.

No quinto thriller protagonizado pelo professor Robert Langdon, o norte-americano Dan Brown leva seu personagem à Espanha. Lá, como de praxe nos livros do autor, o assassinato de uma figura proeminente expõe uma conspiração que pode – ou não – envolver organizações como a Igreja Palmariana, seita controversa e ultraconservadora, dissidente do catolicismo romano, e até mesmo membros (fictícios) da família real. O famigerado “simbologista” se vê em mais uma de suas aventuras, por assim dizer, “ilustradas”, um quebra-cabeças que envolve sangue, pseudoerudição, correria e, neste caso, uma tentativa de afinal conciliar dois campos aparentemente incompatíveis: religião e ciência (atentem para a fala de Langdon, já perto do desfecho, envolvendo os termos “padrão” e “código”). A exemplo dos romances que o antecedem, Origem é um passeio de roda-gigante. Não é inteligente exigir dele muito mais do que isso.

Quanto ao enredo, há sempre o risco de falar demais e estragar as reviravoltas que, semeadas com esmero pelo autor, brotam de suas páginas (uma das mais divertidas envolve ninguém menos que o rei da Espanha), mas vamos lá: em Bilbao, um desses gênios high-tech bilionários, o “futurólogo” Edmond Kirsch, está prestes a fazer um anúncio no Museu Guggenheim. Ele promete “erradicar o mito da religião” e encetar uma nova etapa na aventura humana, pois, segundo afirma, fez uma descoberta que “responde claramente” a duas questões fundamentais sem recorrer a Deus: “De onde viemos? Para onde vamos?”. Langdon está no evento porque o sujeito foi seu aluno em Harvard e é um amigo próximo.

Auxiliado pela diretora do museu, a beldade Ambra Vidal – noiva do príncipe herdeiro da Espanha –, Kirsch investe em uma performance à Steve Jobs que vira um escarcéu dos diabos antes que o anúncio seja feito. A partir daí, Langdon se une a Vidal e, com a ajuda de Winston, uma inteligência artificial que bota o HAL de 2001: Uma Odisseia no Espaço no chinelo, eles vão a Barcelona decifrar qual é, afinal, a descoberta do futurólogo e revelá-la ao mundo. Dado o teor bombástico da coisa, há gente (da Igreja Católica? Da tal Igreja Palmariana? Da própria Coroa?) empenhada em impedir a divulgação, deixando alguns cadáveres pelo caminho e transformando o “simbologista” e sua parceira nos próximos alvos.

Brown alimenta o suspense com habilidade, fragmentando a narrativa para melhor dispor as pistas, muitas delas falsas ou parciais, e o mistério é engrossado em um caldo de sabor familiar. Sequências de ação se alternam com discussões envolvendo desde William Blake até John Steinbeck (uma bela sacada na reviravolta final), passando pelo físico Jeremy England e pelo arquiteto Antoni Gaudí – a Casa Milà e a Basílica da Sagrada Família são cenários de enorme importância no curso da trama.

Óbvio que o pós-humanismo (ou seria um neoiluminismo?) de Origem deve ser encarado como o que de fato é: dentes na engrenagem da supracitada roda-gigante. Quando no alto, até vislumbramos coisas que nos fazem pensar, mas a vista é parcial e distanciada, e logo estamos de novo entretidos com o friozinho na barriga. Noutras palavras, Brown é bem-sucedido no que faz por explorar elementos de perquirições filosóficas e científicas de maneira agressivamente superficial, com vistas a alimentar o suspense e engendrar a reviravolta seguinte – que nunca tarda, e raras vezes decepciona.

Beleza lacunar

Artigo publicado em 25.09.2017 no Blog da Rocco.

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A voz de Grace Marks é a espinha dorsal do romance Vulgo, Grace, de Margaret Atwood. Não se trata de uma voz qualquer, e ela (por si e pelo que representa) é imprescindível para a sustentação e o alcance da narrativa, situada no século XIX, mas que tem muito a nos dizer neste conturbado século XXI.

Aos dezesseis anos de idade, em 1843, Grace foi condenada como cúmplice dos assassinatos de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery. Os crimes teriam sido executados por James McDermott, com a ajuda dela – ou assim a justiça entendeu, animada pelo sensacionalismo da imprensa, sentenciando ambos à pena de morte. Graças ao trabalho de seu advogado, a sentença de Grace foi comutada por prisão perpétua. McDermott não teve a mesma sorte e acabou enforcado. Ela cumpriu quase trinta anos da pena, foi perdoada, mudou-se para os Estados Unidos e desapareceu das vistas de todos.

Em Vulgo, Grace, o esforço primeiro de Atwood é no sentido de restituir à protagonista a possibilidade de contar a própria história. Óbvio que se trata de uma recriação ficcional, mas é importante sublinhar que as tentativas anteriores de relatar o que houve, tentativas supostamente não-ficcionais, como Life in the Clearings (1853), de Susanna Moodie, estão repletas de imprecisões, melodrama barato e “licenças poéticas”, para não falar em preconceito e invencionice pura. Assim, e isso talvez seja tão irônico quanto curioso, é por meio de uma narrativa romanesca que nos aproximamos da verdade ou, pelo menos, de uma verdade plausível, coerente.

Atwood estrutura o romance em torno dos longos colóquios de Grace com o (fictício) alienista Simon Jordan, já em 1859. Ela trabalha durante o dia como criada na casa do diretor da penitenciária (coisa que de fato aconteceu). Jordan é contratado por um comitê que milita pela libertação de Grace para entrevistá-la, analisá-la e escrever um relatório. Ela afirma não se lembrar dos crimes, ou de boa parte dos fatos ligados a eles, e o comitê precisa ter uma ideia mais acurada acerca de seu estado mental e saber se ela foi – como afirma – coagida por McDermott.

Escreve a autora no posfácio: “As atitudes em relação a ela refletiam a ambiguidade da época sobre a natureza das mulheres: seria Grace um demônio feminino, um monstro sedutor, a instigadora do crime e verdadeira assassina (…) ou seria uma vítima involuntária, forçada ao silêncio pelas ameaças de McDermott e por temer pela própria vida?”. As referidas “atitudes” são expostas no romance de maneira inteligente, como uma espécie de contraponto, em capítulos narrados em terceira pessoa, e também por meio de cartas, citações e outros expedientes, intercalando as conversas da condenada com o médico. De novo, é o trabalho da romancista procurando nos aproximar de uma verdade justamente a partir da fabulação.

Mas o que Grace conta ao dr. Jordan e a nós, leitores? Que, norte-irlandesa, vai com a família para o Canadá em meados do século XIX. A mãe morre durante a penosa viagem de navio. O pai é alcoólatra e perdulário. A situação da família, que nunca foi das melhores, degenera rapidamente e Grace se vê obrigada a aceitar um trabalho como criada. Passa por diversas casas, sofre outra perda traumática, de sua única amiga, e é então empregada na propriedade de Thomas Kinnear. Este mantém um relacionamento com sua governanta, Nancy Montgomery, que causa buchichos em toda a região. Outro empregado é James McDermott, um sujeito irascível que cuida dos estábulos. Grávida de Kinnear, enciumada (pois teme que ele a troque por Grace) e cansada das grosserias de McDermott, Nancy decide demitir os dois. Aí está o estopim dos assassinatos, cujas circunstâncias e o verdadeiro papel desempenhado por Grace, sobretudo na morte da governanta, são imprecisos.

Como sempre, em se tratando de um bom romance, importam o percurso e a maneira como ele é construído e trilhado pela autora. Por mais que sua voz ocupe boa parte do livro, ou talvez exatamente por isso, Grace jamais é reduzida a qualquer uma daquelas categorias (vítima, assassina, louca, indefesa, perversa, coagida, instigadora etc.), mas brinca com elas e com as nossas expectativas. Atwood mostra, por exemplo, o quanto as percepções alheias acerca do crime são contaminadas pelo fato de duas das envolvidas serem mulheres.

Mas é sobretudo ao restituir ou, melhor dizendo, constituir uma voz possível para Grace que ela expõe a engrenagem preconceituosa e viciada, ainda hoje em plena atividade, que nos prende à categorização supracitada. Para tanto, desde a espinha até a epiderme, Atwood concebe o livro como um organismo dos mais complexos, em que cada voz, cada personagem e cada coisa dita e contradita é uma peça num quebra-cabeças que jamais estará completo.

Na verdade, é exatamente pelas peças faltantes que o romance diz a que veio: sua beleza lacunar reitera o quanto é impossível dizer “tudo” a respeito de alguém ou de nós mesmos, mas demonstra que é perfeitamente factível iluminar aspectos sombrios da nossa existência na medida em que aponta para a persistência dessas lacunas. Em outras palavras, Vulgo, Grace é muito bem-sucedido tanto pelo que diz quanto pelo que cala, e também porque dá voz a uma personagem (mulher, imigrante, pobre, condenada, “louca”) que é usualmente silenciada, ontem e hoje, de um jeito ou de outro.

Em Brasília

Dias Vazios

Hoje, no Festival de Brasília, o filme Dias Vazios será exibido na Mostra Futuro Brasil. Esta comporta sessões fechadas para profissionais de curadoria e seleção de grandes festivais do mundo inteiro. Dirigido por Robney Bruno e ainda em finalização, Dias Vazios é uma adaptação do meu romance de estreia, Hoje está um dia morto, e deverá chegar ao circuito comercial em meados de 2018. Antes, torço para que faça uma bela carreira em festivais.

João 9: 24-25

Jake La Motta morreu. Tinha 95 anos.
Um dos maiores boxeadores — e um dos camaradas mais arrombados — que já passaram por esse mundo.
Sobre ele, Martin Scorsese fez Touro Indomável, um dos melhores filmes da história. Um dos cinco melhores. Fácil.
Escrevi sobre o longa AQUI.
Giacobbe, RIP.

bio

Ashbery

O poeta norte-americano John Ashbery faleceu há poucos dias, aos noventa anos de idade. Traduzir os dois poemas abaixo foi uma aventura silenciosa e reconfortante. Espero não ter incorrido em muitos erros, e agradeço às leituras e sugestões de Maira Parula e Martim Vasques da Cunha.

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ABSTENÇÕES

Não o tímido turista, saltitando nos salinos degraus de Roma —
A Piazza Venezia de um ônibus, as emoções transparentes passam.
As minas antigas. Não
Algo apenas que se assemelhe a uma parte dela
Mas tudo isso como não sendo. A voz
“Por favor diz que me ama” falou,
Os monumentos ferríferos à deriva,
Os arcos pregados na madeira,
As cavernas, punhos cegos,
Verdes algas na água negra e azul,
E dos amigos a precisão entusiasmada,
“O homem que vê uma nuvem em Schenectady
Afeta alguém que ele não conhece do outro lado do globo,
                  que o procura,
E devemos ter aquela rosa, à parte o trabalho do holandês.”
Torres azuis, guinchos, as rosas cegas passam.

Assim temos essas poucas coisas.
Era uma tarde ou noite de verão, a glória estava na gôndola
Na percussiva lua de mel.
Mas ele pensou nas noites os lares arruinados
As lágrimas de ouro derramadas por ele.
Assim temos esses tijolos brancos.
A noiva vestia branco…

Ele veste um terno branco, carrega um jornal branco e uma maçã, suas
               mãos e face são brancas;
As nuvens escarnecem mas seguem velejando no céu branco.

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A MAQUINARIA DO CHATEAU

Era sempre novembro lá. As fazendas
Eram uma espécie de distrito policial; um certo controle
Fora exercido. Os passarinhos
Costumavam se reunir ao longo da cerca.
Era o grande “como se”, o dia como foi,
As excursões da polícia
Enquanto eu exercia minhas funções corporais, querendo
Nem fogo nem água,
Vibrando ao beliscão distante
E me revelando do jeito que sou, revelando-me para saudar você.

….

Ashbery

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THE CHATEAU HARDWARE

It was always November there. The farms 
Were a kind of precinct; a certain control 
Had been exercised. The little birds 
Used to collect along the fence. 
It was the great “as though,” the how the day went, 
The excursions of the police 
As I pursued my bodily functions, wanting 
Neither fire nor water, 
Vibrating to the distant pinch 
And turning out the way I am, turning out to greet you.