Shepard

Shepard

Sam Shepard, dramaturgo vencedor do Pulitzer, corroteirista de Paris, Texas e ator indicado ao Oscar de coadjuvante por sua interpretação do icônico Chuck Yeager n’Os Eleitos, faleceu. Tinha setenta e três anos. Abaixo, transcrevo três de suas Crônicas de Motel (L&PM, tradução: Bettina Becker).

Que descanse em paz.

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……

Há uma borboleta Monarca morta na calçada de Ozona. A brisa a joga para frente e para trás. Durante todo o dia, estiveram explodindo de encontro ao para-brisa do meu carro, deixando pingos rosa e dourado pelo vidro. Vi uma cair verticalmente do céu e arrebentar-se contra o asfalto da Highway 10 Leste. Deve ser a época do ano em que morrem.

16/10/80
Ozona, Texas

……

Esta noite
Estão molhando o cemitério em Cody, Wyoming
Um vento seco sopra pelas barracas do Rodeio
O Hino Nacional flutua na pradaria
Cantado sem convicção
Cantado por convenção

Aqui, há um touro chamado “Boca de Algodão” que jamais foi montado
O anunciador irradia o velho provérbio
“Nunca existiu touro que não possa ser montado
Nunca existiu cowboy que não possa ser derrubado

Um vento sopra das montanhas Rochosas
Através da trilha da Montanha Absoraka
A noite engole todo o Wyoming
A noite nos mantém sob as luzes

6/8/80
Cody, Wyoming

……

Jack Montgomery enfiou o braço até a garganta do meu cavalo. Eu o olhava enquanto fazia isso. Fiquei lá parado e vi o braço desaparecer até o cotovelo. Um riozinho de baba de alfafa verde se derramou nas minhas botas, Vi-o correr. Vi os olhos do cavalo rolarem para trás na sua cabeça e me olharem como um demônio assustado. Vi o sol se pôr atrás de sua cabeça,
Petaluma tornava-se laranja pálido.

13/1/80
Petaluma, Califórnia

Walser

Daqui.

“(…) É uma coisa maravilhosa ter escapado da primeira juventude, porque ela nem sempre é bela, encantadora e leve, e sim, muitas vezes, é mais difícil e preocupante que a vida de muitos velhos. Quanto mais se vive, mais suave se torna a vida. Quem teve uma juventude impetuosa preferirá, mais tarde, raras vezes ou nunca mais se comportar impetuosamente. Quando penso no que nós, crianças, uma após a outra, precisamos atravessar, superando equívocos e sensações bruscas, velozes; quando penso que todas as crianças do mundo têm de passar por isso, por tantos perigos precoces, não me apresso em louvar a infância como algo doce, mas o faço assim mesmo, porque ela nos propicia, afinal, uma lembrança preciosa. Como é muitas vezes difícil para os pais serem bons e protetores para seus filhos. (…)”

Elvira, RIP

Soube há pouco que a escritora Elvira Vigna faleceu. Tinha sessenta e nove anos de idade. Era uma das vozes mais instigantes da literatura brasileira contemporânea. Em abril de 2010, escrevi sobre seu romance Nada a Dizer para o Jornal do Brasil. Republico abaixo a resenha. Que Elvira descanse em paz.

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No romance Nada a dizer, de Elvira Vigna, temos a narrativa obsessivamente detalhada de um adultério. Surpreende que a voz que conta essa história em todos os seus mínimos detalhes seja não a de um dos amantes, mas, sim, a voz da mulher traída.

Com pouco mais de 60 anos, ela reconstitui cada passo do companheiro, Paulo, em sua malfadada aventura extraconjugal, bem como vários eventos anteriores e posteriores. A descrição cuidadosa, com toques masoquistas, de algo tão doloroso acaba se revelando um esforço da narradora no sentido de reconhecer ou, pior, vir a finalmente conhecer o seu companheiro, entender quem ele de fato é e como ele veio a se tornar quem se tornou.

Mais do que isso: ao não reconhecer ou desconhecer alguém com quem vivia há tanto tempo, a narradora também deixa de reconhecer ou passa a desconhecer a si própria: “Eu não esperava que isso fosse possível. Que eu pudesse não existir, que a minha existência pudesse não ser contabilizada pela pessoa que mais me conhecia no mundo”. Assim, além de administrar a dor pela traição, ela também se vê inteiramente esvaziada de sua identidade. Tudo aquilo que era ou julgava ser como que escorre pelos dedos de suas mãos.

Para além da crise conjugal, há uma espécie de mapeamento do que significa esse episódio para a narradora em função do que ela pensou e viveu desde a juventude, nos anos 60. Nas palavras dela: “Fomos nós, os que fizemos 60 anos no início do século 21, os que lutaram e enfrentaram hostilidades de todo tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que quiséssemos (…)”.

Ao relembrar o percurso de sua relação com Paulo, ela chama a atenção para as mudanças ocorridas não só em seu relacionamento, mas no mundo. Há 40 anos, eles defendiam o ideário esquerdista e lutavam pela liberdade e pelos “direitos do proletariado”. Panfletavam, acolhiam fugitivos da ditadura, enfrentavam o calamitoso estado de coisas vigente no Brasil.

Não muito tempo depois, com o fim da repressão, ela vê o companheiro empregar-se em uma grande companhia e colocar em dúvida opiniões que eles sempre tiveram e “sobre as quais não havia como ter dúvidas”. No discurso, eles renegavam esses “papéis predeterminados”, toda a suposta imbecilidade pequeno-burguesa ou coisa que o valha.

Na prática, e aqui está a ironia, o leitor vê como eles, sobretudo Paulo, acabam se encaixando justamente nos papéis predeterminados. Vemos o descompasso cada vez maior entre o discurso e as expectativas de outrora e os rumos que suas vidas e o mundo tomaram e continuam a tomar.

A narradora, contudo, não sugere que a decadência de seu relacionamento se deva, de uma forma ou de outra, seja direta ou indiretamente, à falência de todo aquele ideário. Não se trata disso. O que ela faz é conferir tridimensionalidade a esses personagens e às suas motivações por meio de uma contextualização histórica e também pelo registro dessas mudanças bastante significativas, de quem eles foram um dia e de quem eles se tornaram, tanto um para outro quanto em relação ao mundo.

Assim, os acontecimentos narrados ganham maior ressonância e Nada a dizer, longe de se tornar um exemplo de prosa confessional monocórdia e autoindulgente, exibe toda a riqueza de um ponto de vista consciente de si, do outro e do que os cerca.

Um espaço de transição

Trecho de O Último Grito, de Thomas Pynchon.

Luis Martinez/LuisMMolina//Getty Images

Nenhuma notícia de Horst até agora. Ela tenta não se preocupar, acreditar no que ela mesma disse aos meninos, mas está preocupada, sim. Aquela noite, bem tarde, depois que os meninos vão se deitar, ela fica acordada diante da televisão, cochilando, sendo acordada por microssonhos de alguém entrando no apartamento, cochilando outra vez.
Em algum momento daquela noite, Maxine sonha que é um camundongo que está correndo solto entre as paredes de um enorme prédio que, ela sabe, é os Estados Unidos, se aventurando em cozinhas e despensas à procura de comida, batalhando porém livre, e em plena madrugada ela se sente atraída pelo que identifica como uma espécie de ratoeira humanitária, no entanto não consegue resistir à isca, não coisas tradicionais como creme de amendoim ou queijo, e sim alguma comida mais sofisticada, patê ou trufas, talvez, e no instante em que ela entra naquela pequena estrutura sedutora, o peso de seu corpo é suficiente para acionar a mola de uma porta que se fecha, sem fazer muito barulho, e não pode mais ser aberta. Ela se vê dentro de um espaço de vários andares, alguma espécie de evento, uma reunião, talvez uma festa, cheia de rostos desconhecidos, camundongos como ela, mas não mais exatamente, ou apenas, camundongos. Ela se dá conta de que aquele lugar é um espaço de transição entre a liberdade no ambiente silvestre e algum outro meio no qual, um por um, todos eles serão lançados, e que aquilo só pode ser análogo à morte e ao além-morte.
E tem uma vontade desesperada de acordar. E depois que acorda, de estar em outro lugar, até mesmo em um falso paraíso de geeks como o DeepArcher.
Maxine se levanta da cama, suando, vai ao quarto dos meninos, que estão roncando, segue até a cozinha, fica parada olhando para a geladeira como se para uma televisão capaz de lhe dizer alguma coisa que ela precisa saber. Ouve ruídos vindo do quarto de hóspedes. Tentando não nutrir esperanças, não hiperventilar, entra no quarto na ponta dos pés e é mesmo Horst, sim, roncando na frente do canal BioPiX, o único canal de televisão hoje que não está apresentando a cobertura completa da catástrofe, como se fosse a coisa mais natural do mundo estar vivo e estar em casa.

Companhia das Letras. Tradução: Paulo Henriques Britto. Resenha em breve.

Acho que foi em 1993

Crônica publicada hoje n’O Popular.

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Vi Caminhos Perigosos pela primeira vez aos treze anos. Não foi o primeiro filme de Martin Scorsese a que assisti. Antes, vira Touro Indomável (sobre o qual escrevi em novembro do ano passado neste espaço), mas então nada sabia do diretor; tinha oito anos e ficara surpreso que exibissem um filme em preto-e-branco no horário nobre e mais ainda ao constatar que não se tratava de uma velharia.

Anos depois, vi Os Bons Companheiros. Àquela altura, municiado pelos guias de vídeo comprados em bancas de jornal (lembram disso?), aprendera a identificar os diretores. Decorava nomes e filmografias. Garimpava fitas de VHS pirateadas na única videolocadora que então havia na cidade, Silvânia. Lembrei-me de Touro Indomável e quis revê-lo, mas a pequena locadora (que funcionava na garagem da casa de um bancário) não dispunha de uma cópia. Levei Os Bons Companheiros. Ainda me lembro do meu irmão deixando a sala, enojado com a brutalidade da cena de abertura. Para que isso?, ele perguntava. Era violentíssimo, sim, mas não havia sentido em procurar justificativas no vácuo moral que a história pressupunha e apresentava, sem rodeios. A descarga elétrica se prolongava por quase duas horas e meia. Sem moralismos, sem catarse. A história de um pé-rapado. Ladrão, cúmplice de assassinato, traficante, viciado e, por fim, dedo-duro. Eu nunca vira nada igual. Eu não queria ver mais nada.

Acho que foi em 1993, e aquele foi um ano bom.

Exibiram A Última Tentação de Cristo na TV aberta, legendado. Foi a vez de meu pai ficar enojado. Esse filme não é certo, disse. Mas, felizmente, não me proibiu de vê-lo. Gravei e revi inúmeras vezes.

A primeira coisa que me apaixonou nesses filmes: a movimentação da câmera. Ela não só dirigia o olhar, mas chamava a atenção para o fato de dirigir o olhar. Comecei a prestar atenção nessas coisas. A câmera desvela o mundo. É um modo de recortá-lo. Quando bem utilizada, não há espaço para gratuidades: o plano diz a que veio; a concatenação dos planos estabelece significados; o filme se escreve assim, e é preciso ler. Prendia a respiração com os travellings. Eu me arrepiava com o plano-sequência em que o protagonista adentrava o restaurante pela cozinha ao som de Then he kissed me, das Crystals. Era vertiginoso.

Houve também Depois de Horas e, enfim, Touro Indomável. As madrugadas televisivas eram uma pausa no mundo. Esperava que meus pais fossem dormir e então corria à sala. O volume não muito alto. As luzes desligadas. Em uma noite dessas, vi Caminhos Perigosos.

O sujeito caminha pela igreja. A câmera o acompanha. O som de uma sirene ricocheteia na banda sonora. Ele conversa com D’us, fala do inferno, do medo de queimar. Então, deixa a mão sobre uma vela acesa. A expiação não vem como ele espera, contudo. O amigo irresponsável o arrasta. Há coisas inaceitáveis. Identifiquei Scorsese, muito jovem, sem barba, com a arma na mão. O tiro no pescoço é particularmente aflitivo. E a mão atravessada no para-brisa. O sujeito se ajoelha no asfalto. Parece ter compreendido.

A precariedade dos recursos sublinha a precariedade daquele meio de vida. É um filme barato, pequeno. Aquele é um meio de vida barato, pequeno. Eu estava descobrindo Fellini e havia ali algo de Os Boas-Vidas. Scorsese olhava para o que estava próximo. Falava do que vira. Mas o que estava próximo machucava. Talvez por isso Caminhos Perigosos me parecesse tão bom.  A memória queima, mas – é incontornável – cedo ou tarde deitamos a mão sobre ela.

James Joyce: links

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James Augustine Aloysius Joyce é um dos prediletos nesta residência, de tal forma que o Bloomsday nunca passa em branco. Abaixo, links para ensaios e resenhas que escrevi sobre o Ulysses e outros livros do irlandês no decorrer dos anos. Sláinte!

  • RESENHA de Epifanias e Cartas a Nora (Estadão, 17.12.2012).
  • RESENHA de Finn’s Hotel (Estadão, 16.04.2014).
  • HADES, GLASNEVIN. Um ensaio sobre o sexto capítulo do Ulysses.
  • TODOS OS DIAS, NÓS TODOS. Outro ensaio. A sombra da morte da mãe em Stephen Herói, Um Retrato do Artista Quando Jovem e, claro, no Ulysses.
  • FIMNÍCIO. Notas de leitura do Finnegans Wake.
  • JOGO DE ADIAMENTOS. Ensaio sobre o quinto capítulo do Ulysses.

Charles

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Certa vez, em uma aula sobre Peirce, o professor me explicou: “O geral não aparece, não pode ser apontado topicamente. O universal é espaço-temporalmente contínuo, não extenso. Só pode ser alcançado inferencialmente”. E depois eu li no livro desse mesmo professor: “Do viés epistemológico, a recusa do incogonoscível traduz-se na recusa da brutalidade do inexplicável; o pensamento e a representação repugnam a asfixia. Bem pelo contrário, a procura dos antecedentes gerais para o universo da experiência segue o curso de uma ciência especial, que erige hipóteses capazes de serem confrontadas com a classe dos fatos que lhe é objeto. Este procedimento garante banir singularidades tópicas de representação e manter o continuum entre conhecimento e mundo. Um mundo sob evolução, um conhecimento sob evolução. O corte transversal em ambos, no tempo, revela incompletude e tensão para o futuro”. O realismo peirciano é uma das construções mais belas que existem.

‘Das himmlische Leben’

Ouvindo a Quarta de Mahler, talvez a mais contida das sinfonias dele. O quarto e último movimento é (inusualmente) uma canção. Uma criança (interpretada por uma soprano) nos fala desde o Paraíso, descrevendo a preparação de um banquete. “Kein’ Musik ist ja nicht auf Erden / Die unsrer verglichen kann werden”, ela canta a certa altura. Mal traduzindo, “não há música na Terra que se compare com a nossa”. Pensei no ocorrido ontem em Manchester. Depois, em mais nada. Só ouvi, e rezei.

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