Beleza lacunar

Artigo publicado em 25.09.2017 no Blog da Rocco.

atwood

A voz de Grace Marks é a espinha dorsal do romance Vulgo, Grace, de Margaret Atwood. Não se trata de uma voz qualquer, e ela (por si e pelo que representa) é imprescindível para a sustentação e o alcance da narrativa, situada no século XIX, mas que tem muito a nos dizer neste conturbado século XXI.

Aos dezesseis anos de idade, em 1843, Grace foi condenada como cúmplice dos assassinatos de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery. Os crimes teriam sido executados por James McDermott, com a ajuda dela – ou assim a justiça entendeu, animada pelo sensacionalismo da imprensa, sentenciando ambos à pena de morte. Graças ao trabalho de seu advogado, a sentença de Grace foi comutada por prisão perpétua. McDermott não teve a mesma sorte e acabou enforcado. Ela cumpriu quase trinta anos da pena, foi perdoada, mudou-se para os Estados Unidos e desapareceu das vistas de todos.

Em Vulgo, Grace, o esforço primeiro de Atwood é no sentido de restituir à protagonista a possibilidade de contar a própria história. Óbvio que se trata de uma recriação ficcional, mas é importante sublinhar que as tentativas anteriores de relatar o que houve, tentativas supostamente não-ficcionais, como Life in the Clearings (1853), de Susanna Moodie, estão repletas de imprecisões, melodrama barato e “licenças poéticas”, para não falar em preconceito e invencionice pura. Assim, e isso talvez seja tão irônico quanto curioso, é por meio de uma narrativa romanesca que nos aproximamos da verdade ou, pelo menos, de uma verdade plausível, coerente.

Atwood estrutura o romance em torno dos longos colóquios de Grace com o (fictício) alienista Simon Jordan, já em 1859. Ela trabalha durante o dia como criada na casa do diretor da penitenciária (coisa que de fato aconteceu). Jordan é contratado por um comitê que milita pela libertação de Grace para entrevistá-la, analisá-la e escrever um relatório. Ela afirma não se lembrar dos crimes, ou de boa parte dos fatos ligados a eles, e o comitê precisa ter uma ideia mais acurada acerca de seu estado mental e saber se ela foi – como afirma – coagida por McDermott.

Escreve a autora no posfácio: “As atitudes em relação a ela refletiam a ambiguidade da época sobre a natureza das mulheres: seria Grace um demônio feminino, um monstro sedutor, a instigadora do crime e verdadeira assassina (…) ou seria uma vítima involuntária, forçada ao silêncio pelas ameaças de McDermott e por temer pela própria vida?”. As referidas “atitudes” são expostas no romance de maneira inteligente, como uma espécie de contraponto, em capítulos narrados em terceira pessoa, e também por meio de cartas, citações e outros expedientes, intercalando as conversas da condenada com o médico. De novo, é o trabalho da romancista procurando nos aproximar de uma verdade justamente a partir da fabulação.

Mas o que Grace conta ao dr. Jordan e a nós, leitores? Que, norte-irlandesa, vai com a família para o Canadá em meados do século XIX. A mãe morre durante a penosa viagem de navio. O pai é alcoólatra e perdulário. A situação da família, que nunca foi das melhores, degenera rapidamente e Grace se vê obrigada a aceitar um trabalho como criada. Passa por diversas casas, sofre outra perda traumática, de sua única amiga, e é então empregada na propriedade de Thomas Kinnear. Este mantém um relacionamento com sua governanta, Nancy Montgomery, que causa buchichos em toda a região. Outro empregado é James McDermott, um sujeito irascível que cuida dos estábulos. Grávida de Kinnear, enciumada (pois teme que ele a troque por Grace) e cansada das grosserias de McDermott, Nancy decide demitir os dois. Aí está o estopim dos assassinatos, cujas circunstâncias e o verdadeiro papel desempenhado por Grace, sobretudo na morte da governanta, são imprecisos.

Como sempre, em se tratando de um bom romance, importam o percurso e a maneira como ele é construído e trilhado pela autora. Por mais que sua voz ocupe boa parte do livro, ou talvez exatamente por isso, Grace jamais é reduzida a qualquer uma daquelas categorias (vítima, assassina, louca, indefesa, perversa, coagida, instigadora etc.), mas brinca com elas e com as nossas expectativas. Atwood mostra, por exemplo, o quanto as percepções alheias acerca do crime são contaminadas pelo fato de duas das envolvidas serem mulheres.

Mas é sobretudo ao restituir ou, melhor dizendo, constituir uma voz possível para Grace que ela expõe a engrenagem preconceituosa e viciada, ainda hoje em plena atividade, que nos prende à categorização supracitada. Para tanto, desde a espinha até a epiderme, Atwood concebe o livro como um organismo dos mais complexos, em que cada voz, cada personagem e cada coisa dita e contradita é uma peça num quebra-cabeças que jamais estará completo.

Na verdade, é exatamente pelas peças faltantes que o romance diz a que veio: sua beleza lacunar reitera o quanto é impossível dizer “tudo” a respeito de alguém ou de nós mesmos, mas demonstra que é perfeitamente factível iluminar aspectos sombrios da nossa existência na medida em que aponta para a persistência dessas lacunas. Em outras palavras, Vulgo, Grace é muito bem-sucedido tanto pelo que diz quanto pelo que cala, e também porque dá voz a uma personagem (mulher, imigrante, pobre, condenada, “louca”) que é usualmente silenciada, ontem e hoje, de um jeito ou de outro.