Humboldt

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Voltei a O Legado de Humboldt uns vinte anos após a primeira leitura. É um dos livros que fizeram a minha cabeça naquela idade ébria para os que têm senso de humor e insuportável para os que têm um pingo de bom senso (eu gostava de pensar que tinha um pouco de cada) (estava errado, é claro). Falando em humor, o de Bellow é não raro excruciantemente doloroso (embora, em Humboldt, não chegue às raias do desespero como em Herzog), mas sempre recompensador. No âmbito superficial da bipolaridade de tons em sua produção (Augie March/Seize the DayHenderson/Herzog, Sammler/Humboldt), e creio que Philip Roth disse algo nesse sentido em um artigo célebreHumboldt é (quase) uma espécie de meio-termo, aliando o ritmo desbragado de seus romances mais soltos com a carga reflexiva das narrativas menos aceleradas. Quero dizer, há passagens nas quais se faz presente certa porralouquice (por exemplo: a carta de George para Citrine, o narrador, contando suas desventuras na África) e outras em que somos engolidos por digressões que por sua vez engolem outras digressões. Dizendo de outra forma, o que acontece é que sempre há alguém (a amante, a ex-mulher, os advogados, o gangster Cantabile, a mãe da amante, o contador, o sócio picareta, mais advogados, o irmão, a viúva de Humboldt, o próprio Humboldt, a ex-namorada dos tempos de juventude etc.) pronto para arrancar Citrine de sua introspecção, mas ainda assim ele arranja um jeito de mergulhar em si. Penso nele (por exemplo) esperando para falar com o juiz que vai lhe arrancar o couro, ou flanando por Madri, falido, com o filhinho da amante a tiracolo enquanto ignora as investidas da dinamarquesa manca, ou ainda quando é coagido a, como uma espécie de penitência carcamana, testemunhar Cantabile dando uma bela cagada. Mesmo em situações extremas, ou sobretudo nelas, para Citrine há sempre algo a se pensar, desenvolver, filosofar, rememorar, mitificar ou desmitificar. Assim, lá estão as digressões inesperadas (pelos momentos em que irrompem e pelo que as constitui) (Steiner, meus amigos, Steiner!). E o que mais? Bom, a velha mania de Bellow ressituar personagens e situações como bem entende — às vezes, tem-se a impressão de que não são eles que se movem, mas o chão sob seus pés; ou, por outra, acompanhá-los é como caminhar atrás de pessoas que andam ou muito devagar, ou rápido demais, por uma calçada repleta de gente vindo na direção contrária. Tudo isso exige atenção, mas a graça está sobretudo aí, nessas idiossincrasias narrativas e no “estado chicagoano” em que elas nos colocam. E também é Bellow puro a maneira como o livro cresce para todos os lados, e no final é uma cidade completinha, com seus poetas exilados ou em trânsito ou mortos & enterrados (de novo e de novo), gangsteres, papa-defuntos, advogados, pistoleiras, editores, parentes e fantasmas, fantasmas por toda parte, e Citrine tentando falar com eles, a linha sempre ocupada. Aliás, parte da tragicomédia americana, intrínseca ao romance, ao seu narrador e à relação deste com os demais personagens, sobretudo Humboldt, reside no fato de que a conversa com os fantasmas só se dá numa direção. (Nota: na Europa, ocorre o contrário, e são os vivos que já não ouvem mais nada.)