Ainda Stevens

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Em novembro do ano recém-enterrado, discorri aqui sobre o clássico Os Brutos Também Amam (Shane). Bom, para começar 2018 falando sobre algo de que gosto (dizem que é mais saudável do que falar sobre o que odeio, desprezo ou me irrita, embora isso às vezes seja necessário), quero abordar outro filmaço dirigido pelo mesmo George Stevens: Um Lugar ao Sol, lançado em 1951.

Se, conforme escrevi lá no outro texto, Shane trata da fixação de um país e do ocaso de um determinado modus vivendi (ou operandi?), os EUA que vemos em Um Lugar ao Sol já estão, por assim dizer, demarcados interna e externamente, tendo inclusive já tomado parte das duas Guerras Mundiais. Contudo, no lugar do personagem que dá título àquele faroeste, temos outro “estrangeiro” selvagem, George, um arrivista interpretado por Montgomery Clift.

No começo do longa, George procura um parente rico, quer que o sujeito lhe arranje um emprego em sua fábrica. É um rapaz quieto, tímido, mas que traz consigo um determinado tipo de selvageria, mais sutil do que aquela exibida pelos animais em extinção vistos em Shane, os pistoleiros vividos por Alan Ladd e Jack Palance; ele quer aquilo que o título anuncia, um lugar ao sol, e a desgraça é que conseguirá (e não) muito, mas muito mais do que almeja.

Aos poucos, nosso George sobe na vida e, ao mesmo tempo, desce inexoravelmente: o noivado com a menina rica, Angela (Liz Taylor), é ameaçado pela gravidez indesejada de uma colega de trabalho, Alice (Shelley Winters), alguém que, solitário e entediado, conheceu e com quem se relacionou nos primeiros dias na nova cidade, antes de se engraçar com a herdeira.

Óbvio que ele tenta (inutilmente) fazer com que Alice aborte. A cena no consultório médico é uma obra-prima de construção cênica, a câmera a uma certa distância da atriz, sublinhando seu desespero crescente. O efeito é estarrecedor. Similarmente, quando George dança pela primeira vez com Angela, a câmera os enquadra da outra sala, bem longe deles, a meu ver sugerindo o vácuo moral que cerca e acabará por solapar o rapaz.

Creio que em nenhum outro trabalho Stevens se valeu tanto e tão bem da câmera como instrumento narrativo. É um mestre da composição, e sua imaginação, aqui, revela-se à altura do melhor Hitchcock. Dou outros exemplos: a escuridão dentro do carro, quando Alice sai do consultório médico e diz a George (cujo rosto só vemos quando ele acende um cigarro) que a única coisa que lhes resta fazer é casar; as costas de Angela, George deitado em seu colo, enquanto ela fala de um casal que se afogou no lago que está à frente; a conversa franca entre George e o sogro sobre o passado, focalizada quase que do ponto de vista de Angela.

Um Lugar ao Sol é inteirinho dotado de uma angústia surda. Mais do que um assassinato (mas sem jamais irrelevar o caráter hediondo do crime), há uma condenação. A exemplo de muitos de nós, seu protagonista é culpado de querer, a tal ponto que tudo se encaminha para o irredimível de uma tragédia sem catarse. Ao final, a sensação é de que todos nos afogamos quase sem que nos déssemos conta.