Amor moderno

Amor moderno

frances-ha-2

Frances Ha é um bilhete de amor endereçado à Nouvelle Vague em geral e a François Truffaut em particular. As marcas da primeira década da nova onda francesa estão por toda parte: personagens simpaticamente deslocados, trilha de Georges Delerue, diálogos e atuações naturalistas, fotografia em preto-e-branco e montagem que não raro eliminam o campo/contracampo e deslizam, livre, pela gramática clássica a fim de melhor pervertê-la.

Ou seja, o filme atesta a vivacidade de uma forma de ver e fazer cinema que segue intacta há mais de meio século e que, neste momento, parece resgatar um frescor e uma liberdade que o cinema indie norte-americano vinha perdendo. Sob qualquer aspecto, a façanha de Noah Baumbach não é pequena.

Diretor de dois bons longas  (A Lula e a Baleia e Margot e o Casamento) sobre famílias disfuncionais, ou seja, famílias ordinárias, ele teve de pisar em falso com O Solteirão para fazer o que qualquer cineasta digno de nota faz quando chega a um impasse: olhar para o próprio cinema ou, melhor dizendo, para o cinema que lhe interessa, que lhe diz respeito. É como se ele se perguntasse não que filme gostaria de fazer em seguida, mas, sim, que filme gostaria de ver.

Assim, o princípio norteador de Frances Ha é o prazer de ver e mostrar. O diretor acompanha os personagens com um interesse humano incomum, de fundo evidentemente cinefílico e, portanto, desbragadamente afetivo. Mesmo nos piores momentos pelos quais passa a personagem-título, uma bailarina que batalha para se firmar numa profissão para a qual, talvez, não seja tão boa, ao mesmo tempo em que vê sua melhor amiga se distanciar e a carestia da vida em Nova York impôr não poucos obstáculos, há uma beleza intrínseca ao mero estar ali.

Essa beleza é parente em primeiro grau daquela que experimentamos, por exemplo, em Jules e Jim. Lá, mesmo quando a tragédia irrompe, parece fruto de um “excesso de vida” que vem cobrar sua fatura. O mergulho suicida ao final é um salto para fora, claro, mas também um sorriso cúmplice e nostálgico para o que foi vivido antes e que perdurará na memória dos que ficam, incluindo nós, espectadores. Não lamentamos pela sorte de Jim e Catherine. Eu, pelo menos, não lamento.

Em Frances Ha, embora não aconteça nada dessa natureza, há um comprometimento com a vida que, longe de significar um qualquer otimismo estéril, ressalta justamente o imponderável da existência. Não há garantia alguma de que tudo ou sequer uma parcela das coisas terminará bem, até porque todos sabemos, no limite, como é que tudo termina, mas um entendimento paulatino de que o melhor é seguir correndo, ao menos até que o mergulho não surja como uma possibilidade (e, se for o caso, por que não?).

Vendo o filme, pensei que a vida é algo que nos diz respeito enquanto dissermos respeito a ela. Há um acordo nisso, uma espécie de contrato de mútua relevância, de mútua iluminação. Frances está empenhada em cumprir cada mísera cláusula desse contrato, e, conforme descobrimos ao final, ela até se descobre expressando artisticamente certos pormenores de sua vivência e dos que lhe são próximos. Ela confere significado à vida para que a vida lhe confira significado.

Talvez por isso seja tão marcante a cena em que ela corre pela cidade ao som de Modern Love, de David Bowie: a câmera se movimenta com ela, e a impressão que tive é de que Frances conta com o chão sob seus pés na mesma medida em que o próprio chão conta com os pés dela a lhe percorrer. Mútua relevância, mútua iluminação.

Retorno à casa do pai

Resenha publicada no Estadão em 27.07.2013.

fante

O norte-americano John Fante (1909-1983) é mais conhecido pelos romances que escreveu protagonizados por seu alter ego Arturo Bandini, sobretudo por aquele que é usualmente referido como a sua obra-prima, Pergunte ao Pó. O recém-lançado A Irmandade da Uva vem chamar a atenção para outros personagens tão marcantes quanto Bandini, os membros da família Molise. Fante se utiliza deles para destrinchar seus temas habituais (pobreza, crises familiares, identidade ítalo-americana, as vicissitudes do próprio trabalho de escritor) com a franqueza, a sentimentalidade – jamais sentimentalismo – e a fluidez que lhe são peculiares.

Originalmente publicado em 1977, A Irmandade da Uva forma com o belo 1933 Foi um Ano Ruim, lançado postumamente (e editado no Brasil pela L&PM), um panorama de várias gerações dos Molise. Em 1933, encontramos Dominic Molise no fim da adolescência, numa cidadezinha do Colorado, lutando contra a pobreza e a insistência de seu pai para que se dedique ao ofício da família, tornando-se pedreiro. Ele, contudo, tem outros planos, e sonha dar o fora dali para tentar a sorte como jogador profissional de beisebol.

O romance, incompleto, termina com Dominic ainda no Colorado após uma tentativa frustrada de ir embora, mas crente de que é apenas uma questão de tempo para debandar rumo à Califórnia.

Em A Irmandade da Uva, nos deparamos com outro ramo da família vivendo na costa oeste, décadas depois do que é contado em 1933. A relação desses Molise com aqueles outros nunca é esclarecida, e isso não importa muito. A sugestão de ramos desgarrados de uma mesma e imensa família vivendo em recantos distintos dos Estados Unidos e talvez ignorantes uns dos outros funciona muito bem nessas histórias em que a desagregação familiar é uma ameaça constante, para não dizer uma realidade incontornável. Além disso, deixa o leitor livre para encarar os livros na ordem que lhe aprouver.

Narrado por Henry, um cinquentão e o único de quatro irmãos que conseguiu deixar a cidadezinha onde nascera e crescera, San Elmo, para uma relativamente bem sucedida carreira como escritor em Los Angeles, A Irmandade da Uva se passa no decorrer de umas poucas semanas em que ele se vê obrigado, por causa de uma suposta crise familiar (mais uma), a voltar para a casa dos pais. O romance é norteado por algumas inversões. Por exemplo: em seu retorno, Henry é levado a trabalhar com o pai idoso, alcoólatra e intratável em um derradeiro serviço de pedreiro, justamente aquilo de que fugira décadas antes.

O pai, Nicholas, é um personagem e tanto, assim descrito por Henry: “Ninguém cruzava com ele sem uma batalha. Desgostava de quase tudo, particularmente da mulher, dos filhos, dos vizinhos, da sua igreja, do padre, da sua cidade, do seu estado, do seu país e do país do qual havia emigrado. Não dava a menor importância ao mundo também, ou ao sol e às estrelas, ou ao universo, ao céu ou ao inferno. Mas gostava de mulheres”.

Ele exibe uma espécie de paternidade em negativo, cuja irascibilidade naufragou ou tentou naufragar os sonhos e aspirações de todos os filhos. Mesmo Henry, a despeito de sua carreira e da distância que conseguiu estabelecer, acaba enredado pela força irresistível do velho, seja pela culpa, seja (o que é ainda mais irônico) pela perspectiva da culpa – ele não quer, depois, ser acometido pelo remorso por não atender ao último desejo do pai e estar com ele em seus dias derradeiros. A carga tragicômica disso é muito bem explorada por Fante.

A culpa é a argamassa das relações familiares, boas ou ruins, e está por todo o livro. Mas, claro, há outras coisas. Por exemplo, a viagem empreendida por pai e filho para as montanhas, a fim de realizar aquele último – e malfadado – serviço. No silêncio do trabalho pesado regado a vinho, muito vinho, dia após dia, num tempo em que “não existem horas”, quebrando e empilhando pedras, eles se aproximam de uma forma inédita. Claro que isso não perdurará. Mas a ideia de uma “morte” em vida, de uma anulação das mágoas e angústias no e pelo trabalho conjunto, é algo que não só reconcilia momentaneamente pai e filho como permite ao velho ter a ilusão de, no fim das contas, ter feito tudo certo. Não fez, é evidente, até porque ninguém faz. O que importa, contudo, é que essa “irmandade” ébria de vinho e trabalho permite aos dois um intervalo pacífico, uma trégua e, por que não?, um reencontro, mesmo que precário, antes da despedida final.

Defeitos afins

Resenha publicada em 23.02.2013 no Estadão.

Julian-Barnes-001

Pulso é a terceira coletânea de contos de Julian Barnes, precedida por Do Outro Lado da Mancha e Um Toque de Limão. O autor britânico é célebre por romances como O Papagaio de Flaubert, Em Tom de Conversa e O Sentido de Um Fim, ganhador do Man Booker Prize 2011, mas também encontramos em suas histórias curtas o humor angustiado e a inteligência das narrativas extensas.

O livro traz 14 contos e é dividido em duas partes. Se há algo que os une é o fato de que a maioria das histórias trata de casais. Logo na primeira, “O Vento Leste”, um corretor de imóveis divorciado se envolve com uma garçonete, imigrante alemã. A curiosidade pela figura misteriosa da mulher leva-o a invadir sua privacidade. Mais do que o choque cultural, está em jogo a eterna contradição entre o que queremos e o que o outro está disposto a nos dar.

Uma troca mais honesta, embora não isenta de ruídos, é observada em “O Jardim Inglês”, em que lemos de saída: “Depois de oito anos de casamento, eles começaram a se dar presentes úteis, que confirmavam mais o projeto de vida comum do casal do que seus sentimentos”. O conto se debruça sobre um “projeto comum” deles, o tal jardim que, por assim dizer, testará o pH de sua união. Há que se estar atento ao “grau de acidez ou alcalinidade” do casamento, e Barnes escapa ao óbvio (um casal cultivando um jardim) por meio de uma suspensão que chega ao ápice no desfecho: “Ele ficou parado na janela, sem saber se voltava para cama, ou descia e começava, lentamente, um outro dia”.

Os elementos de que se vale o autor são, em geral, os mais simples. Ele apresenta cenário e personagens, e as situações se desenvolvem com naturalidade. Há, por exemplo, uma série de quatro contos, “Na Casa de Phil e Joanna”, todos passados à mesa de jantar e ancorados em diálogos erráticos sobre os mais diversos temas: Barack Obama, aquecimento global, terrorismo, uma “teoria da britanicidade da geleia de laranja” e, claro, sexo. São conversas que resultariam pueris acaso não dissessem tanto sobre o paradoxo de um mundo que, quanto mais conectado, mais parece se desagregar.

A segunda parte do livro é composta por cinco narrativas. Barnes aprofunda o que foi apresentado antes com um tom eventualmente mais grave. O desencanto que experimentamos n'”O Vento Leste” reverbera de forma mais seca em “Cumplicidade”, onde outro divorciado reclama que os nossos pais “nunca nos preveniram contra a dor de um coração partido”. Ele diz: “Se você machuca o dedo menos importante, o resto da mão é afetado. Mesmo os gestos mais simples – colocar as meias, abotoar a camisa, trocar de marcha – se tornam tensos e constrangedores”. Em seguida, arremata: “Imagine, então, tentar fazer amor com um braço quebrado”. Não há tradução melhor para o desconforto sentido pelo personagem no momento em que, tendo encontrado alguém, ainda não sabe como se mover, pensar, falar.

Barnes alterna o eixo temático com outros assuntos, entretanto, o faz com desenvoltura, sem enfraquecer o conjunto. Ele ironiza o próprio meio em “Na Cama com John Updike”, em que duas escritoras, amigas há décadas, voltam de mais um evento literário e têm uma longa conversa repleta de ressentimentos mal disfarçados. Em “Harmonia”, viaja ao que se supõe a Viena do século 18, onde um teólogo-filósofo-médico tenta curar a cegueira psicossomática de uma moça por meio do magnetismo. Os efeitos que consegue, porém, parecem mais fruto das conversas e da cumplicidade que surgem entre eles do que dos métodos “científicos” adotados.

O melhor, contudo, está no conto que fecha e dá título ao livro. Voltamos aos casais, mas nada há de repetitivo aqui. Barnes justapõe o péssimo casamento do narrador, que termina mal e precocemente, à longa e bem-sucedida união de seus pais. “Será que somos atraídos por pessoas que têm os mesmos defeitos que nós?”, ele se pergunta, mas é justamente na estabilidade dos progenitores que encontra algum consolo. Quando a mãe adoece gravemente e ele vê o pai assistindo, impecável, à sua lenta agonia, é como se qualquer má lembrança evaporasse. Junto ao leito da mulher enferma, o pai redime o filho, assim como a boa prosa redime o mundo.

Sob o signo da errância

Resenha de Epifanias e Cartas a Nora, de James Joyce, publicada n’O Estado de São Paulo em 17/12/2012.

joyce

Recém-publicados, Epifanias e Cartas a Nora contribuem para o que se poderia chamar de “o ano de James Joyce no Brasil” – 2012 contemplou uma série de novas traduções, edições bem cuidadas e lançamentos de obras infantis do autor irlandês (1882-1941).
Para trafegar com um mínimo de segurança pela prosa joyciana, é interessante entender a forma como a epifania aparece em seus escritos. Ele redirecionou o sentido dessa palavra para fora do âmbito religioso, trazendo-a para o nível da vivência humana mais pedestre. Em Joyce, a epifania é uma revelação interior provocada, em geral, por um acontecimento dos mais banais. Muitas vezes, sobretudo nos contos de Dublinenses, se tem a impressão de que o mundo estanca por um segundo ou dois e, nesse intervalo, permite-se vislumbrar em toda a sua precariedade. E, até porque se esvai muito rapidamente e o mundo seguirá indiferente a essa iluminação passageira, tal instante tem o poder de ressignificar para o personagem, e somente para ele, tudo o que foi vivido até ali. A epifania é, portanto, uma contradição em termos, uma vez que traduz em palavras algo que, em princípio, seria intraduzível.
Epifanias nos traz um crescendo desses instantes inesperados, uma sucessão de surpresas, de momentos por meio dos quais somos convidados a olhar de novo e de novo para o que seria banal, um trecho de conversa, uma descrição, qualquer “nada” que nos leve àquela suspensão, àquele (para usar as palavras de Hélène Cixous citadas no estudo introdutório de Piero Eyben) “descarrilamento da consciência”. São, enfim, 40 fragmentos impregnados por um dos traços distintivos da vida e da obra de Joyce: o movimento, seja interno ou externo, mas sempre voltado para fora, para o mundo.
E é também sob o signo da errância que lemos as Cartas a Nora. A maior parte delas foi escrita em 1909, quando Joyce se encontrava em Dublin tentando conseguir, dentre outras coisas, com que publicassem Dublinenses, e Nora Barnacle, sua companheira, na Itália. Para além das inúmeras dificuldades financeiras, das desconfianças (“Georgie é meu filho?”, ele pergunta numa carta de 7 de agosto de 1909. “Você fez com alguém antes de mim?”), das apaixonadas obscenidades que pipocam em função da distância, interessa-nos perceber a centralidade de Nora na vida e no imaginário do escritor.
Não é por acaso que a ação do Ulysses transcorra no dia 16 de junho de 1904, por exemplo. Foi naquele dia que Joyce e Nora passearam juntos pela primeira vez, e a partir de então ela se tornou a sua “Irlanda”, seu chão, seu lugar no mundo, importantíssima para alguém obrigado, pelas circunstâncias, a ter uma existência nômade.
Eis aí uma imagem muito bonita: habitar alguém. Bonita e condizente com a própria literatura de James Joyce, cujos textos, mesmo os tidos como “difíceis”, retiram boa parte de sua vitalidade dessa coabitação, desse viver com os outros. É o que se percebe nos contos de Dublinenses, nas Epifanias, no homem em progresso que protagoniza Um Retrato do Artista Quando Jovem e, sobretudo, na odisseia pedestre que é o Ulysses. A epifania inerente às cartas, e que contaminaria os escritos literários, parece residir justamente no espanto de descobrir-se com alguém. Nem sempre sabemos o que fazer a partir disso, exceto que é imprescindível seguir viagem.
Sobre os livros em pauta, apenas uma ressalva: eles talvez sejam mais bem aproveitados por um leitor já familiarizado com as narrativas ficcionais do autor. A própria ideia que ele fazia de epifania, por exemplo, aparece muito bem explicada a certa altura de Stephen Herói e claramente exemplificada, conforme já dissemos, nos contos de Dublinenses. Mas, seja Joyce, seja qualquer outro grande autor, o importante é que nós nos deixemos habitar por eles.

DFW como experiência religiosa

Resenha publicada no Estadão em 1º.12.2012.

dfw

No momento em que as mais de mil páginas de Infinite Jest estão sendo traduzidas, nada melhor do que uma introdução à prosa virtuosística de David Foster Wallace. Até porque o volume de contos Breves Entrevistas com Homens Hediondos, lançado há alguns anos, só atingiu uma parcela relativamente maior (e ainda assim não muito grande) de público após a trágica morte do escritor, aos 46 anos de idade, em 2008. Assim, numa tentativa louvável de reapresentar o autor aos leitores brasileiros, chegaram recentemente às livrarias as peças de não ficção reunidas em Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. Para quem nunca leu nada desse sujeito genialmente idiossincrático (e vice-versa), eis um bom aperitivo. Para quem já o conhece, é como voltar para casa.

O livro traz seis textos. Quatro deles foram encomendas de publicações como Harper’s, Gourmet e The New York Times e partem de temas tão variados quanto a Feira Estadual de Illinois, um cruzeiro pelo Caribe, o Festival da Lagosta do Maine e o tenista Roger Federer. Os outros são uma curta palestra sobre o humor em Franz Kafka (e a incapacidade de muitos para compreendê-lo ou sequer acessá-lo) e um discurso de paraninfo dos mais inusitados – e belos.

De antemão, ressalte-se algo que deveria ser óbvio para todo mundo, mas que, desgraçadamente, não é: em se tratando de um autor talentoso como DFW, ou de qualquer autor, na verdade, importam menos os temas e mais – bem mais – as maneiras como eles são abordados e desenvolvidos. Há passagens embasbacadoras em cada um dos textos que integram o volume.

Logo no primeiro deles, que dá título ao livro, o leitor é exposto à “grande massa pitoresca de humanidade do Meio-Oeste” que superlota a Feira de Illinois. Parodiando a estrutura de um diário e sustentado por uma verve que não deve nada ao melhor jornalismo literário, o ensaio rasga a planura da caipirice norte-americana e nos revela “uma cultura dialogando consigo mesma, mostrando credenciais para inspeção própria”. O que temos é um homem circulando pelo lugar e nos contando o que vê: brinquedos de parque de diversão descritos como “Experiências de Quase-Morte”, alimentos cuja mera menção talvez seja capaz de entupir artérias, desfiles de vacas que “parecem estar drogadas”, “Duelo do Meio-Oeste de Reboque com Trator e Caminhão”, etc. A estupefação e a alienação são galopantes, por mais que a ideia do autor como um “alienígena” passeando pela feira, além de óbvia, seja falha: o assombro de DFW é sempre e inapelavelmente humano, pois o “verdadeiro espetáculo que nos atrai aqui somos Nós”.

Tal esforço literário-antropológico é levado a extremos em Uma Coisa Supostamente Divertida Que Eu Nunca Mais Vou Fazer, sobre o tal cruzeiro caribenho. Ali, momentos engraçadíssimos (a relação com a camareira onipresente e, ao que tudo indica, onisciente; o discurso estarrecedor do Diretor de Cruzeiro e a “piada” escatológica que ele conta envolvendo o assustador Sistema de Esgotos a Vácuo do navio, a sua própria esposa e um mexicano) convivem com passagens lancinantes, nas quais o autor discorre, implícita ou explicitamente, sobre como “existe algo de insuportavelmente triste num Cruzeiro de Luxo” e, vale dizer, na vida em geral.

Em meio às 11 ou mais refeições diárias, à “diversão esforçada”, com os passageiros “mimados até a morte”, paulatinamente afogados em sua autoindulgência e transformados em eternas “Crianças Insatisfeitas”, DFW percebe como, num cruzeiro daqueles, se paga não só pela experiência, mas pela “interpretação dessa experiência”. Analisando até mesmo a brochura da companhia que promove o passeio, na qual a publicidade, mais do que sugerir, constrói a “fantasia em si” e a entrega, prontinha, para o cliente, ele sugere que a imaginação de cada um é a primeira coisa a ser morta e enterrada por aquela forma de entretenimento. Os viajantes são praticamente coagidos a se divertir, bombardeados pela necessidade de “relaxar” e “se deixar levar”. Elas não têm escolha. São zumbis flanando pelo navio, perdidos entre um “programa imperdível” e outro.

Ao final da leitura, é fácil perceber como tudo se resume a dar uns passos para trás e observar com um mínimo de atenção o que se passa ao redor. É a “liberdade de ver os outros” de que nos fala Isto É Água, o mencionado discurso de paraninfo em que, dentre outras coisas, apregoa a necessidade de “manter a verdade na superfície da consciência em nossas vidas cotidianas”. A epifania não raro decorre do que é mais pedestre, banal. E é nesse sentido que, parafraseando o título do ensaio sobre Federer que fecha o volume, podemos pensar em David Foster Wallace como uma experiência religiosa na mais estrita acepção do termo.

………..

Nota: o romance Infinite Jest foi lançado no Brasil em fins de 2014 com o título Graça Infinita e eu também o resenhei para o Estadão.

Sobre "Vício Inerente", de Thomas Pynchon

Resenha originalmente publicada no jornal O Globo, em 18/12/2010.

vicio

No livro “Bartleby e Companhia”, Enrique Vila-Matas conta a história de um professor que escreveu uma tese sobre a obra de Thomas Pynchon e queria muito conhecê-lo pessoalmente. Ocorre que o cultuado autor de “O arco-íris da gravidade” e do recém-lançado no Brasil “Vício inerente” é um recluso: não dá entrevistas, não circula pelos meios literários e acadêmicos, suas raríssimas fotografias que vieram a público datam de mais de meio século atrás e, claro, ele não aparece na televisão (exceto com um saco de papel na cabeça e em forma de desenho animado, como ocorreu anos atrás num episódio de “Os Simpsons”). Mas o tal professor insistiu e, sabe-se lá como, conseguiu encontrar-se com o escritor. Anos depois, convidado para uma festa em Los Angeles na qual Pynchon estaria presente, surpreendeu-se ao constatar que a pessoa que ali estava não era, em absoluto, a mesma com a qual se encontrara antes. Ao confrontá-lo, rememorando o encontro inicial e perguntando qual seria, afinal, o Pynchon genuíno, ainda teve de ouvir: “Então, você terá de decidir qual é o verdadeiro”.

A história, a exemplo de todas que se referem a Pynchon, pouco ou nada diz sobre quem ele é. Afinal, é perfeitamente possível que nenhum dos dois homens com quem o professor se encontrou fosse o escritor. Por outro lado, talvez ela nos diga bastante do tipo de narrativa que Pynchon vem desenvolvendo desde os seus primeiros trabalhos. Em tudo o que ele escreveu até hoje, há esse apreço pelo embaralhamento, pelo difuso, talvez a única maneira de enxergar uma realidade em constante esboroamento, entrópica por natureza e para todos os efeitos. Mais do que um mero ficcionista e menos do que uma “persona literária” (uma vez que optou por praticamente inexistir aqui fora), Pynchon seria uma espécie de princípio organizador por trás dessa realidade que recria, subverte, perverte, parodia e estilhaça por meio da (e peço perdão pela inicial maiúscula) Palavra.

“Vício inerente” é o seu romance menos ambicioso, mais relaxado (no bom sentido), mas isso não quer dizer que faça feio perante calhamaços estupendos como “Mason & Dixon” e “Against the day”. Mais do que nunca, Pynchon parece interessado em divertir, investindo em algo como um pastiche das narrativas policiais de mestres do gênero como Raymond Chandler e Dashiell Hammett, ao mesmo tempo em que desenvolve o enredo tresloucado habitual, no qual a paranoia, como sempre, reina absoluta.

A história se passa na mesma Califórnia que Pynchon recriou em “O Leilão do Lote 49” e “Vineland”, aqui no começo da ressaca do Flower Power, no primeiro semestre de 1970. O protagonista, Doc Sportello, é um detetive particular que lembra o “Dude”, interpretado por Jeff Bridges no filme “O Grande Lebowsky”, dos irmãos Coen. Está quase sempre chapado e, em função disso, tem um modo de funcionamento muito peculiar, flanando por aí e enxergando o que está ao redor e, sobretudo, o que muitas vezes não está ao redor. No curso da investigação, ele vivencia acontecimentos e, para concluir o que quer que seja, estabelece toda sorte de conexões, de tal maneira que o ponto ao redor do qual tudo parece orbitar e para o qual tudo ou quase tudo converge é mesmo o da boa e velha paranoia.

Logo no começo, Sportello é contratado por uma ex-namorada, Shasta, para descobrir o paradeiro do amante dela, um figurão do mercado imobiliário. Como não poderia deixar de ser em se tratando de uma viagem pynchoniana, a investigação desse sumiço vai resultar em coisa muito maior e bem mais complicada, uma tremenda conspiração que envolve uma multidão de personagens e um monte de intrigas paralelas.

Para além do enredo rocambolesco, é sempre um prazer imergir na prosa de Pynchon. Em “Vício inerente”, o uso das gírias locais, sobretudo por meio do lero de Sportello, reinstaura uma realidade que, de resto, nunca existiu daquela forma ou, mesmo que tenha existido, àquela altura (1970, reitero) já estava indo para o espaço. E é algo que parece estar sempre presente nos livros de Pynchon: personagens que perambulam por ambientes, físicos ou mentais, que estão ruindo, esfarelando, no contexto mesmo da entropia que a tudo desagrega.

Não por acaso (e, sejamos paranoicos, nada é por acaso), temos a neblina que a tudo engole no desfecho, quando “a terceira dimensão fica cada vez menos confiável”, desaparecendo com o mundo e atirando o protagonista na “silente brancura adiante”, em “uma caravana em um deserto de percepção”. Ali, sugere-se que aquela neblina densa não só se espalha, como parece prestes a se estabelecer por tempo indeterminado. Para um personagem como Sportello, marginal na mais completa acepção do termo, só resta parar no acostamento e contar com a sorte, esperar que a neblina se dissipe e que alguma outra coisa tome o lugar dela.

Em meio a essa densa neblina que ainda hoje nos envolve, “Vício inerente” é uma ótima pedida para o leitor interessado em mergulhar pela primeira vez nos livros do autor. Àqueles já familiarizados com a prosa de Pynchon, fica a sensação agradabilíssima e reconfortante de que o autor, aos setenta e poucos anos, segue escrevendo com a mesma fome e, se me permitem, lucidez de sempre.

Chão comum

wonder

::: Terrence Malick atravessa o Atlântico com um corte seco.

::: Amor Pleno ou, conforme prefiro chamar, To the Wonder prossegue com o arvoramento transcendente de A Árvore da Vida, mas sem a carga lutuosa daquele (ainda que uma personagem, aqui, também carregue a perda de um filho). Logo no começo, um padre (Javier Bardem) fala sobre a distinção entre amor humano e amor divino. Malick não quebra essa distinção, mas sugere um chão comum no qual ambas, com esforço, talvez consigam transitar, ainda que momentaneamente.

::: O “amor que nós amamos” é ricamente ilustrado pelas idas e vindas do casal Ben Affleck e Olga Kurylenko. É um conflito quase que ininterrupto no e pelo qual, conforme observa a filha de dez anos dela, sempre parece faltar alguma coisa. É um amor falho, cujo desenrolar doloroso prescinde de palavras: eles falam, mas raramente os ouvimos, ou ouvimos apenas frases soltas, porque Malick sabe que nós sabemos o que foi dito antes e o que será dito a seguir.

::: Acho curioso, para não dizer absurdo, que alguém tenha escrito que, em um filme tão tormentoso, “nada evolui”, e que ele “não produz catarse” porque não tem “tragédia”, constituindo uma “mediocridade disfarçada de soberba”. Não consigo imaginar cineasta mais singelo e humilde do que Malick. Tanto o seu maravilhamento quanto a sua angústia traduzem um sentimento metafísico de pequenez que aproximam o seu cinema de uma experiência religiosa, na mais (agora, sim) plena acepção do termo. A soberba, no caso, está nos olhos vazados de arrogância daquele que, incapaz de experienciar pelo outro um mergulho dessa natureza, rejeita infantilmente o que vê.

::: Dizendo de outro modo, não é porque o espectador é agnóstico ou ateu que ele deve fechar os olhos para a convocação religiosa (mas sempre e por isso mesmo angustiosamente humana) feita pelo cineasta. Fosse assim, ainda não leríamos Agostinho com tanto interesse. A questão, aqui, não é em que você acredita ou não, ou sequer se acredita em alguma coisa, mas, sim, se é capaz ou, melhor dizendo, está disposto a enxergar com os olhos livres o sentimento religioso tão bem expresso pelo outro.

::: É, em suma, uma questão de ser ou não tolerante para com o outro. Em sendo, torna-se possível abraçar um cinema que, a exemplo da vida, compagina maravilhamento absoluto e dor inexorável.

::: O chão comum oferecido por Malick passa ao largo de qualquer tentativa de conversão. Observem que o personagem mais angustiado, metafisicamente, é o padre. Ao mesmo tempo, ele só parece ter algum consolo quando, errando pela cidade, vendo e ouvindo os paroquianos, permite-se entrever e entreouvir D’us nos corpos e vozes dos outros. Da mesma forma, a tormenta afetiva vivida por Affleck e Kurylenko, e, por um breve interlúdio, por Affleck e Rachel McAdams, exige de todos eles algo que nem sempre, quase nunca, parecem dispostos a oferecer: o espaço de um silêncio no qual o outro possa se instalar.

::: De certo modo, o filme nos pede a mesma coisa: o espaço de um silêncio para que se possa instalar. Até porque aquele corte seco atravessa, mas não oblitera o oceano.

.

As asas prontas para o voo

Minha asa está pronta para o voo,
preferiria retroceder pois se também eu seguisse
como tempo vivo seria infeliz.
— Gerhard Scholem, “Saudação do anjo”¹.

steel

[Post atualizado às 09:31hs.]

Há uma cena de O Homem de Aço, de Zack Snyder, que me impressionou muito. Nela, Clark Kent é uma criança. Ele está assustado, muito assustado. Seus superpoderes afloram, e ele ainda não consegue controlá-los: sons enlouquecedores vindos de todos os lados; olha para a professora e vê nervos, ossos, o coração batendo. Sai correndo da sala de aula e se tranca num cômodo qualquer. A mãe é chamada. Tenta acalmá-lo. Fala com ele através da porta fechada. Ele não consegue se acalmar. “O mundo é grande demais, mãe”, diz. “Então torne-o pequeno”, ela responde.

E não é mais ou menos isso que fazemos todos, dia após dia após dia? O mundo grande demais e nós ali, tentando torná-lo menor, compreensível ou ao menos suportável, isto é, habitável? Nem sempre é possível. Nem sempre é suportável. E ele, mundo, nem sempre (quase nunca) responde amigavelmente.

É por aí que O Homem de Aço se comunica comigo.

Não consigo vê-lo como veria qualquer outro filme porque há o peso de uma memória, de uma afeição, e também o peso da minha relação com o mundo conforme eu o filtro (mundo) por essas memória e afeição. É um círculo sem fim.

O filme me lança para trás, inevitável e inexoravelmente. Se me permitem roubar e parafrasear o título de um excelente livro, o filme faz chover sobre a minha infância. Ou: faz chover sobre os olhos que faço chover sobre a minha infância.

Talvez haja outro modo de explicar isso.

Sou das raríssimas pessoas que apreciam Superman — O Retorno. E as razões pelas quais gosto do filme de Bryan Singer são, em parte, as razões pelas quais gosto ainda mais do filme de Snyder. Vejamos.

Gosto do filme de Singer menos pelo que ele é e mais pelo tributo que presta à obra-prima de Richard Donner. Mas, acima de tudo, gosto da maneira como ele me pede gentilmente que olhe para um passado ensolarado que não tive, mas com o qual sonhei ou sonhava sempre que, para me esquecer do resto, o resto tenebroso e desnomeado que me sufocava, eu mergulhava nos quadrinhos. Era uma vida possível, aquela, e eu me agarrava a ela sempre que podia. Ler aquelas histórias foi, então, o modo que encontrei para me viabilizar.

Aquele pedido é reelaborado pelo filme de Snyder com menos gentileza e mais amargura. O olhar que ele lança sobre a infância do super-herói, por exemplo, alguém isolado não só dos outros, mas de si mesmo, posto que não sabe ainda de onde e a que veio, e por quê. É muito forte isso, e muito triste, também. Em nenhuma outra versão cinematográfica experimentei essa desolação com tamanha intensidade. Está inscrita em cada segundo de O Homem de Aço.

Está, por exemplo, em Krypton, aqui recriado sem qualquer parentesco com o mundo gélido e asséptico do filme de Donner. O Krypton de Snyder se coaduna com a maneira como deito os olhos para trás e o que vejo por lá: uma rocha escura e apodrecida, morrendo de dentro para fora, prestes a se esfarelar. É um lar que foi pelos ares e que, para Kal-El, é apenas uma projeção, um eco fantasmagórico, uma tenebrosa onda de choque.

Há muitos cadáveres em O Homem de Aço. Eles estão por toda parte, vindos do passado ou não. Um planeta é destruído e outro, quase. Cidades são devastadas. Os corpos estão pelo caminho. Acima e às vezes abaixo deles está a ideia desse ser condenado a uma espécie de limbo: vindo de um mundo que não é mais e habitante de um outro que ainda não veio a ser.

O nosso mundo é uma promessa, e possivelmente uma promessa vazia. Kal-El sabe disso, mas finge que não. E que outra escolha ele teria? O mundo grande demais e ele ao mesmo tempo dentro e fora, lançado em um vácuo inexprimível. Suas asas estão prontas para o voo, e aí residem sua beleza e sua tragédia. O resto são as ruínas de ontem e de amanhã.

Pensar nelas (vislumbrá-las com olhos-que-chovem) pode ser devastador, mas é também um jeito que encontrava e ainda encontro para recolorir tudo e resgatar a promessa de algo muito bonito que não esteve lá e nunca estará aqui, mas que é impossível deixar de conceber. É uma forma bem estranha de sonho: abro os olhos e de repente estou ali, me frequentando.

…………

¹BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet; prefácio: Jeanne Marie Gagnebin — 8ª edição revista — São Paulo: Brasiliense, 2012 — (Obras Escolhidas v. 1).

Saer, Austen e uma casa demolida

::: O que não termina sempre volta para nos assombrar. Ou sequer vai embora. É nesse espírito que o romance inacabado O Grande (trad.: Heloisa Jahn, Cia. das Letras) adquiriu um caráter ainda mais assombroso para mim. Permanecerá dando voltas na minha cabeça, num processo de atualização constante. A província está inteira nele. Vaza de suas páginas. Escorre. A província está inteira em mim. Vaza, escorre.

::: Curioso como, enquanto o lia, tive a impressão de estar diante de um romance interminável. É a maneira como Saer narra, o lento desenrolar, a atenção às mínimas coisas, as digressões que se sobrepõem, a morosidade narrativa traduzindo lindamente a morosidade daquelas vidas.

::: Alguém vai embora e então retorna. Na minha cabeça, a ideia do retorno é semelhante a um filme de terror. O personagem de Saer retorna por causa de uma filha cuja existência ignorava. Reencontra a mãe dela, um amor antigo, em ruínas. Eis o filme de terror: no que voltamos, as ruínas riem de nós.

::: Há o churrasco n’O Grande. Estive nele, de certa forma, ou ele se instalou na minha cabeça e virou outra coisa, algo formado por uma série de retalhos de outros churrascos em que efetivamente estive, na província. É a imagem (e também a ideia) daquela tempestade que se aproxima, anunciada mas não visível (não por todos), e que desaba de repente.

::: Também andei lendo Jane Austen. A ideia de um lar (de ir embora e/ou de voltar a ele) continuou viva em minha cabeça. É uma concatenação forçada, claro. Ou, melhor dizendo, uma concatenação íntima demais e, por isso mesmo, intraduzível, talvez.

::: No capítulo IX da primeira parte de Razão e Sensibilidade, sabemos que Elinor e Marianne viram, durante uma caminhada, “uma mansão antiga e imponente, que, por lembrar-lhes um pouco a casa de Norland, atiçara sua imaginação e fez com que desejassem conhecê-la melhor”. A casa de Norland lhes fora, de certa forma, tomada ou, melhor dizendo, é uma propriedade que nunca pertencera realmente a elas. Mas é o lugar em que passaram vários e bons anos.

::: Uma casa leva à outra, para o bem e para o mal. Eu me lembro de, entre os seis e os oito anos, viver em meia dúzia de casas diferentes: duas mudanças maiores, de Goiás ao Pará e do Pará de volta a Goiás, e outras três mudanças menores, na mesma cidade. Talvez venha daí meu pavor de mudanças.

::: Elinor e Marianne sentem saudades de uma casa que nunca fora delas. É uma espécie de lar movediço, inabraçável.

::: Depois que voltamos para Goiás, não me lembro exatamente quando (creio que no começo da década de 1990, mas pode ter sido antes), descobri que a casa onde passara uns bons anos (os primeiros anos de vida consciente, por assim dizer) tinha sido demolida. É a casa de Arthur criança em Terra de casas vazias. É a casa para onde Garcia leva a mulher e a filha pequena em Vento de queimada. Após tantas mudanças em tão curto espaço de tempo, a descoberta da demolição foi um choque para mim. A casa não existia mais. A ideia de um lar se mostrava inviável.

::: Em 1989, durante uma aula de Organização Social e Política do Brasil (sic), quando a professora usou a expressão “inviolabilidade do lar”, levantei a mão e perguntei: “Inviabilidade?”. Todos riram, claro.

7xGodard

1.
Bande à Part [1964] Declaração de amor a um certo cinema, “Bande à Part” é uma pulp fiction. Ou o pastiche de uma, tão vibrante e espirituoso quanto “Acossado”. Não sei, mas talvez seja ainda mais livre. Um “filme de cinema” que engendrou outros tantos “filmes de cinema”, de “Pulp Fiction” a “Amateur”. Talvez por essa mesma noção de liberdade fílmica reiterada continuamente por imagens e, claro, palavras (Eliot, Shakespeare). A dança desencontrada de Anna Karina, Sami Frey e Claude Brasseur. A corrida desembestada pelo Louvre (tão lindamente homenageada por Bertolucci em “Os Sonhadores”). E alguém dado como morto voltando à vida. [02/10/2010]

2.
Uma Mulher Casada [1964] Charlotte (Macha Méril) divide-se entre o marido e um amante (ou nem isso). Com a desculpa (ou a quimera) de viver o momento presente, galopa em direção à angústia (ou nem isso). Cai no meio da rua. Repete os mesmos gestos com um e com outro. A relação com o marido é uma caricatura de sua relação com o amante, e vice-versa. Difícil saber o que começou primeiro. Difícil saber, inclusive, se algo ali de fato começou. Ignora a memória (tenta, pelo menos) e sabe muito pouco da inteligência. Ao que parece, não teve infância. Recorta o mundo em revistas e mais revistas femininas. E, de repente, não está mais vazia. Quando o filme acaba. [02/10/2010]

3.
Made in U.S.A. [1966] Um autoproclamado “filme de Walt Disney com Humphrey Bogart” dedicado a Nicholas Ray e Samuel Fuller, em tela larga, cores vibrantes, situado em um futuro próximo (se você estiver em 1966) e com as participações muito especiais de David Goodis, Richard Nixon e Robert McNamara, dentre outros. “Made in U.S.A.” é um filme datado no que isso tem de melhor e pior. O humor sardônico de Godard impediu que suas cores desbotassem por completo, ainda que, às vezes, tenha-se a impressão de haver mais política do que cinema dentro do quadro. Mas, seja como for, sempre há cinema. [02/10/2010]

4.
Masculino – Feminino [1966] Belíssimo filme de Godard sobre a juventude parisiense às portas de Maio de 1968. Divididos entre Marx e a Coca-Cola, conforme é dito a certa altura (sem, contudo, qualquer maniqueísmo, em mais um chiste malcriado do cineasta), esses jovens circulam livremente pelo filme. Estão à direita, à esquerda ou no vácuo, conforme observamos no seguimento “Dialogue Avec un Produit de Consommation”. Ou seja: Godard investe em uma abordagem plural e, a seu modo, afetiva. Há uma ternura no modo como ele acompanha esses personagens, independentemente de suas respectivas (des)orientações ideológicas. Não há nada que remeta a um tom panfletário. Os jump cuts, as elipses, a estrutura quebradiça, o anti-naturalismo, tudo aquilo que é próprio do estilo de Godard serve, aqui, a um passeio pelo estado de espírito de uma geração irrequieta, está certo, mas também (e a exemplo de qualquer outra) contraditória, errática, esfomeada. Por tudo isso, “Masculino, Feminino” é um filme que permanece inteiro, que não soa datado em momento algum. Ironicamente, seu desfecho brusco talvez nos diga muito sobre os rumos tomados por aquela geração. Tudo o que disseram e fizeram para, de repente, em um acidente estúpido, flutuar de costas no vazio, e é tudo. [04/10/2010]

5.
Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela [1967] Dela, Paris. Dela, Juliette (Marina Vlady), uma dona-de-casa que se prostitui para engordar o orçamento. Dela, a própria linguagem. (Se a linguagem é a casa do homem, o que aconteceria se o azul fosse chamado de verde? Não sei.) “Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela” é um desses filmes de Godard que podemos chamar de “difíceis”. Porque não há humor. E os personagens discursam. Discursam, digressionam, filosofam e pedem um cigarro. Estranhamente, o filme está muito longe de ser um panfleto, de incorrer em provocações fáceis e, acima de tudo, de ser chato. Porque ele também não oferece qualquer resposta. Porque ele sequer oferece a possibilidade de um movimento em direção a uma resposta sobre o que quer que seja. Seus questionamentos sociais, políticos e metanarrativos flutuam de um quadro a outro (reluto em chamar de “cenas”) sem esboçar a menor intenção de situar, concluir ou mesmo pontificar qualquer coisa. “Duas ou Três Coisas que Sei Dela” não tem humor também porque é fruto de uma angústia muito particular, a mesma que, arrisco a dizer, produziria o belíssimo “JLG por JLG” quase três décadas depois. Nele, está toda a “paixão por se expressar” do cineasta. Um fome por dizer e contradizer. E é um filme que parece se alimentar de si mesmo. Feito o cigarro aceso que o encerra e queima o quadro de fora para dentro. “Quanto mais o organismo é complexo, mais ele é livre”, diria Godard muito tempo depois. “Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela” é também o exercício de uma liberdade. [06/10/2010]

6.
Prénom Carmen [1983] Este é um filme sobre o corpo. O corpo que cria artisticamente (por exemplo, ao tocar um instrumento), o corpo que ama e/ou fode, o corpo que perpetra e/ou sofre a violência. Um grupo assalta um banco para supostamente financiar um filme. O filme, claro, está ali desde o começo. É o que vemos. Uma das assaltantes, Carmen, apaixona-se (ou não, difícil saber) por um dos guardas do banco, que foge com ela. Depois, tudo se desintegra. Há também qualquer coisa sobre a mecânica de uma relação amorosa, e é mesmo estranho que um filme que contém esse tipo de coisa (amor?) seja tão desprovido de qualquer afetuosidade. Godard já exercitava o amargor que tornaria filmes como “JLG por JLG” e “Nossa Música” tão lancinantes, creio. Nem parece o mesmo cineasta que nos deu “Uma Mulher é uma Mulher” (não estou reclamando). [10/10/2010]

7.
Filme Socialismo [2010] Este filmensaio dirige-se à Europa ou, como diz uma personagem a certa altura, à “pobre Europa”. Para dirigir-se ao velho continente, há primeiro um distanciamento: o primeiro dos três seguimentos do filme, “Coisas como essas” (ou “Coisas assim”), se passa em um navio de cruzeiro que vaga pelo Mediterrâneo, indo de Alger a Barcelona passando por Israel (ou, como insiste Godard, Palestina) e Nápoles. A ideia de estar à deriva, observando a Europa contemporânea sob um ponto de vista pesadamente historicista (as cidades escolhidas não estão ali por acaso), ao mesmo tempo dentro e fora do continente, não é uma simples peraltice godardiana. Na verdade, o que se observa é o lento e brutal degringolar do continente, hoje tão adoecido e governado por canalhas que, diferentemente dos de outrora, “podem ser sinceros”. “Nossa Europa”, o segundo seguimento, é o mais fraco dos três. Nele, uma equipe de televisão documenta o cotidiano de uma família francesa no interior do país. Coloca-se uma questão identitária: os filhos devem abandonar o sobrenome dos pais? Novamente, é o peso da história, qualquer que seja, e o peso (talvez bem maior, ou mais caro) de sua negação e/ou esquecimento. Já em “Nossas Humanidades”, último e melhor seguimento do filme, Godard recupera imageticamente dois momentos terríveis do século XX: o massacre nas escadarias de Odessa (imortalizado por Serguei Eisenstein em “O Encouraçado Potemkin”) e o período em que boa parte da Europa viveu sob a ocupação nazista. Com sua capacidade inigualável de fazer colagens e, a partir delas, estabelecer sentidos, Godard parece sugerir que a história europeia é o desenrolar às vezes tranquilo, às vezes convulsivo de uma mesma interminável crise. Em meio a tudo isso, ele também encontra espaço para aludir ao conflito palestino-israelense: quando duas vozes dissonantes falam ao mesmo tempo, é preciso encontrar uma nota comum a fim de que o que ambas dizem possa soar inteligível. Não é exatamente disso que se trata? [16/12/2010]