Em breve:

Casas.

Casas nº 1
(1958),
de Wylma Martins.

wylma martins

Esta é a xilogravura que ilustra a capa de Terra de casas vazias, meu novo romance. A capa, aliás, está pronta e ficou linda. Eu e a Editora Rocco a divulgaremos dentro de alguns dias. O livro será lançado em março.

Contra o dia

master

O primeiro longa-metragem de Paul Thomas Anderson se chama Jogada de Risco e é um conto poderoso sobre a amizade entre dois homens. Há um elemento paterno-filial muito forte ali, coisa que o diretor voltaria a desenvolver em seu segundo longa (e primeira obra-prima), Boogie Nights. Nos filmes seguintes (Magnólia, Embriagado de Amor e Sangue Negro), o mote não se faz presente, mas o diretor afina o olhar compassivo para com personagens deslocados que, parafraseando uma fala de O Mestre, lutam contra o dia e, eventualmente, saem vencedores (ou não).

Vi O Mestre hoje e creio que é o seu melhor filme. Nele, Anderson alia a grandeza abismal de Sangue Negro com a estranheza de Embriagado de Amor. É cinema doutra esfera, sem igual.

Eu me senti mareado durante boa parte da projeção, e compartilhei da desorientação, da aparente ingenuidade e, sobretudo, da fúria de seu personagem principal, Freddie (Joaquin Phoenix), um marinheiro egresso do Pacífico e da Segunda Guerra Mundial que não encontra lugar em “casa”.

Isso não é dito, mas tive a impressão de que ele talvez já se sentisse assim mesmo antes da guerra. Como o Benny Profane de Pynchon, Freddie é uma espécie de schlemihl, um “ioiô humano” cujos excessos e cujo comportamento errático espelham uma inadequação das mais raivosas. Ele corre o mundo, mas o mundo não corre por ele. Isso machuca à beça.

Embora destinado às “latitudes sem terra”, Freddie conhece e passa a gravitar em torno de Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman). Dodd é o criador e líder de uma espécie de seita chamada A Causa, que lembra um pouco a famigerada Cientologia. Ou seja, é uma religião que não se assume como tal porque adota um discurso cientificista (ou de ficção-científica mesmo) dos mais obtusos. É muito fácil perceber os furos e a picaretagem inerentes à coisa toda, e Anderson poderia sacanear a patota e ridicularizá-la como bem entendesse. Felizmente, ele não faz isso.

E não o faz porque o filme é sobre outra coisa: a relação entre esses dois homens, mestre e aprendiz. Essa relação é desenvolvida com uma sutileza enorme. É um amor que cresce para além e a despeito das confusões pseudofilosóficas, das maracutaias, da pose do guru e do ódio que ele expressa sempre que alguém o questiona ou contradiz.

Freddie é marginal onde quer que esteja, mesmo quando sozinho, e Phoenix traduz isso à perfeição: sua postura e seus gestos são os de um homem envelhecido, para não dizer devastado, e seu jeito truncado de falar lembra o de Heath Ledger em Brokeback Mountain. Parece um ser impermeável à linguagem, que recorre ao corpo sempre que precisa expressar algo. Não demora para que a esposa e o genro de Dodd criem objeções à sua presença. E, por mais nocivo que ele de fato seja ao negócio da família, Dodd não só hesita em afastá-lo como se esforça para integrá-lo e mantê-lo o mais próximo possível.

Há uma conexão real entre os dois, e ela é tão forte e verdadeira que, inadvertidamente, até mesmo as bobagens d’A Causa adquirem uma coloração poética. Se as “teorias” de Dodd não dizem nada sobre o universo, é curioso como, aos poucos, elas parecem dizer tudo sobre a sua amizade com Freddie. É por isso que, a certa altura, quando ele “explica” o que justifica uma ligação tão forte, falando sobre a “outra vida” na qual eles se conheceram e conviveram, eu não só relevei a imbecilidade submetafísica como me emocionei, e muito, com o diálogo. Dodd enseja uma lancinante declaração de amor fraternal e um pedido para que o outro fique, mesmo sabendo que ele não pode ou, melhor dizendo, não deve ficar.

É bem verdade que Freddie não pode ser “salvo”, mas quem é que pode? Há um ruído que lhe é intrínseco, algo que sugere não loucura, mas, digamos assim, “supersanidade”. Freddie enxerga as coisas com uma clareza primitiva e, por isso mesmo, insuportável. A exemplo do que acontecia em Embriagado de Amor, a trilha-sonora (do mesmo Jonny Greenwood que compôs a de Sangue Negro) liga-se intimamente ao estado de espírito do personagem. É muito mais do que um mero mickeymousing. A música parece fazer parte de Freddie, ajuda a constituí-lo, a presentificá-lo e à sua luta inglória contra o dia.

Notícias do submundo

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Curto o cinema de Kathryn Bigelow. Acho Caçadores de Emoção um policial decente, e Guerra ao Terror é o melhor filme sobre essa enrascada iraquiana na qual os EUA se meteram na década passada. Aliás, há coisas muito boas a respeito, desde o pouco visto Redacted, de Brian DePalma, até o subestimado Zona Verde, de Paul Greengrass.

A Hora Mais Escura reconstitui a caçada a Osama bin Laden pela ótica de uma obcecada agente da CIA interpretada por Jessica Chastain. Não há conversa fiada ou cenas gratuitas de “heroísmo”, mas um mergulho tenso e seco numa espécie muito particular de submundo.

Eu me lembro de um episódio de 24 Horas no qual o imorrível Jack Bauer falava, com amargura, sobre esse “mundo paralelo” em que ele e seus pares viviam. Nele, os atores e suas táticas se confundem até se tornar uma coisa só. Atentados terroristas são injustificáveis, mas o que dizer das respostas a eles? Até que ponto são aceitáveis? Eu, sinceramente, não sei ao certo. No caso específico, antes tivessem se limitado a caçar e exterminar Osama e seus comparsas. Invadir dois países injustificadamente?

Mas, voltemos ao filme.

Há quem reclame das cenas de tortura em A Hora Mais Escura, como se elas fossem um problema do longa e não da realidade que ele aborda. Achar que Osama foi rastreado sem o uso de “técnicas extremas de interrogatório” é de uma ingenuidade (para não dizer burrice) sem tamanho. O mundo é feio e triste, e só tende a piorar. Não há heróis ou mocinhos, só antagonistas.

Bigelow evita sistematicamente todos os vícios em que poderia incorrer ao lidar com esse tipo de material. Sem discursos, sem justificativas. É a mesma qualidade que engrandece o Munique de Steven Spielberg: eles fizeram isso com a gente, então a gente vai lá e faz isso com eles. Engrandece os filmes, bem entendido.

Em A Hora Mais Escura, há uma cena muito boa na qual os agentes da CIA discutem seu próximo movimento enquanto, na TV, o patético Barack Obama diz em entrevista que os EUA não praticam mais tortura. Não muito tempo antes, vimos enfiarem um saudita espancado, aterrorizado e literalmente cagado numa caixa. Não há muito espaço para sutilezas aqui.

Penso que a primeira qualidade de um filme deve ser a honestidade. No meu entender, o fato de o trucidamento final de Osama ser isento de catarse ou triunfalismo explicita uma postura das mais honestas por parte da realizadora. Do que é que se trata, afinal? “Assassinato seletivo”, no jargão da realpolitik. Um bando de SEALs invadindo uma fortaleza e queimando o responsável pelo maior atentado terrorista da história. E, depois, Bigelow nos oferece um dos closes mais lancinantes que eu já vi: a expressão depauperada no rosto exausto de Chastain, ao final de tudo.

Ela não respira aliviada, e tampouco o espectador. Mundo de merda, cinema dos grandes.

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Siegfried, o negro

Ao som de Richard Wagner, Siegfried.

django

Eu não acreditava nos meus olhos e ouvidos, mas lá estava Quentin Tarantino recorrendo à mitologia nórdica para calçar o seu western-spaghetti Django Livre. É a saga de Siegfried e Brunhilde, transposta ao sul escravagista dos EUA pouco antes da Guerra da Secessão. Antes, e desde o título, está o icônico personagem imortalizado por Franco Nero no Django de Sergio Corbucci (1966, por aí) e, agora, reencarnado em Jamie Foxx. O novo filme é, para o meu gosto, o melhor de seu roteirista e diretor.

Meu olhar, a exemplo do dele, também é afeiçoado ao imaginário de Sergio Leone, Corbucci, Lucio Fulci (sim, ele também dirigiu westerns) e outros. O que esses caras fizeram foi, basicamente, emprestar o gênero faroeste dos norte-americanos e realocá-lo noutro universo, que é o do próprio cinema. Fizeram coisas que trespassam a realidade, é claro, mas que são, antes e acima de qualquer coisa, filmes que se alimentam de filmes.

Leone, por exemplo, não só reprocessou o gênero, mas lhe conferiu um caráter operístico e grandiloquente inigualável. Obras-primas como Três Homens em Conflito e Era Uma Vez no Oeste não são (nem pretendem ser) do tamanho do Velho Oeste, mas, sim, do tamanho da mitologia cinematográfica (e cinefílica) criada por gênios como John Ford e Howard Hawks, mitologia que reprocessam, reinventam, parodiam, homenageiam.

Tarantino, nem precisava dizer, é herdeiro direto desses sujeitos, dos reprocessadores. Inúmeros mal entendidos cercam tudo o que faz, mas o maior deles advém da incompreensão do seu processo criativo. Qualquer idiota sabe que Tarantino usa e abusa de referências cinematográficas, muitas delas relativas a subgêneros dos mais inusitados (como o blaxploitation revisitado em Jackie Brown), mas a questão é que não há gratuidade alguma nisso. Não se trata de um mero rato de videolocadora regurgitando o que viu.

Muito se fala, por exemplo, da “superficialidade” inerente a essa abordagem cinecanibalesca. Há quem se ressinta de que “falta profundidade” a esses filmes. Para início de conversa, a própria noção de “profundidade” é coisa das mais boçais, em se tratando de cinema. Tudo é superfície, e um filme é bom ou ruim na medida em que seu realizador trafega bem ou mal por ela. Óbvio que há filmes mais ou menos densos, introspectivos ou não, graves ou não, mas dizer que um Tarkóvski é mais “profundo” do que um Tarantino não significa absolutamente nada. No que diz respeito a grandes cineastas, há, evidentemente, abordagens distintas, mas as questões colocadas são, grosso modo, as mesmas.

No meu entender, o material humano inadvertidamente alcançado pelos filmes de Tarantino, por mais debochados, tresloucados e absurdos que às vezes sejam, é de uma grandeza incontornável, e o é por estar conscientemente atracado à nossa animalidade. Kill Bill não pede apenas que acompanhemos o percurso vingativo de sua protagonista, mas, acima de tudo, faz com que nos detenhamos por um longo momento a fim de observar o que há de mais vivo ali: o amor dela por quem tentou matá-la. Não é por acaso que dois corações explodem ao final, literalmente e não.

Da mesma forma, Django Livre explora brutalisticamente os meandros de uma organização social das mais perversas, em que seres humanos eram escravizados e literalmente comidos vivos por cães, mas não pede que pensemos a respeito dela — não de imediato, pelo menos. Não enquanto vemos, não enquanto acontece.

A questão, aqui, é sempre o olhar e suas demandas extravagantes. Você e sente. Não se nomeia a raiva, o desgraçamento do outro, a busca irrefreável por Brunhilde, nada disso. Coloca-se a caminho e, quando nos damos conta, estamos numa carreira desabalada rumo ao fogo. Óbvio que, terminada a projeção, acaso tudo não passasse disso, de um sôfrego apelo aos sentidos, nada restaria e estaríamos diante de um filme pornográfico.

Neste momento, talvez nos sirva algo que Sergio Augusto de Andrade certa vez escreveu (referindo-se a David Lynch). Assim: não é que Tarantino transforme a arte em pornografia; o que ele faz é algo bem mais subversivo e provocador — ele transforma a pornografia em arte. E não só porque a pornografia é coisa nossa, humana ao extremo, mas também porque ele tem consciência daquilo que expus acima sobre a superficialidade. À superfície dos corpos, destroçados ou em processo de destroçamento, ele sobrepõe a superfície do celuloide. Ele recobre a miséria do real com a precariedade do cinema e, com isso, ressalta e ironiza o que ambas têm de melhor e de pior.

Não há gratuidade. Há um entendimento (agora, sim) profundo da nossa condição. Estamos e somos aí para morrer, coisa que até Heidegger sabia. Já escrevi em diversas ocasiões sobre como há uma liberdade tremenda nisso, em ter consciência disso. Liberdade que detona quaisquer objeções politicamente (ou hipstericamente) corretas porque se coloca não à frente, mas atrás delas.

(Tarantino parece estar dizendo o tempo todo: You’re overthinking, asshole! Just watch it!)

O que se , então, em Django Livre? O que se vê é um escravo liberto por um caçador de recompensas saindo à caça dos “donos” da mulher e a muitíssimo bem humorada orgia de violência decorrente disso. É o que é. Um Siegfried negro solapando uma plantation sulista, algo como o fogo antes do fogo (pois a guerra se avizinha).

A consequente e muitas vezes compassada construção de diálogos e situações segue impecável. É sempre um prazer sentar e ouvir qualquer personagem de Tarantino papear. O humor do cineasta, aliás, nunca esteve tão afiado: a longa discussão entre membros de um arremedo anacrônico da Ku Klux Klan sobre a pertinência de se usar ou não os desconfortáveis capuzes é de um absurdo hilariante.

O fotógrafo Robert Richardson segue utilizando seus focos de luz estourada em tomadas internas, mas isso não chega a irritar. Pelo contrário: em cena passada num saloon, das melhores do filme, quando Django e seu libertador acertam os ponteiros (e este último ainda encontra tempo para trabalhar), senti como se assistisse a uma aliança engendrada nos infernos. Há sombras, muitas sombras, mas a luz está ali para não deixar dúvidas: o fogo caminha com aqueles dois. Amém.

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Viela Brasil.

som

O pernambucano Kleber Mendonça Filho construiu carreiras respeitabilíssimas como crítico de cinema (seus textos são tão primorosos que mereciam uma antologia impressa) e curta-metragista (Vinil Verde, Eletrodoméstica e Recife Frio estão entre os melhores filmes já produzidos no formato, no Brasil ou fora — veja alguns deles AQUI).

O Som ao Redor é o seu primeiro longa de ficção. O filme é sobre o Brasil ou, melhor dizendo, sobre nós, brasileiros, e a viela em que nos amontoamos e canibalizamos o próximo.

Filme-coral, passado quase que inteiramente numa rua do Recife, ele mostra (em vez de dizer) duas ou três coisas tão sutis quanto percucientes sobre o apartheid sócio-econômico brasileiro. Não há discursos, não há situações-laboratório, não há conversa fiada, não há ideologismos, não há neo-realismo, não há cinemanovices. Há uma população muito bem escolhida de personagens, ricos e pobres, no topo, na base e no centro da cadeia alimentar brasileira, que se movimenta em círculos por essa viela na qual o filme se situa e, a bem dizer, situa cada espectador que se disponha a vê-lo. Olhamos para o filme, mas é, sobretudo, o filme que olha para nós.

KMF, ao contrário de quase todos os cineastas brasileiros, “sérios” ou não, tem enormes cultura cinematográfica e inteligência audiovisual (filme tem uma estupenda banda sonora; cena em que dois personagens visitam um cinema abandonado, por exemplo, é genial). Seu filme não joga conversa fora, não tenta convencer o espectador de nada, não minimaliza ou tampouco relativiza o que aparece na tela. Ele se limita a passear pelo enorme fosso social em que vivemos. Se o inferno é sempre o outro (e é mesmo), O Som ao Redor mescla Ozu e Haneke para lançar um olhar às vezes compassivo, mas sempre irônico (e autoirônico) para os personagens e suas vidas. A câmera desliza de um lado a outro do muro social, aproxima-nos de todos, sem exceção, testa os nossos preconceitos para melhor ridicularizá-los. A única coisa democratizável, aqui, é a miséria, seja ela qual for — econômica, afetiva ou moral.

Há a dona de casa que fuma maconha e monta na máquina de lavar enquanto ela centrifuga para obter algum prazer (coisa que KMF já explorara lindamente no curta Eletrodoméstica); o moleque de família rica que rouba aparelhos de som dos carros por (pressuponho) tédio puro; a mulher que, pateticamente, tenta negociar um desconto no aluguel porque uma garota se matou no prédio; o amor entre um rapaz e uma moça, amor que nasce, cresce e morre porque todos parecem viver numa estufa; a vizinha que agride aquela dona de casa porque a TV comprada por esta tem oito polegadas a mais; o homem que reencontra uma antiga paixão, mas trivializa isso ao falar a respeito com o sobrinho, os dois à mesa tomando café (como falar de si? Do outro? Do que quer que seja?); as relações de todos com as domésticas, com os vigias da rua e os funcionários dos prédios, viscosas dessa mistura de hipocrisia e culpa de classe média (demitir ou não o porteiro que dorme em serviço?: a reunião de condomínio em que discutem isso é um pequeno filme de terror); o sonho de uma menina, em que seu quintal é invadido pelos outros; a raiva mal ou nem disfarçada dos mais pobres, e a vingança de dois deles contra o ex-senhor de engenho que reina no bairro.

Tudo isso são como estilhaços de um país que, pela sua própria natureza disforme, injusta e perversa, nasceu e se desenvolveu assim, estilhaçado. E, nesse sentido, na medida em que o filme inteiro se baseia na série interminável de pequenas contradições que formam a contradição maior e irresolvível — o próprio Brasil –, talvez a melhor forma de resumi-lo seja por meio de uma expressão paradoxal: O Som ao Redor é um épico mundano, o melhor que poderíamos produzir.

O fim nunca termina.

Um excerto do meu romance
DENTES NEGROS
[Rocco, 2011]

dentesnegros

Ele tem certeza: são duas crianças. Ele acha que. Não: de onde está não pode ter certeza de coisa alguma.
Mas são duas crianças, sim. Um pouco mais próximas agora.
Duas crianças muito pequenas e muito jovens brincando na distância.
Ele não tem certeza de que estejam brincando. Talvez estejam brigando. Brigando por comida ou por uma peça de roupa, um calçado.
O sol baixo, quase se pondo.
As crianças entre ele e o sol. Duas sombras diminutas correndo de um lado para o outro.
Como se surgidas do nada ou do chão. Num momento não há nada e no momento seguinte elas estão ali, a oitocentos metros ou menos, brincando ou brigando, correndo de um lado para o outro.
Entre ele e o sol.
Ele está ali há quase doze horas, as vistas embaçadas e o corpo pregado, apagando de vez em quando feito uma lâmpada mal conectada.
Esfrega os olhos com as costas da mão esquerda e olha ao redor.
Ninguém além dele e das crianças.
A ordem é não fazer nada caso permaneçam à distância, caso ninguém se aproxime e peça ajuda, peça alguma coisa. Não fazer nada, sejam crianças ou velhos. As pessoas precisam se aproximar e se identificar e dizer o que querem, comida, remédio, alojamento, transporte, o que for.
Duas crianças, na distância.
Ele não pode abandonar o posto e ir até elas a fim de saber o que querem, se é que querem alguma coisa; não pode abandonar o posto e ir até elas para ver o que está acontecendo.
Não acontece muito. O pior já passou. A coisa foi controlada. Tarde demais para a maioria, mas controlada. Estão ali agora. E as pessoas, algumas pessoas.
Como aquelas crianças.
Uma delas, a menor, é empurrada pela outra e cai no chão. Estão brigando, agora ele tem certeza. A criança maior ergue um dos braços, desfere um soco na criança menor. Depois, endireita o corpo e segura alguma coisa, impossível ver o que é. Leva essa coisa à boca. A criança menor grita e em seguida se levanta e chuta as pernas da maior e ensaia correr, mas pára depois de quatro ou cinco passos ao perceber que a maior não está em seu encalço.
O pior já passou. Limpar as cidades. Enterrar os mortos. Cadastrar, vacinar e alimentar os poucos sobreviventes. Construir os centros comunitários. Pacificar a região. O pior já passou, o mais trabalhoso.
Os mortos com seus dentes enegrecidos, descobertos, como se tivessem morrido no meio de um grito.
As duas crianças agora caminham na direção dele.
Doze horas encarando o vazio. Melhor do que limpar latrinas. Melhor do que ajudar na enfermaria. Melhor do que trabalhar na cozinha. O vazio é o que há.
Nove, dez anos. Dois meninos. Um maior, outro menor. Magérrimos. Imundos, descalços. O nariz do menor está sangrando. O maior mastiga alguma coisa. Param a alguns metros dele, do outro lado da pista, e olham para o portão fechado. O portão fechado às costas dele. Ele pega o comunicador com a mão esquerda e diz:
Dois pequenos aqui fora. Sozinhos.
Eles não disseram nada. Não pediram ajuda, sequer se aproximaram realmente. Mas ele está entediado. Fazer alguma coisa, qualquer coisa. A ordem é aguardar, alguém está a caminho. Ele guarda o comunicador no bolso e pergunta aos dois:
Com sede?
Eles balançam a cabeça: sim. Ele pega o cantil e mostra para eles. Atravessam a pista. O maior pega o cantil, bebe e passa para o menor. Este bebe e repassa o cantil para o maior. Este bebe e repassa para o menor. Esvaziam o cantil, empapando as camisetas imundas com a água que escorre pelos queixos. O maior devolve o cantil. Suas roupas estão esfarrapadas. A camiseta do menor é de um time.
De que time é essa sua camisa?, ele pergunta enquanto guarda o cantil.
O menor olha para o maior, que balança a cabeça (sim), e só então responde:
Vila Nova.
Vila Nova?
Não existe mais, esclarece o maior. Acabou.
O portão é aberto. Três soldados e um médico. Os meninos se encolhem, abaixam as cabeças. Ele diz ao médico:
Dei água para eles, senhor.
Conduzem as crianças para dentro. Antes de entrar, um dos soldados diz para ele:
Depois do jantar vai rolar uma canastra no refeitório. Está dentro?
Não sei. Preciso dormir.
Se quiser, é só aparecer.
Vão apostar?
Qual é a graça se não for pra apostar?
Se não estiver pregado demais, eu vou.
Falou.
Fecham o portão. Ele olha adiante. O sol na altura do chão agora, como se brotasse dele. Uma enorme planta alienígena. Ninguém mais. O cantil vazio.
O pior já passou.
Os locais, os poucos sobreviventes, já não procuram ajuda ali. Preferem os postos de apoio civis, os acampamentos dos organismos de ajuda internacional, os hospitais de campanha, os armazéns do governo, os centros comunitários. O exército deveria permanecer na região fazendo as vezes da polícia, mas muito pouco acontece. Os arruaceiros e saqueadores e estupradores já foram quase todos pegos. Pouquíssimas ocorrências agora, pelo menos por ali. Agora são quarenta soldados, dez sargentos, um coronel, três médicos e seis enfermeiras. No início, eram dois mil soldados, cento e vinte médicos. A base será desativada em dois meses.
O sol finalmente desaparece. É dia embaixo dos meus pés, ele pensa. Do outro lado. Ou lá dentro.
São duas crianças, sozinhas, vindas sabe-se lá de onde. Antes, teriam sido cooptadas pelos Vinte e Três ou por outra gangue qualquer. Os Vinte e Três: vinte e três moleques, com idade variando entre os onze e os dezessete, órfãos, aproveitando o caos inicial para, armados, atacar chácaras e fazendas.
A base foi montada logo que deram a Calamidade como controlada. Risco zero de novos contágios. A vacina funcionava. A prioridade era auxiliar os sobreviventes, fornecer abrigo, alimentação, e limpar as cidades. A limpeza incluía pacificar a região, impedir que os crimes e tumultos ganhassem as proporções que tinham mais ao norte. Sufocar os arruaceiros a qualquer custo. Havia várias gangues menores, todas seguindo o exemplo dos Vinte e Três. Estes seriam usados como exemplo.
Sufocar a qualquer custo, de qualquer maneira. Já temos problemas demais, disse o coronel.
Os Vinte e Três se sentiram importantes. Alvos prioritários, caçados por uma unidade inteira do exército. Coisa que, em vez de torná-los cautelosos, fez com que agissem com fúria redobrada. Invadiram uma fazenda a meros três quilômetros da base. Mataram o fazendeiro, estupraram mulher e filhas, uma delas de onze anos. Roubaram comida, roupas, uma arma. Passaram a noite. Obrigaram a mulher a cozinhar. Levaram a menina de onze anos. O líder disse que faria dela a sua esposa.
Isso foi poucos meses depois da Calamidade. Os mortos ainda muito vivos nas memórias com seus dentes negros em suas bocas escancaradas, suas mortes quase instantâneas. Ainda flutuando sobre tudo, presentes.
Era como se os Vinte e Três dissessem: O fim do mundo veio e foi embora. O que acontece depois do fim do mundo?
O coronel destacou cinqüenta homens para caçá-los. Três semanas após o ataque à fazenda, foram encontrados em uma chácara abandonada, nos arredores da antiga capital.
Ninguém foi poupado.
Depois disso, incidentes isolados. Nada sequer remotamente organizado.
Sempre haverá gente desesperada, disse o coronel. Sobretudo aqui, depois do que aconteceu.
O que aconteceu. O que acontece depois do fim do mundo.
O fim do mundo veio e ficou, pensa Alexandre. Os mortos e os vivos se acotovelando diante do vazio. Os mortos e os vivos se acotovelando dentro do vazio. O vazio: uma boca aberta nas memórias de todos. Uma boca aberta, os dentes enegrecidos.
Dentes negros.
Alexandre balança a cabeça. Não quer pensar nessas coisas. Mas é impossível.
O que acontece depois?
Encontraram a menina de onze anos em um dos quartos, amarrada. Sangue seco nos cabelos, roupas rasgadas. Olhos fixos no teto, sorrindo. Enlouquecida.
O fim do mundo veio e ficou e, de repente, tudo se tornou possível. O fim veio e ficou, veio para ficar. Não vai a lugar algum. Instalado, acomodado. Não irá embora. Será o fim por toda a eternidade. O que acontece, acontece durante o fim.
Isto é o fim, ele pensa. E o fim nunca termina.
O portão é aberto. Está escuro. Um vulto de arma na mão se aproxima e diz, mastigando alguma coisa:
Tá liberado, Alexandre. Eu assumo.

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Lehnen on Leones

O texto abaixo foi escrito pela professora Leila Lehnen e usado como peça de divulgação pela Rocco durante a FLIP 2012.

“Difícil ser humano”. Esta epígrafe, da poeta goiana Dheyne de Souza, abre Paz na terra entre os monstros (2008), segundo livro do escritor goiano radicado em São Paulo, André de Leones. A dificuldade de ser humano, de continuar humano em um mundo alienante é um dos temas recorrentes na obra de Leones. Desde sua estreia literária com o romance Hoje está um dia morto (2006), galardoado com o prêmio Sesc de Literatura 2005, Leones trabalha com questões que abordam a frágil fronteira que separa a vida da morte, o querer viver do desejar morrer e finalmente, o existir do viver. Seus personagens, jovens perdidos e melancólicos, garçonetes desiludidas e juradas de morte, casais acidentais que sobreviveram – pelos menos fisicamente – uma catástrofe confrontam o leitor com perguntas difíceis sobre por que continuamos nas nossas rotinas, no nosso dia-a-dia e como podemos confrontar a dor de perdas, de decepções, enfim, da vida. São as perguntas que se fazem muitos dos personagens de Leones. As suas respostas são ambíguas, como se não houvesse (e, em muitos dos casos, realmente não há) uma resposta certa para os dilemas a partir dos quais são tecidas as narrativas de Leones.

Com uma prosa econômica, de parágrafos curtos e diálogos concisos, que ao mesmo tempo ecoam o linguajar coloquial e o transforma em poesia, André de Leones forja histórias cotidianamente melancólicas. Os seus três romances, Hoje está um dia morto, Como desaparecer completamente (2010) e Dentes negros (2011) usam cenas do dia-a-dia para transformá-las em flashes de uma excepcionalidade perturbadora. Assim, por exemplo, o encontro entre Renata e Hugo, dois dos personagens de Dentes negros, aparenta uma normalidade que, no entanto, mal consegue esconder a tragédia que se tornou o andaime de suas vidas. Em uma típica cena de bar, no meio de uma happy hour barulhenta, vemos Hugo e Renata fazendo uma tentativa cuidadosa de aproximação “Eles estão sentados à mesa do bar, outra vez em silêncio. Ela é muito jovem e ele não sabe o que ela faz, não se lembra quem os apresentou, não sabe com quem ela chegou àquela mesa, ele chegou depois e ela já estava lá. Dois órfãos, ela baiana, ele goiano, suas terras natais devastadas, suas famílias, e ele pensa sobre o que ela disse antes, aquilo sobre eles estarem envenenados, algo assim” (página 21). A cena captura a solidão que penetra o texto como uma fina garoa de inverno paulista. Dentes negros é um romance da orfandade, do abandono literal e metafórico. O romance explora a questão de que significa sobreviver à morte coletiva. A culpa decorrente, como sugere a escritora Adriana Lisboa na orelha do livro, está composta de silêncios. Dentes negros traduz estes silêncios para a literatura.

A mesma desolação que permeia o último romance de André de Leones se anuncia desde sua primeira obra, Hoje está um dia morto. Se Dentes negros está escrito em uma linguagem direta que espelha a paisagem devastada onde a narrativa se desenvolve (e que é belamente ilustrada pelas fotos em preto-e-branco de Lívia Ramírez que abrem os capítulos do livro), Hoje está um dia morto intercala o linguajar direto, quase brutal de dois adolescentes no momento em que se descobrem (e, ao mesmo tempo se perdem), com uma prosa poética que revela uma sensibilidade aguda para a beleza do convencional. Uma prosaica saída de escola se transforma em um pequeno vórtice cheio de ansiedade juvenil: “Início de tarde technicolor iluminando a debandada escolar. Todos na rua com seus berros objetos até mais te vejo mais tarde. Bicicletas quase voam ruabaixo ruacima. Mães motorizadas quase atropelam filhos de outras mães. Restos da lama da chuva de horas antes premiam costas e calças de pedalantes destemidos” (página 71). A passagem impõe uma visão sinestésica que nos transporta para o momento em que a escola abre as portas deixando escapar a corrente de vida contida por horas à beira de escrivaninhas. Hoje está um dia morto é, efetivamente, um (anti)Bildungsroman que expõe a explosão de energia adolescente no momento em que esta se transforma em matéria morta.

Amor, sexo e a mortalidade são também os eixos que organizam o segundo romance do autor, Como desaparecer completamente. A trama, que segue diferentes personagens cujos caminhos se cruzam, se chocam e se separam numa São Paulo condensada na área Paraíso-Jardins-Higienópolis-Baixo Augusta, usa a metáfora do sexo (mas não necessariamente do orgasmo) como uma pequena morte (tema que também surge em Hoje está um dia morto e em algumas das histórias de Paz na terra entre os monstros). Como desaparecer completamente privilegia o thanatos sobre o eros. Há, como em Dentes negros, um elemento de decadência que se insinua nas cenas que descrevem os múltiplos encontros sexuais entre os personagens. Os corpos que surgem das páginas de Como desaparecer completamente evocam as imagens do pintor austríaco Egon Schiele (cujo A morte e a donzela ilustra a capa de Paz na terra entre os monstros). Como nos quadros de Schiele, há uma beleza decrépita nos movimentos sôfregos dos personagens do romance e na sua tentativa de comunicar-se através da linguagem corporal. A comunicação, o contato humano é penoso mas necessário, pois é uma possível resposta à pergunta do “por quê” e “como” mencionadas acima. Não é de se surpreender então que todas as obras de Leones contenham trechos extensos de diálogos.

André de Leones é capaz de inserir um máximo de significando em um punhado de palavras, extraindo sentido de cada vocábulo. Deste modo, em sua coleção de contos Paz na terra entre os monstros, ele condensa uma história de vida em apenas um parágrafo no conto “Desde pequenos nós comemos silêncios”. As histórias deste livro, assim como os romances de Leones, contêm uma violência contida que se deflagra sem alaridos. É a tragédia sem lágrimas ou gritos, toda ela uma carga de dor existencial muda, abarcada em uma janela aberta ou no grito silencioso e de dentes negros dos mortos que aparecem no romance homônimo. Esta imagem, aliás, lembra outro quadro: O grito, do norueguês Edvard Munch. A imagem de Munch evoca a mesma angústia relatada em Dentes negros, assim como o questionamento que está por detrás deste sentimento: “por que existimos?” e “como lidamos com a dor da existência?”. Se a pergunta pode ser piegas e repetitiva, a resposta literária de André de Leones não o é. Por um lado, o autor impõe uma visão decididamente contemporânea a esta interrogação existencial. Suas histórias ocorrem em uma atualidade familiar, cheia de referenciais culturais que localizam os seus personagens dentro de um contexto específico (vide o título do segundo romance do autor, uma alusão à canção How to disappear completely, do grupo britânico Radiohead). Por outro lado, a sobriedade e lucidez de sua prosa não permitem sentimentalismos, mas nos conduzem a uma reflexão penetrante, porém artística, da condição humana.

Leila Lehnen
Universidade do Novo México
Albuquerque, NM (EUA)

Notas sobre uma aventura

1.

Gosto cada vez mais dos filmes de Michelangelo Antonioni. Acho que uma série de razões contribui para isso.

Por exemplo, o fato de, em seus melhores trabalhos (para o meu gosto: a Trilogia da Incomunicabilidade, Blow Up e Profissão: Repórter), ele prescindir de qualquer posicionamento ideológico, de não construir situações em função de uma qualquer “mensagem política” ou coisa que o valha. Antonioni está interessado no indivíduo, não nas “massas” ou na bendita “luta de classes”.

É interessante como ele se fixa em gente rica e, ao contrário do que já se afirmou por aí, não enfoca esses personagens como “pessoas vazias e sem alma”. Não se trata disso. Não se trata de proceder uma leitura “proletariarizada”, de expôr “as elites”, de apodrecê-las “por dentro”. A angústia existencial experimentada por seus personagens não tem nada a ver com classe social, riqueza ou pobreza.

O simples fato de não se deixar contaminar por quaisquer marxismos atesta, de um lado, a inteligência e o comprometimento de Antonioni para com o seu projeto estético, e, de outro, a atemporalidade de seu cinema — ele não me parece datado, ingênuo ou panfletário.

Ontem, revi A Aventura. É o primeiro filme da Trilogia da Incomunicabilidade, complementada por A Noite e O Eclipse. A aventura anunciada no título é, evidentemente, interior. Ensaiam-se aventuras externas, mas elas são refreadas ou frustradas momento a momento.

Uma moça, filha de um diplomata, desaparece durante um passeio por uma ilha. Seu noivo e a melhor amiga empreendem uma busca infrutífera e, ao mesmo tempo, iniciam um relacionamento sexual dos mais instáveis. Não porque se sintam culpados, mas, sim, por nunca saber o que querem do outro e de si próprios.

O mistério do desaparecimento nunca é desvendado. Não há corpo, não há indícios de que ela tenha fugido ou se acidentado ou sido morta, não há nada. A personagem é uma ausência desde o início. Quando essa ausência, por assim dizer, presentifica-se, torna-se factual, a busca é apenas a desculpa de que se valem o noivo e a amiga para se aproximarem. E não é que sejam perversos ou canalhas. De certa forma, eles também não estão ali, um para o outro. A aproximação é superficial. Eles vagam pelo litoral, dizem coisas, não fazem muito: suas palavras valem ainda menos do que suas atitudes. São ausências, também.

A atmosfera fantasmagórica é um dos grandes achados do diretor. Seus filmes não têm uma concatenação tradicional, personagens e situações parecem à deriva, o tempo todo. Tudo é propositalmente entediante, e a experiência é tão mais rica quanto conseguirmos submergir nesse tédio, vivenciá-lo em algum nível, compreender que o desenrolar se dá mediante esse mareamento sensorial.

A deficiência é de cunho existencial, intrínseca aos personagens. Logo, não se trata de uma deficiência estética, de roteiro, direção ou montagem, pelo contrário: tudo está ali para explicitar e ilustrar aquela outra deficiência.

Foi isso, aliás, que parece ter escapado a Ingmar Bergman. O sueco achava Antonioni um chato, taxava-o de “esteta” e dizia que ele não compreendia um filme como um organismo vivo, que respira, e se preocupava apenas em enfileirar um plano, depois outro, depois outro. A crítica de Bergman chega a ser risível se pensarmos que, em Antonioni, a respiração é compaginada às existências que enseja, isto é, é pesada e atravancada, como a de um asmático.

Observe-se, ainda, que A Aventura é construído sobre uma série de desconexões. A estrutura é composta por cenas que parecem jogadas, dispersas. O discurso dos personagens é fraturado, errático. Eles navegam por ali, em direção ao nada (mesmo ou sobretudo quando pensam navegar em direção ao outro), falam sobre o que não sabem, incertos sobre o que sentem ou não sentem.

O mistério maior não é, portanto, o desaparecimento da moça, mas o desaparecimento de cada um em si. Todos naufragam sozinhos, e o gesto final, longe de constituir uma desconsolada tentativa de presentificação, de reconhecimento da alteridade ou mesmo de perdão, a mim parece uma ironia das mais cruéis.

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2.

Só agora, revendo após tantos anos os filmes de Michelangelo Antonioni de que disponho, filmes que vi e revi por muitas vezes há dez, quinze anos, e que não voltei a revisitar desde então, é que eu percebi o quanto devo a ele como escritor. Na verdade, e até para que não soe como se eu me arrogasse coisas e loisas, devo dizer que, conscientemente e não, eu me apropriei, plagiei e roubei várias características desses filmes ao criar as minhas histórias. Percebo isso com uma alegria enorme, similar à do órfão que descobre ter um pai ainda vivo e à sua espera em algum lugar.

Dentre as características do estilo de Antonioni que contaminaram o meu trabalho, eu cito: a lenta pulsação de seus filmes; o interesse sempre renovado pelas aventuras interiores dos personagens em detrimento de quaisquer peripécias maiores (e, mesmo quando há peripécias, o sentido exterior delas é frustrado ou, melhor dizendo, esvaziado em favor de outra coisa, muitas vezes inidentificável e, acima de tudo, interna); as situações superficialmente banais (porque dizem tanto sobre aquelas pessoas); o gosto dos personagens por caminhar sem rumo aparente, percorrer ruas e ruas, percorrer por percorrer, e se deter aqui e ali para observar um detalhe qualquer, uma ocorrência, uma pessoa, qualquer coisa que lhes chame a atenção, e observar sem objetivo, observar por observar; os tempos mortos que se vão acumulando no decorrer das narrativas, situações deixadas de fora em filmes convencionais porque tidas como “desinteressantes”, “tediosas” ou incapazes de contribuir para o “andamento” da história, e que são justamente o que tornam os filmes carregados de epifanias.

No meu entender, é da precariedade da experiência, qualquer que seja, que Michelangelo Antonioni se ocupa em seus filmes, em especial na Trilogia da Incomunicabilidade. N’A Aventura, que já abordei neste espaço, a amiga e o noivo da moça desaparecida não conseguiam se acercar de sua ausência, vivenciá-la, e a partir dela compreender as presenças um do/para o outro. São ausências, também. Nós nos deparamos com personagens parecidos em A Noite e O Eclipse.

A Noite nos traz um casal ainda mais ausente do que o visto outrora, n’A Aventura. Ele é um escritor desapaixonado pela escrita e pela esposa. Visitam um amigo, doente terminal; depois, vão ao lançamento do novo livro dele, de onde ela dá um jeito de escapar e ganhar a cidade — ou se perder nela. Ao contrário do marido, ainda lhe interessa procurar por alguma coisa, observar, errar.

Mais tarde, vão a uma festa na casa de um industrial, que oferece um trabalho ao escritor. Este, como que se agarrando a um resto de dignidade para com a literatura, recusa, ou intenta recusar. Ao mesmo tempo, o casamento rui de vez no decorrer da festa, quando ele e a esposa ensaiam trilhar rumos opostos, passeiam com e por terceiros, ausentam-se um do outro de uma vez por todas. Isto é corroborado na belíssima cena final, num campo de golfe ou coisa que o valha, quando ele sequer reconhece as palavras que certa vez escreveu para ela.

Não por acaso, O Eclipse tem início justamente com um rompimento. O movimento, aqui, é oposto ao que verificamos n’A Noite. Ela se desembaraça de uma relação e erra, sozinha, não exatamente em busca de outra, mas como que tateando em busca de si. Ou seja, ela ausentou-se não só da relação que faliu, acabou, mas de si. Busca, assim, estar presente outra vez, escapar da qualidade gratuita, quase alucinatória, que a realidade adquiriu.

Um homem, operador da bolsa, comprometido com o que há de mais pragmático, passa a cortejá-la. Não a compreende, mas tampouco consegue se afastar. Por mais diferentes que sejam, eles se permitem frequentar, observam um ao outro com atenção, passeiam juntos pela cidade, olham para as mesmas coisas.

É bonito, esse movimento.

Não se trata, nunca, de uma aproximação completa, mas de uma bela, às vezes triste, às vezes malfadada, tentativa de aproximação. Vale a tentativa, portanto. Vale estar ali com o outro, independentemente do que quer que seja. Afinal de contas, conforme as palavras de alguém a certa altura, o amor é trabalhoso.

De resto, aconteça o que acontecer com eles, os dez minutos finais d’O Eclipse, rostos, corpos e paisagens e “nada” acontecendo, estão entre as coisas mais lindas que já vi num filme. A impressão que tive é de que ela, a protagonista, finalmente voltou àquele lugar, ao mundo, à realidade, por assim dizer. Deixou de flutuar, de pairar, venceu o alheamento, está outra vez em si e no mundo.

Voltando à contaminação que, felizmente, sofri, percebo claramente (agora) como, por exemplo, construí Como desaparecer completamente por um trajeto similar ao que verifico n’O Eclipse: do rompimento ao alheamento e deste a uma reaproximação do mundo e do outro. O livro começa com um rompimento e termina com um encontro ou, antes, uma sensação provocada por um encontro. “Acho que ouvi o mar”, diz um personagem, orelha colada no concreto paulistano. Em Antonioni, ouço o mar constantemente.

Exit Roth.

A notícia de que Philip Roth estaria se aposentando não me surpreendeu ou chocou. A impressão que eu tenho é de que ele estava se despedindo da escrita desde Patrimônio, lançado em 1991. Claro, foi no decorrer dos anos seguintes que ele produziu obras-primas (além de Patrimônio) como Operação Shylock, O Teatro de Sabbath e Pastoral Americana. Mas foi por isso, creio, por estar de certa forma se despedindo, por ter vislumbrado claramente o fim mais à frente, que ele escreveu uma sequência de livros tão estonteantes. Ele tinha consciência de que estava no auge, então, e ter consciência de estar no auge é também fitar o que está lá embaixo e saber que logo a descida se iniciará. O livro que assinala o momento em que ele, suspenso no vácuo, sentiu-se pronto para se deixar despencar é Fantasma Sai de Cena. Não por acaso, o livro (outro de seus melhores) é, também, a despedida de Nathan Zuckerman. Quando o li, pensei que seria o último Roth. Não foi, felizmente. Faltava ainda dar notícias da queda em progresso, do vácuo aberto sob os pés e sobre a cabeça, engolfando tudo: Homem Comum, Indignação, A Humilhação e Nêmesis. Não há chão lá embaixo. Não há nada. O final da descida é o silêncio.

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