No intervalo doloroso.

No intervalo doloroso.

[Trecho de Terra de casas vazias, meu romancemprogresso.]

Não demorou para que o desconforto de Camila fizesse com que Aureliano se cansasse de olhar para ela; sentou-se em uma das cadeiras que estavam junto à cama, as pernas afastadas, a mão direita sobre o joelho direito, a esquerda sobre o esquerdo. Não conseguia olhar para ela por muito tempo, mas que outra coisa havia para se ver ali? O quarto era um caixote branco dentro de um caixote branco maior, e esse caixote branco maior era quase infinito se imaginado dali de dentro, de um dos inúmeros caixotes menores. Cada parede branca, impassível, parecia refletir a parede defronte, e elas se repetiam monotonamente no decorrer daquele útero albino repleto de corredores que ligavam os caixotes menores sem, contudo, a imprevisibilidade de um labirinto ou de uma casa de espelhos: afinal de contas, as pessoas presas às camas estavam ali para ser encontradas.
Aureliano fitou o naco de parede entre a cama na qual estava Camila e a janela. Comparou o branco da parede com o dos joelhos da mulher, expostos. Não era mais propriamente branco, o dos joelhos dela, do corpo inteiro dela, mas algo esmaecido, desiluminado ou em processo de apagamento. A doença como que adoecia também o branco daquele corpo, corrompia de maneira sutil a sua brancura, aos poucos, mas inexoravelmente. As paredes, não: em seu branco-coisa, impassível, as paredes permaneceriam de pé por muito mais tempo. O branco da parede pareceu a Aureliano muito mais palpável que o do corpo de Camila, de suas pernas ali esticadas. O branco de uma parede contraposto ao branco de um fantasma, ou quase. É por isso que fantasmas conseguem atravessar paredes, ele pensou, e morrer também é isso, um apagamento, perder a cor aos poucos, o corpo esfarelando até que consiga atravessar uma parede, o teto, até que consiga atravessar. Fechou os olhos e se viu tentando desesperadamente segurar as pernas de Camila para que ela não fosse, não atravessasse, mas suas mãos não agarravam nada, ela já não tinha cor, não tinha corpo, as mãos dele riscavam o vazio. Sentiu raiva. Nas paredes eu confio. No branco delas. Sólido, concreto. Camila flutuava, seu branco esmaecido, esvaziado, confundindo-se com o branco tangível do teto.
Atravessou.
Foi embora.
— No que você está pensando?
Abriu os olhos. Ela o encarava, assustada. A mão direita veio até seu rosto e o acariciou fracamente. Quase não sentiu o toque. Ela já começara a desaparecer, a intangibilizar-se. Onde é que você está? Entre aqui e lá, ou nem lá e nem aqui. No intervalo doloroso. Em algum lugar-nenhum.
— Ainda não acabou — ele a ouviu dizer. — Você precisa se acalmar. Eu preciso que você se acalme. Ainda não acabou.

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Oroboro.

No final de 2010, fui contemplado com uma bolsa do Programa Petrobrás Cultural por conta de meu romance (ainda em progresso) “Terra de casas vazias”. Ele provavelmente será lançado pela Rocco em meados do ano que vem.

Uma das contrapartidas para justificar a grana que venho recebendo para escrevê-lo é divulgar alguns trechos aqui no blog e também falar um pouco sobre o tal do processo criativo. São coisas que eu faria (no caso dos trechos, venho fazendo) independentemente do contrato de patrocínio que assinei, mas não custa nada oficializar o troço.

Comecei a esboçar esse romance lá em Jerusalém, em maio de 2009, e venho trabalhando nele desde então, com interrupções (para revisar “Como desaparecer completamente“, romance lançado pela Rocco em 2010, escrever alguns contos, uma peça teatral que foi encenada em 2011 e, claro, dar conta de algumas resenhas e outros trabalhos).

Tenho aqui um caderno Tilibra Opus, capa vermelha, com as primeiras páginas que rascunhei. O título e a epígrafe ficaram, bem como a vontade de situar parte da narrativa em Jerusalém. O resto mudou e vem mudando um bocado, como não poderia deixar de ser, ainda que o projeto original permaneça inalterado.

Um romance bem disperso no tempo (1986, 2007, 2009) e no espaço (Brasília, Silvânia, São Paulo, Jerusalém, Goiânia), com um bom número de personagens errando por aí. Não, não consigo fazer uma descrição menos cretina, por mais que eu tenha em mente que qualquer romance possa ser descrito mais ou menos desse jeito.

Há um assessor parlamentar e a esposa viajando para Jerusalém a fim de superar uma perda recente, um policial lidando com casos que nunca se resolvem ou se resolvem sozinhos, à sua revelia, uma garota ensaiando uma jogada no melhor estilo Richthofen, um marujo irlandês seduzindo uma coroa goianiense, enfim, uma pequena multidão se acotovelando pelo livro afora.

Se me perguntarem, consigo identificar claramente as razões pelas quais escrevi todos os meus livros até aqui. “Hoje está um dia morto” é a reação visceral e previsível aos meus anos de (de)formação no interior. “Aneurisma” (novela que fecha “Paz na terra entre os monstros”) nasceu de uma vontade consciente de brincar com a metalinguagem, essa coisa tão 2006. “Como desaparecer completamente” foi uma encomenda. E “Dentes negros“, a minha tentativa de escrever um romance de gênero (ou subgênero, tanto faz).

Não consigo situar “Terra de casas vazias”, e isso é meio desesperador. Mesmo assim (ou justamente por isso), sigo escrevendo meio que no escuro, levando as histórias que surgem até onde é possível ou aceitável ou, em alguns casos, suportável levá-las.

Você pode ler trechos de “Terra de casas vazias” clicando AQUI, AQUI e AQUI. Mas, claro, encare como rascunhos, work in progress.

Jerusalém é branca.

Trecho do meu romancemprogresso.

No dia em que aterrissaram em Tel Aviv, depois de um rápido interrogatório no aeroporto, receberam os vistos e rumaram para Jerusalém. Sonolento, Arthur viu através da janela do monit sherut uma cidade limpa, esvaziada (era tarde), em que avenidas largas davam lugar a ruas estreitas à medida que o motorista manobrava para deixar os diversos passageiros, as construções iguais constituídas pelos mesmos grandes blocos creme-cromáticos; não parecia real, ou talvez fossem o sono e o cansaço, as coisas como que descoladas umas das outras, os prédios descolados do chão, o próprio asfalto das ruas descolado do chão, a cidade descolada do mundo — tudo separado do resto, atirado ao vazio da mesma forma como Ben Gurion fizera com suas pernas ao posar para aquela fotografia. Arthur fechou os olhos por um instante, pensando que, talvez, nada definisse melhor Jerusalém do que essa ideia ou imagem de uma cidade-bolha flutuando indefinidamente, perdida numa espécie de vácuo a-histórico fadado a eternas e, desgraçadamente, nunca monótonas — porque sangrentas, caóticas — repetições.
Chegaram exaustos ao hostel e, depois de fazer o check-in e acomodar as bagagens no quarto, só tiveram forças para atravessar a Jaffa e comer um sanduíche no Burger King e beber algumas cervejas sentados a uma mesa no calçadão da Ben Yehuda. Teresa quis comer um falafel, mas Arthur disse que era melhor não comer nada de muito diferente naquela primeira noite. De volta ao quarto, fecharam as cortinas, ligaram o ventilador e dormiram inteiramente vestidos, como se talvez precisassem fugir dali a qualquer momento, no meio da noite.
Não fugiram, claro.
Acordaram cedo, com o barulho do trânsito e das obras, e resolveram que o primeiro lugar a visitar seria a Cidade Velha. Estavam a um quilômetro do Portão Jaffa. Caminhando pela calçada, esbarrando em soldados, turistas, judeus e judias ultraortodoxos, haredim, e crianças em meio à poeira levantada pelos operários, ele perguntou o que ela estava achando. Teresa não respondeu de imediato. Minutos depois, sentados a uma mesa do Café Aroma naquela mesma calçada, ela se limitou a dizer:
— Jerusalém é branca.

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"Dentes negros" / release.

Meu novo romance, o segundo que publico pela Rocco, começa a ser distribuído por esses dias. O lançamento em São Paulo está marcado para o dia 06/10, uma quinta-feira (sorry, F.), na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho). Quando a data estiver mais próxima, publico aqui o convite.

Abaixo, o release assinado pela sempre generosa Juliana Krapp:

DENTES NEGROS

Num futuro impreciso – mas que, de tão opressor, soa muito próximo – uma doença misteriosa varre parte da população do Brasil. Em poucas horas, famílias inteiras são extintas. A Calamidade, como passa a ser chamado o fenômeno, deixa um rastro de cidades-fantasmas e de cadáveres com os dentes enegrecidos, um enorme deserto que se estende por parte do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do país.
Tempos depois, numa mesa de bar de São Paulo, funcionários de uma emissora de TV confraternizam num happy hour. Um encontro banal, que desencadeia o envolvimento de dois jovens, assombrados pela angústia de suas perdas e de suas memórias. Sobreviventes de diferentes tipos de tragédia, Hugo e Renata são os personagens que abrem Dentes negros, novo romance do goiano André de Leones. A trama, porém, não se limita à dupla: num passeio de ares cinematográficos, com cortes difusos e narrativas entrecruzadas, outros sobreviventes entram em foco.
Sobreviventes não apenas porque ultrapassaram a calamidade, mas, sobretudo, porque carregam a sina de um olhar para o vazio. Sobreviventes, afinal, como têm sido os personagens de Leones, cuja prosa caminha, sempre, rente aos abismos da melancolia. Ante uma desconhecida existência pós-apocalipse, os protagonistas deste romance curto e conciso são, antes de mais nada, seres enovelados a um tipo muito peculiar de solidão.
Dentes negros, afinal, não narra o apocalipse, e sim algo talvez ainda mais perturbador: o que vem depois dele. Os meandros do vazio, onde tanto o passado quanto o futuro permanecem em suspensão, alegorias inatingíveis e enigmáticas. A calamidade é um cenário, um ponto de partida. Mas a matéria-prima da trama é uma angústia essencialmente contemporânea, calcada nos conflitos mais corriqueiros do dia a dia, na violência e nos afetos que brotam de onde menos de espera. Para dimensionar a tragédia, a câmera do autor persegue a banalidade sempre perversa dos dias.
Neste romance, a prosa rápida que marca a obra de Leones ganha a companhia de fotografias em preto-e-branco assinadas por Lívia Ramirez. Flagrantes de paisagens desertas, como nesgas de lembranças desabitadas, as imagens servem de comentários visuais, inusitadas provocações. E, assim, lançam luz a essa história que cria uma tonalidade originalíssima entre a desilusão e a possibilidade de reencantamentos sempre novos.

Arranha-céu.

Algumas coisas que me ocorreram depois de ver A Árvore da Vida, de Terrence Malick.

1. Acho que eu percebi que estava diante não “apenas” de um grande filme, mas de uma obra-prima, quando, às perguntas dolorosamente feitas pela mãe (Jessica Chastain) que há pouco perdera um filho, perguntas, é claro, direcionadas a Deus, onde você está?, por que não fala comigo?, por que não me responde?, Terrence Malick contrapõe, por meio de um maravilhamento sonoro e visual que eu torci para que perdurasse para sempre, a Criação.

2. A estupenda capacidade de Malick de nos situar em qualquer lugar em questão de segundos, seja a uma mesa de jantar violentamente familiar onde a presença do pai é tão acachapante que até mesmo Brahms parece nos sufocar, seja em um encontro furtivo entre dois seres pré-históricos.

3. Não há maneirismos em “A Árvore da Vida”. Para um filme tão enamorado do Divino, me parece bastante óbvio que cada mísero plano tem de obrigatoriamente ser o mais luminoso e deslumbrante possível. E a câmera sempre arruma um jeito de apontar para cima, para o alto, para o céu, seja seguindo o tronco e os galhos de uma árvore como se eles estivessem prestes a alçar voo, seja de dentro de um elevador em um arranha-céu.

4. “Be quiet. Please.” R. L. (Laramie Eppler), o filho do meio, de temperamento artístico, das aquarelas e do violão, doce, o filho que vai morrer, ele diz essas palavras ao pai (Brad Pitt) e o caos doméstico irrompe. A minha infância inteirinha resumida em uma cena.

5. A violência do pai se instala no filho e o molda. Jack (o intenso Hunter McCracken quando criança; depois, Sean Penn) diz ao pai: “Sou tão ruim quanto você”. Ironicamente, isso é dito em uma das raras cenas em que pai e filho conversam de verdade, ou em que o pai, pelo menos, revela algo de si, demonstra alguma fragilidade.

6. O mexicano Emmanuel Lubezki filma como se Deus tivesse dito FIAT LUX! hoje de manhã. É mais fácil ser convertido pela beleza dos enquadramentos sempre vazados de luz que pelas palavras algo engessadas ditas por um pregador em seu púlpito. O homem fala sobre Jó, sobre perder tudo mesmo sendo bom. Deus é quem sabe.

7. O pai diz aos filhos, diz e repete, ser íntegro não é um bom negócio, ser competente demais não é bom, a saída é ser medíocre, passar despercebido, deixar-se levar. O pai diz isso aos filhos, mas faz justamente o contrário. Depois, naquela cena em que revela algo de si, a única descoberta que fez, a única coisa que aprendeu: não realizei nada, não fiz nada. Só vocês.

8. O pai devora os filhos. Deus está ao redor.

Edu S. escreveu um poema para mim.

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POEMA PARA ANDRÉ DE LEONES
por Eduardo Sinkevisque
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Compreendo a tristeza de André de Leones,
sua melancolia, sua depressão.
Compreendo a ironia de André de Leones,
seu sarcasmo, seu escárnio, sua visão.
Dessas coisas, de André de Leones, sou irmão.
Compreendo suas rodadas de cerveja,
suas palavras cevadas ceifadas de delicadezas.
Compreendo a dramaturgia de André de Leones,
sua carpintaria trigo, malte, espuma …
Tecidos tragados destragados em tensão.
Dessas coisas, de André de Leones, somente
sou irmão na metáfora da composição.
Não bebo. Fumo. Spleen fora de século
em decomposição.
André de Leones não fuma. Bebe.
Torpor do século em desmistificação.
Em teor de palavras, a gente se assemelha
no assoalho de cacos dos sortimentos
de certa identificação.
Entendo as destruições de André de Leones,
sua distribuição, seu jeito iconoclasta, bonachão
Dessas coisas, de André de Leones, sou irmão.
Somos espécies de basset-hounds de uma mesma
ninhada.
Latimos grosso, andamos lentos sem precisão.
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[Originalmente publicado no blog menos.]

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O lugar mais baixo da Terra.

[Mais um pequeno trecho do meu romancemprogresso.]

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Outra pequena viagem dentro da viagem maior. A massa azulada disforme, quieta, mais e mais próxima, como se estivesse se arrastando em direção a eles e não o contrário. O lugar mais baixo da Terra, lera em um dos folhetos que Arthur lhe dera. Aqui, à medida que se aproximava do Mar Morto, muito embora a luz esbranquiçada fosse a mesma de Jerusalém, Teresa se sentia convidada a fechar os olhos.
Assim que chegaram à praia e desceram do ônibus, ela olhou para o mar e depois para cima: o mesmo sol enorme enraizado no céu esbranquiçado.
Qual é mesmo o nome desse lugar?, ela perguntou.
A praia ficava lá embaixo, descendo por uma longa calçada que atravessava a areia em linha reta, uma rampa se pronunciando em direção à água, mas sem chegar até ela. O mar estava logo atrás de uma espécie de cerca, como se tivessem medo de que ele fosse fugir.
Ein Gedi, disse Arthur.
Caminhavam em direção ao mar. Arthur falou de uma espécie de oásis, um jardim botânico do outro lado da rodovia, num kibutz ou coisa parecida, ou próximo a um kibutz, ele não sabia direito, mas era um outro lugar que eles poderiam visitar. Naquela mesma tarde, se ela quisesse. Depois que tivessem almoçado por ali mesmo, havia alguns restaurantes a poucos passos de onde estavam.
A gente não precisa voltar hoje para Jerusalém. A gente pode fazer o que quiser.
Ela não o ouvia direito. Tudo era pesado e quieto, as vozes do marido e dos outros turistas lhe chegavam como que amortecidas. Como se ela tivesse água nos ouvidos, mesmo não tendo ainda mergulhado, mesmo sendo tão difícil mergulhar ali. Na praia, ouviu uma mulher que viera no mesmo ônibus em que eles dizer a alguém, em inglês:
Não é fantástico, Arthur?
Ao ouvi-la pronunciar aquele nome, ainda que com sotaque inglês, Teresa pensou que fosse vomitar. Sentou-se na areia, as pernas mal respondendo, e encolheu-se toda, escondendo a cabeça entre os joelhos. Contou até dez bem devagar. Depois, bem depois, ergueu a cabeça. O mar quieto, pesado. Alguns já entrando na água, entre risos e gritos incompreensíveis. Feito crianças.
Não é fantástico, Arthur?
Ela abriu a bolsa que trouxera, pegou a toalha e o filtro solar. Levantou-se, estendeu a toalha na areia e voltou a se sentar. Arthur estava de pé logo à frente. Olhava adiante, sorrindo, como se visse a outra margem e nela algo de extraordinário.
Não é fantástico, Arthur?
Ela descalçou as sandálias e as colocou junto da bolsa. Ficou olhando na mesma direção que Arthur olhava. O que ele via? Não havia nada. O cadáver aquoso, uma espécie de gel azulado, e sobre ele e além aquela névoa de um branco sujo, encardido.
O que você está olhando?, perguntou depois de um tempo.
Sem se virar, ele respondeu: Nada. Só olhando.
Não dá para ver a outra margem.
Não. Não dá.
Ele estava com as mãos na cintura, a câmera pendurada no pulso direito. Na camiseta dele estava escrito: DON’T WORRY. BE JEWISH.
Não somos judeus, ela dissera ao vê-lo comprando a camiseta dias atrás, na Cidade Velha em Jerusalém. Quer dizer que temos de nos preocupar?
Ela se levantou, tirou a camiseta e a bermuda, ajeitou o maiô, passou protetor solar pelo corpo. As pernas ainda tremiam um pouco. Disse a ele:
Acho que vou entrar na água.
Vou tirar umas fotos antes de entrar, ele retrucou.
A água a mantinha suspensa. Não era assim nada demais. (Era?) Ficou boiando em círculos, os olhos fechados. Os risos e gritos ao redor. Feito crianças. Tentou pensar em outra coisa. Ocorreu-lhe, então, a ideia de que tudo se resumia a uma única margem, sem ponto de chegada do outro lado.
Meu Deus. Margem alguma do outro lado.
Não é terrível, Arthur?
Chamou pelo marido:
Arthur?
A luz do sol não a permitia abrir os olhos por completo, mas ela o entrevia parado, a água batendo nos joelhos.
Arthur?
Chamou outras vezes, a voz cada vez mais baixa.
Arthur? Arthur?…
Arthur fotografava o nada diante de si, a paisagem marítima adormecida, a névoa ausentando a outra margem.
Não a ouvia.

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[Imagem: “Sem título” (2009),
óleo sobre tela de Maya Gold.]

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Eu faço drama:

minha peça CONCERTO PARA QUATRO VOZES E ALGUMA MEMÓRIA será apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, de 11 a 15 de maio. Ela foi escrita para o projeto Nova Dramaturgia Brasileira e dirigida por Cristina Moura.

Ao sul, onde a infância é uma faca cravada na garganta.

Incêndios / Incendies
[Denis Villeneuve, 2010]

Adaptação de uma peça de Wajdi Mouawad, “Incêndios” começa pontuado pela canção “You and Whose Army“, do Radiohead. Estamos no Líbano, no meio da guerra civil que devastou o país no final do século passado. Crianças têm suas cabeças raspadas por guerrilheiros. Em seguida, viajamos ao Canadá dos dias de hoje, onde um casal de gêmeos ouve a leitura do testamento de sua mãe, a imigrante libanesa Nawal. A partir da leitura e das descobertas, imediatas ou não, que ela acarreta (eles teriam um irmão), o filme se bifurca: temos a viagem da filha (e, depois, também do filho) ao Líbano em busca do irmão e de respostas e, paralelamente, a jornada da própria Nawal.

Compreender o que houve e ainda há no Líbano, de longe o país mais sectário (para dizer pouco) do Oriente Médio, não é coisa para amadores. Cristãos, muçulmanos, palestinos, israelenses, todos deram a sua contribuição para atear fogo ao país. Mas, curiosamente, o diretor Denis Villeneuve se afasta do factual (as vilas e cidades citadas são fictícias, por exemplo) e se atém às viagens que acabam por constituir a espinha dorsal do filme. É uma escolha arriscada, mas afinal muito feliz.

A rigor, “Incêndios” é um drama familiar. E, como todo bom drama familiar, é uma história permeada de ódio: dos irmãos de Nawal pelo primeiro amor dela; de um dos gêmeos pela obscuridade intrínseca à mãe; de Nihad (melhor não explicar quem é) contra tudo, mas sobretudo contra si mesmo; e de todos contra todos naquele Líbano conflagrado.

Mesmo o perdão, ao final, é antecedido por uma agressão, por uma espécie de vingança. Duas cartas, escritas por uma só pessoa, cindida, e endereçadas também a uma só pessoa, igualmente cindida: aqui, um mais um será sempre um, o que encerra todas as tragédias desveladas pelo filme, sejam elas pessoais, familiares ou políticas.

Claro que um drama familiar situado em meio e logo após uma conflagração não é, nem poderia ser, algo comum. Na verdade, o filme inteiro se movimenta no limite da (in)verossimilhança, e muitas vezes para além do absurdo (não por acaso, ela canta). Por sorte, Villeneuve, diferentemente de picaretas como Alejandro Iñarritú, reconhece logo de saída o valor do silêncio e, ao final, tergiversa em vez de abraçar ruidosamente a redenção. Em seus momentos decisivos, “Incêndios” é um filme que cala em vez de gritar.

Longe de quaisquer sensacionalismos, Villeneuve ainda consegue abarcar toda a brutalidade da guerra civil libanesa em uns poucos incêndios e naquela cena excruciante passada dentro e ao redor de um ônibus, no meio do nada. Ali, mais do que nunca, conforme evidencia o destino de uma criança que Nawal tenta salvar (ironicamente, separando-a de sua mãe), a infância é uma faca cravada na garganta. Por muito tempo, e próxima demais do fogo que não se apaga, Nawal permanece ajoelhada. Ela não rezará.

Bogie.

Bogie

Humphrey nasceu em Nova York, no finalzinho do século XIX. Ele nasceu no dia de Natal. O pai dele se chamava Belmont e era um médico com diplomas da Columbia e de Yale. A mãe dele se chamava Maud e era artista gráfica, dizem que muito bem sucedida. Eles viviam no Upper East Side, que é um ótimo lugar para se viver e coisa e tal. Maud era uma mulher distante, um iceberg. Humphrey não dava muito certo com os velhos, e eles meio que se sentiam decepcionados com o garoto, que parecia insistir em enfodecer as expectativas deles. Quer dizer, ele até pensou em seguir a carreira do pai, mas a expulsão da prep school Phillips Academy, em Andover, não deve ter ajudado muito nesse sentido. Humphrey, então, dirigiu caminhões por um tempo e depois se juntou à Marinha. Foi à Primeira Guerra Mundial. Quando o barco em que estava foi atacado, um pedaço de madeira rasgou sua boca: ele não falava daquele jeito por acaso. Quando voltou da guerra, Humphrey começou a atuar nos palcos do Brooklyn sem nunca ter feito um curso de interpretação na vida. Suas três primeiras esposas eram todas atrizes. A terceira e mais louca delas, Mayo, apelidada “Sluggy”, bebia como se não houvesse amanhã e ficava paranóica, nutria uns ciúmes doentios dele. Mayo chegou a esfaquear Humphrey num dos inúmeros quebra-paus que tiveram. Mas a verdade é que Humphrey era um sujeito assim machista e não muito ligado nisso de fidelidade. Assim: ele exigia fidelidade das mulheres. Quando Maud morreu, ele colocou no certificado de óbito que a ocupação dela era “dona de casa”. Humphrey bebia a sério, como se dizia na época, e acabaria morrendo em decorrência disso e também dos cigarros, claro. Você olhava para ele e parecia que ele nunca tinha sido jovem. Tinha aquele ar grave e ao mesmo tempo turbulento, e era como se estivesse nas sombras desde sempre. A quarta esposa dele foi Lauren, “Baby”, 25 anos mais nova. Ele a traiu durante muitos e muitos anos com sua (dele) cabeleireira, cujo nome eu não consegui descobrir. Humphrey e Lauren ficaram juntos até 1957, quando ele morreu. Acho que foi em janeiro.