Ao sul, onde a infância é uma faca cravada na garganta.

Incêndios / Incendies
[Denis Villeneuve, 2010]

Adaptação de uma peça de Wajdi Mouawad, “Incêndios” começa pontuado pela canção “You and Whose Army“, do Radiohead. Estamos no Líbano, no meio da guerra civil que devastou o país no final do século passado. Crianças têm suas cabeças raspadas por guerrilheiros. Em seguida, viajamos ao Canadá dos dias de hoje, onde um casal de gêmeos ouve a leitura do testamento de sua mãe, a imigrante libanesa Nawal. A partir da leitura e das descobertas, imediatas ou não, que ela acarreta (eles teriam um irmão), o filme se bifurca: temos a viagem da filha (e, depois, também do filho) ao Líbano em busca do irmão e de respostas e, paralelamente, a jornada da própria Nawal.

Compreender o que houve e ainda há no Líbano, de longe o país mais sectário (para dizer pouco) do Oriente Médio, não é coisa para amadores. Cristãos, muçulmanos, palestinos, israelenses, todos deram a sua contribuição para atear fogo ao país. Mas, curiosamente, o diretor Denis Villeneuve se afasta do factual (as vilas e cidades citadas são fictícias, por exemplo) e se atém às viagens que acabam por constituir a espinha dorsal do filme. É uma escolha arriscada, mas afinal muito feliz.

A rigor, “Incêndios” é um drama familiar. E, como todo bom drama familiar, é uma história permeada de ódio: dos irmãos de Nawal pelo primeiro amor dela; de um dos gêmeos pela obscuridade intrínseca à mãe; de Nihad (melhor não explicar quem é) contra tudo, mas sobretudo contra si mesmo; e de todos contra todos naquele Líbano conflagrado.

Mesmo o perdão, ao final, é antecedido por uma agressão, por uma espécie de vingança. Duas cartas, escritas por uma só pessoa, cindida, e endereçadas também a uma só pessoa, igualmente cindida: aqui, um mais um será sempre um, o que encerra todas as tragédias desveladas pelo filme, sejam elas pessoais, familiares ou políticas.

Claro que um drama familiar situado em meio e logo após uma conflagração não é, nem poderia ser, algo comum. Na verdade, o filme inteiro se movimenta no limite da (in)verossimilhança, e muitas vezes para além do absurdo (não por acaso, ela canta). Por sorte, Villeneuve, diferentemente de picaretas como Alejandro Iñarritú, reconhece logo de saída o valor do silêncio e, ao final, tergiversa em vez de abraçar ruidosamente a redenção. Em seus momentos decisivos, “Incêndios” é um filme que cala em vez de gritar.

Longe de quaisquer sensacionalismos, Villeneuve ainda consegue abarcar toda a brutalidade da guerra civil libanesa em uns poucos incêndios e naquela cena excruciante passada dentro e ao redor de um ônibus, no meio do nada. Ali, mais do que nunca, conforme evidencia o destino de uma criança que Nawal tenta salvar (ironicamente, separando-a de sua mãe), a infância é uma faca cravada na garganta. Por muito tempo, e próxima demais do fogo que não se apaga, Nawal permanece ajoelhada. Ela não rezará.