Notas sobre uma aventura

1.

Gosto cada vez mais dos filmes de Michelangelo Antonioni. Acho que uma série de razões contribui para isso.

Por exemplo, o fato de, em seus melhores trabalhos (para o meu gosto: a Trilogia da Incomunicabilidade, Blow Up e Profissão: Repórter), ele prescindir de qualquer posicionamento ideológico, de não construir situações em função de uma qualquer “mensagem política” ou coisa que o valha. Antonioni está interessado no indivíduo, não nas “massas” ou na bendita “luta de classes”.

É interessante como ele se fixa em gente rica e, ao contrário do que já se afirmou por aí, não enfoca esses personagens como “pessoas vazias e sem alma”. Não se trata disso. Não se trata de proceder uma leitura “proletariarizada”, de expôr “as elites”, de apodrecê-las “por dentro”. A angústia existencial experimentada por seus personagens não tem nada a ver com classe social, riqueza ou pobreza.

O simples fato de não se deixar contaminar por quaisquer marxismos atesta, de um lado, a inteligência e o comprometimento de Antonioni para com o seu projeto estético, e, de outro, a atemporalidade de seu cinema — ele não me parece datado, ingênuo ou panfletário.

Ontem, revi A Aventura. É o primeiro filme da Trilogia da Incomunicabilidade, complementada por A Noite e O Eclipse. A aventura anunciada no título é, evidentemente, interior. Ensaiam-se aventuras externas, mas elas são refreadas ou frustradas momento a momento.

Uma moça, filha de um diplomata, desaparece durante um passeio por uma ilha. Seu noivo e a melhor amiga empreendem uma busca infrutífera e, ao mesmo tempo, iniciam um relacionamento sexual dos mais instáveis. Não porque se sintam culpados, mas, sim, por nunca saber o que querem do outro e de si próprios.

O mistério do desaparecimento nunca é desvendado. Não há corpo, não há indícios de que ela tenha fugido ou se acidentado ou sido morta, não há nada. A personagem é uma ausência desde o início. Quando essa ausência, por assim dizer, presentifica-se, torna-se factual, a busca é apenas a desculpa de que se valem o noivo e a amiga para se aproximarem. E não é que sejam perversos ou canalhas. De certa forma, eles também não estão ali, um para o outro. A aproximação é superficial. Eles vagam pelo litoral, dizem coisas, não fazem muito: suas palavras valem ainda menos do que suas atitudes. São ausências, também.

A atmosfera fantasmagórica é um dos grandes achados do diretor. Seus filmes não têm uma concatenação tradicional, personagens e situações parecem à deriva, o tempo todo. Tudo é propositalmente entediante, e a experiência é tão mais rica quanto conseguirmos submergir nesse tédio, vivenciá-lo em algum nível, compreender que o desenrolar se dá mediante esse mareamento sensorial.

A deficiência é de cunho existencial, intrínseca aos personagens. Logo, não se trata de uma deficiência estética, de roteiro, direção ou montagem, pelo contrário: tudo está ali para explicitar e ilustrar aquela outra deficiência.

Foi isso, aliás, que parece ter escapado a Ingmar Bergman. O sueco achava Antonioni um chato, taxava-o de “esteta” e dizia que ele não compreendia um filme como um organismo vivo, que respira, e se preocupava apenas em enfileirar um plano, depois outro, depois outro. A crítica de Bergman chega a ser risível se pensarmos que, em Antonioni, a respiração é compaginada às existências que enseja, isto é, é pesada e atravancada, como a de um asmático.

Observe-se, ainda, que A Aventura é construído sobre uma série de desconexões. A estrutura é composta por cenas que parecem jogadas, dispersas. O discurso dos personagens é fraturado, errático. Eles navegam por ali, em direção ao nada (mesmo ou sobretudo quando pensam navegar em direção ao outro), falam sobre o que não sabem, incertos sobre o que sentem ou não sentem.

O mistério maior não é, portanto, o desaparecimento da moça, mas o desaparecimento de cada um em si. Todos naufragam sozinhos, e o gesto final, longe de constituir uma desconsolada tentativa de presentificação, de reconhecimento da alteridade ou mesmo de perdão, a mim parece uma ironia das mais cruéis.

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2.

Só agora, revendo após tantos anos os filmes de Michelangelo Antonioni de que disponho, filmes que vi e revi por muitas vezes há dez, quinze anos, e que não voltei a revisitar desde então, é que eu percebi o quanto devo a ele como escritor. Na verdade, e até para que não soe como se eu me arrogasse coisas e loisas, devo dizer que, conscientemente e não, eu me apropriei, plagiei e roubei várias características desses filmes ao criar as minhas histórias. Percebo isso com uma alegria enorme, similar à do órfão que descobre ter um pai ainda vivo e à sua espera em algum lugar.

Dentre as características do estilo de Antonioni que contaminaram o meu trabalho, eu cito: a lenta pulsação de seus filmes; o interesse sempre renovado pelas aventuras interiores dos personagens em detrimento de quaisquer peripécias maiores (e, mesmo quando há peripécias, o sentido exterior delas é frustrado ou, melhor dizendo, esvaziado em favor de outra coisa, muitas vezes inidentificável e, acima de tudo, interna); as situações superficialmente banais (porque dizem tanto sobre aquelas pessoas); o gosto dos personagens por caminhar sem rumo aparente, percorrer ruas e ruas, percorrer por percorrer, e se deter aqui e ali para observar um detalhe qualquer, uma ocorrência, uma pessoa, qualquer coisa que lhes chame a atenção, e observar sem objetivo, observar por observar; os tempos mortos que se vão acumulando no decorrer das narrativas, situações deixadas de fora em filmes convencionais porque tidas como “desinteressantes”, “tediosas” ou incapazes de contribuir para o “andamento” da história, e que são justamente o que tornam os filmes carregados de epifanias.

No meu entender, é da precariedade da experiência, qualquer que seja, que Michelangelo Antonioni se ocupa em seus filmes, em especial na Trilogia da Incomunicabilidade. N’A Aventura, que já abordei neste espaço, a amiga e o noivo da moça desaparecida não conseguiam se acercar de sua ausência, vivenciá-la, e a partir dela compreender as presenças um do/para o outro. São ausências, também. Nós nos deparamos com personagens parecidos em A Noite e O Eclipse.

A Noite nos traz um casal ainda mais ausente do que o visto outrora, n’A Aventura. Ele é um escritor desapaixonado pela escrita e pela esposa. Visitam um amigo, doente terminal; depois, vão ao lançamento do novo livro dele, de onde ela dá um jeito de escapar e ganhar a cidade — ou se perder nela. Ao contrário do marido, ainda lhe interessa procurar por alguma coisa, observar, errar.

Mais tarde, vão a uma festa na casa de um industrial, que oferece um trabalho ao escritor. Este, como que se agarrando a um resto de dignidade para com a literatura, recusa, ou intenta recusar. Ao mesmo tempo, o casamento rui de vez no decorrer da festa, quando ele e a esposa ensaiam trilhar rumos opostos, passeiam com e por terceiros, ausentam-se um do outro de uma vez por todas. Isto é corroborado na belíssima cena final, num campo de golfe ou coisa que o valha, quando ele sequer reconhece as palavras que certa vez escreveu para ela.

Não por acaso, O Eclipse tem início justamente com um rompimento. O movimento, aqui, é oposto ao que verificamos n’A Noite. Ela se desembaraça de uma relação e erra, sozinha, não exatamente em busca de outra, mas como que tateando em busca de si. Ou seja, ela ausentou-se não só da relação que faliu, acabou, mas de si. Busca, assim, estar presente outra vez, escapar da qualidade gratuita, quase alucinatória, que a realidade adquiriu.

Um homem, operador da bolsa, comprometido com o que há de mais pragmático, passa a cortejá-la. Não a compreende, mas tampouco consegue se afastar. Por mais diferentes que sejam, eles se permitem frequentar, observam um ao outro com atenção, passeiam juntos pela cidade, olham para as mesmas coisas.

É bonito, esse movimento.

Não se trata, nunca, de uma aproximação completa, mas de uma bela, às vezes triste, às vezes malfadada, tentativa de aproximação. Vale a tentativa, portanto. Vale estar ali com o outro, independentemente do que quer que seja. Afinal de contas, conforme as palavras de alguém a certa altura, o amor é trabalhoso.

De resto, aconteça o que acontecer com eles, os dez minutos finais d’O Eclipse, rostos, corpos e paisagens e “nada” acontecendo, estão entre as coisas mais lindas que já vi num filme. A impressão que tive é de que ela, a protagonista, finalmente voltou àquele lugar, ao mundo, à realidade, por assim dizer. Deixou de flutuar, de pairar, venceu o alheamento, está outra vez em si e no mundo.

Voltando à contaminação que, felizmente, sofri, percebo claramente (agora) como, por exemplo, construí Como desaparecer completamente por um trajeto similar ao que verifico n’O Eclipse: do rompimento ao alheamento e deste a uma reaproximação do mundo e do outro. O livro começa com um rompimento e termina com um encontro ou, antes, uma sensação provocada por um encontro. “Acho que ouvi o mar”, diz um personagem, orelha colada no concreto paulistano. Em Antonioni, ouço o mar constantemente.