As asas prontas para o voo

Minha asa está pronta para o voo,
preferiria retroceder pois se também eu seguisse
como tempo vivo seria infeliz.
— Gerhard Scholem, “Saudação do anjo”¹.

steel

[Post atualizado às 09:31hs.]

Há uma cena de O Homem de Aço, de Zack Snyder, que me impressionou muito. Nela, Clark Kent é uma criança. Ele está assustado, muito assustado. Seus superpoderes afloram, e ele ainda não consegue controlá-los: sons enlouquecedores vindos de todos os lados; olha para a professora e vê nervos, ossos, o coração batendo. Sai correndo da sala de aula e se tranca num cômodo qualquer. A mãe é chamada. Tenta acalmá-lo. Fala com ele através da porta fechada. Ele não consegue se acalmar. “O mundo é grande demais, mãe”, diz. “Então torne-o pequeno”, ela responde.

E não é mais ou menos isso que fazemos todos, dia após dia após dia? O mundo grande demais e nós ali, tentando torná-lo menor, compreensível ou ao menos suportável, isto é, habitável? Nem sempre é possível. Nem sempre é suportável. E ele, mundo, nem sempre (quase nunca) responde amigavelmente.

É por aí que O Homem de Aço se comunica comigo.

Não consigo vê-lo como veria qualquer outro filme porque há o peso de uma memória, de uma afeição, e também o peso da minha relação com o mundo conforme eu o filtro (mundo) por essas memória e afeição. É um círculo sem fim.

O filme me lança para trás, inevitável e inexoravelmente. Se me permitem roubar e parafrasear o título de um excelente livro, o filme faz chover sobre a minha infância. Ou: faz chover sobre os olhos que faço chover sobre a minha infância.

Talvez haja outro modo de explicar isso.

Sou das raríssimas pessoas que apreciam Superman — O Retorno. E as razões pelas quais gosto do filme de Bryan Singer são, em parte, as razões pelas quais gosto ainda mais do filme de Snyder. Vejamos.

Gosto do filme de Singer menos pelo que ele é e mais pelo tributo que presta à obra-prima de Richard Donner. Mas, acima de tudo, gosto da maneira como ele me pede gentilmente que olhe para um passado ensolarado que não tive, mas com o qual sonhei ou sonhava sempre que, para me esquecer do resto, o resto tenebroso e desnomeado que me sufocava, eu mergulhava nos quadrinhos. Era uma vida possível, aquela, e eu me agarrava a ela sempre que podia. Ler aquelas histórias foi, então, o modo que encontrei para me viabilizar.

Aquele pedido é reelaborado pelo filme de Snyder com menos gentileza e mais amargura. O olhar que ele lança sobre a infância do super-herói, por exemplo, alguém isolado não só dos outros, mas de si mesmo, posto que não sabe ainda de onde e a que veio, e por quê. É muito forte isso, e muito triste, também. Em nenhuma outra versão cinematográfica experimentei essa desolação com tamanha intensidade. Está inscrita em cada segundo de O Homem de Aço.

Está, por exemplo, em Krypton, aqui recriado sem qualquer parentesco com o mundo gélido e asséptico do filme de Donner. O Krypton de Snyder se coaduna com a maneira como deito os olhos para trás e o que vejo por lá: uma rocha escura e apodrecida, morrendo de dentro para fora, prestes a se esfarelar. É um lar que foi pelos ares e que, para Kal-El, é apenas uma projeção, um eco fantasmagórico, uma tenebrosa onda de choque.

Há muitos cadáveres em O Homem de Aço. Eles estão por toda parte, vindos do passado ou não. Um planeta é destruído e outro, quase. Cidades são devastadas. Os corpos estão pelo caminho. Acima e às vezes abaixo deles está a ideia desse ser condenado a uma espécie de limbo: vindo de um mundo que não é mais e habitante de um outro que ainda não veio a ser.

O nosso mundo é uma promessa, e possivelmente uma promessa vazia. Kal-El sabe disso, mas finge que não. E que outra escolha ele teria? O mundo grande demais e ele ao mesmo tempo dentro e fora, lançado em um vácuo inexprimível. Suas asas estão prontas para o voo, e aí residem sua beleza e sua tragédia. O resto são as ruínas de ontem e de amanhã.

Pensar nelas (vislumbrá-las com olhos-que-chovem) pode ser devastador, mas é também um jeito que encontrava e ainda encontro para recolorir tudo e resgatar a promessa de algo muito bonito que não esteve lá e nunca estará aqui, mas que é impossível deixar de conceber. É uma forma bem estranha de sonho: abro os olhos e de repente estou ali, me frequentando.

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¹BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet; prefácio: Jeanne Marie Gagnebin — 8ª edição revista — São Paulo: Brasiliense, 2012 — (Obras Escolhidas v. 1).